A idosa estava deitada de costas na sujeira, a cabeça pendendo para um lado, os cotovelos dobrados como se estivesse prestes a se levantar. Morta há três meses, seu rosto não era mais reconhecível e sua pele tinha ficado tão fina que mais parecia um véu transparente sobre os ossos. Ela era um entre os mais de 150 cadáveres espalhados sob as árvores, decompondo-se ao ar livre, ou cobertos por plástico num bosque de mais ou menos três acres.
A cena poderia parecer a área de desova de algum serial killer, mas é apenas um dia comum na Unidade de Pesquisa Antropológica de Knoxville, da Universidade do Tennessee, popularmente conhecida como a “fazenda de corpos”, a mais antiga de um punhado de instalações semelhantes mundo afora, onde pesquisadores estudam a ciência da decomposição de corpos humanos, e onde policiais treinam para recuperar restos de cadáveres em cenas de crime.
A mulher morta estava ali para cumprir seu papel em uma nova fronteira da ciência forense: analisar os trilhões de microrganismos e outras criaturas que são testemunhas de nossa morte.
“É uma época empolgante”, diz Dawnie Steadman, diretora do Centro de Antropologia Forense, responsável pela fazenda de corpos. “Estamos numa era tecnológica em que micróbios podem fornecer novas respostas não apenas sobre hora da morte, mas se um corpo foi movido, e sobre as condições internas do corpo que podem ajudar a identificar um cadáver.”
O tempo decorrido entre a hora da morte e o encontro de um cadáver, também chamado de intervalo post mortem, é um aspecto importante da investigação forense, e um dos focos da pesquisa da fazenda de corpos. Quando uma vítima não é identificada, o intervalo post mortem pode ajudar os investigadores a descobrir de quem se trata, partindo dos registros de pessoas desaparecidas. “Se sabemos que uma pessoa está morta há um ano, podemos descartas as vítimas mais recentes”, diz Steadman.
Isso pode ajudar a reduzir a lista de vítimas prováveis dentre milhares de casos de pessoas desaparecidas, explica a especialista. Mais de 600 mil pessoas desaparecem por ano nos Estados Unidos, de acordo com o Sistema Nacional de Pessoas Desaparecidas e Não-Identificadas, e 4.400 cadáveres sem identificação são recuperados todos os anos, dos quais mil ficam sem identificação, todos os anos.
Outro motivo para a hora da morte ser tão importante é que ela ajuda os investigadores a avaliar os álibis dos suspeitos em casos de homicídio. Dos mais de 16 mil assassinatos ocorridos nos EUA em 2018, cerca de 40% ficaram sem solução. “Se alguém tem um álibi para seis semanas atrás e acreditamos que é mais provável que a vítima tenha morrido entre duas e quatro semanas atrás, então essa pessoa volta para a lista de suspeitos”, diz Steadman.
No entanto, é difícil determinar com precisão quando alguém morreu. Na primeiras horas e dias após a morte, legistas podem confiar em três medidas características: algor mortis(temperatura do corpo), rigor mortis (rigidez do cadáver) e livor mortis (as mudanças na cor da pele, provocadas pela ação da gravidade sobre o sangue). Mas todos esses sinais desaparecem rapidamente.
À medida que o corpo se decompõe, os antropólogos forenses assinalam cinco estágios: fresco, em que a pessoa ainda parece relativamente normal; inchado, quando o corpo se enche de gases; decomposição ativa, quando os tecidos moles do cadáver se decompõem; decomposição avançada, quando boa parte dos órgãos internos foi devorada por insetos e os ossos começam a aparecer; e seca, quando só restam pele, cartilagens e ossos.
Durante cada um desses estágios, os especialistas prestam atenção às larvas de moscas se contorcendo nas carnes de um cadáver. Num dia quente e claro, moscas levam poucos minutos para farejar a mais leve decomposição de um corpo, como se o cheiro fosse um anúncio em neon indicando o local perfeito para comer e procriar. Sua chegada dispara um relógio biológico que permite aos pesquisadores usar os estágios de desenvolvimento das larvas para saber quando as moscas começaram a colonizar o cadáver. Mas a técnica, que sempre aparece nas séries CSI e Law&Order, não é precisa.
Um assassino que coloque sua vítima em um freezer, ou a embrulhe em plástico, adia o início dessa colonização, encurtado artificialmente o intervalo post mortem. Até mesmo a chuva atrasa a chegada dos insetos. Portanto, ao contrário do que mostra a TV, as moscas não são infalíveis.
É por isso que investigadores policiais, antropólogos forenses e outros cientistas estão tão animados com os micróbios do necrobioma, termo usado para descrever todo o ecossistema de vida envolvido com a decomposição de cadáveres, desde grandes mamíferos necrófagos até organismos invisíveis a olho nu.
“Micróbios são onipresentes”, diz Jennifer DeBruyn, cientista de solos da Universidade do Tennessee, enquanto se agacha perto do corpo da mulher idosa para investigar um fungo que cresce em seu braço. “Eles estão presentes no verão, inverno, em ambientes fechados, fora de casa, e até mesmo em corpos fechados em plástico. Não é preciso esperar que apareçam, como acontece com os insetos.”
Avanços no sequenciamento de DNA e na computação permitem identificar bactérias, fungos e outros microrganismos associados à decomposição e a busca por padrões previsíveis que, eventualmente, podem se tornar um método para determinar a hora da morte com mais precisão. “Micróbios são os principais agentes da decomposição,” explica DeBruyn. “Por isso, eles têm grande potencial para ajudar na determinação da hora da morte, ou das circunstâncias em torno dos restos mortais.”
O Centro de Antropologia Forense é criação de William M. Bass, um famoso osteologista (especialista em ossos), que se juntou à equipe da Universidade do Tennessee em 1971. Nesse trabalho e no anterior, na Universidade do Kansas, em Lawrence, Bass costumava ajudar a polícia a identificar vítimas de crimes. Mas havia uma enorme diferença entre o Kansas e o Tennessee. No clima seco do Kansas, os policiais geralmente lhe entregavam caixas com ossos e tecidos mumificados, enquanto no Tennessee, de clima úmido, os corpos chegavam frescos, cheirando mal e cheios de larvas. Bass queria aprender mais sobre a hora da morte em tais condições, então conversou com o reitor da universidade e disse que precisava de uma área onde pudesse depositar cadáveres.
Assim, Bass e seus alunos se instalaram num galpão para criação de porcos, onde estudavam cadáveres não reclamados fornecidos por legistas. De início, tudo o que queriam era responder a perguntas básicas, como, por exemplo, quanto tempo levava para o crânio se tornar visível.
Em 1980, Bass convenceu a universidade a lhe dar um terreno mais próximo do campus, atrás do centro médico, que tinha usado a área durante anos para queimar lixo. A área foi cercada e ele e seus alunos passaram a registrar meticulosamente os padrões e o ritmo da decomposição. Aos poucos, a pesquisa passou a incluir a chegada das moscas, os estágios de desenvolvimento das larvas e outras variáveis.
Alguns corpos permaneciam nus, outros vestidos, poucos eram enterrados ou cobertos por plástico, enquanto outros ainda eram deixados ao ar livre. Vários eram deixados em porta-malas de carros ou na água, para simular cenas de crimes.
O programa de doações começou em 1981 e, desde então, cerca de 1.700 pessoas doaram seus corpos para a Unidade de Pesquisa Antropológica da Universidade do Tennessee, que agora ocupa uma área de mais de 12 mil metros quadrados. Um prédio, que leva o nome de Bass, abriga a maior coleção dos Estados Unidos de esqueletos contemporâneos, uma sala de aula, laboratório e uma área para receber e processar os corpos doados – pelo menos 4 mil pessoas se registraram como pré-doadoras.
Os voluntários
Os doadores, gente comum motivada pelo desejo de ajudar a ciência e a justiça, se registram e passam a carregar um cartão indicando seu desejo de ir para a fazenda de corpos. A Unidade de Pesquisa Antropológica custeia a retirada das casas funerárias e o transporte dos corpos num raio de 160 km de Knoxville – acima disso, as famílias precisam providenciar o transporte do corpo.
Quando chega à unidade, o cadáver é levado a uma garagem, onde é medido e pesado e suas cicatrizes, ferimentos e tatuagens são fotografados e amostras de cabelos, sangue e unhas são coletados. Os corpos ou são armazenados em refrigeradores, por 12 ou 24 horas, ou são imediatamente levados para a área arborizada, onde ficam até que só reste o esqueleto.
“Podemos ver diariamente, hora a hora, as mudanças em centenas de doadores ao longo dos anos, em diferentes estações do ano, em diferentes cenários e em diferentes microambientes dentro da unidade”, explica Steadman. “Isso nos dá uma quantidade enorme de dados para avaliar o tempo decorrido desde a morte, em casos específicos.”
Larry Sennett, um policial aposentado de Lexington, Kentucky, trabalha hoje como supervisor de Treinamento do Departamento de Justiça Criminal (DOCJT, na sigla em inglês) do Estado. De acordo com ele, a fazenda de corpos é um recurso sem igual para treinar policiais para lidar com os cadáveres que encontram, desde a marcação cuidadosa do perímetro do local onde o corpo é encontrado até a retirada meticulosa das várias camadas de terra para expor o esqueleto e evidências, incluindo cartuchos, balas e pequenos fragmentos de osso. “Eles aplicam esse treinamento para processar toda cena em que há uma morte”, conta Sennett. “A maioria dos policiais mundo afora não têm como receber esse tipo e treinamento.”
Christina Priddy, detetive do condado de Hardin e graduada pelo DOCJT da Academia de Criminalística do Kentucky, trabalhou recentemente num caso em que um casal espancou e estrangulou um homem até a morte, e depois enterrou o corpo não muito longe de sua casa. “Nossa análise mostrava eu ele tinha sido enterrado um dia ou dois antes da descoberta do corpo,” contou.
“Encontramos o corpo e pude dar instruções para que fosse removido sem que as evidências fossem destruídas.” O casal foi condenado por homicídio.
Antes da criação da fazenda de corpos, os dados de intervalos post mortem eram obtidos a partir de animais, principalmente porcos. A oportunidade de estudar restos humanos virou o jogo em favor da antropologia forense, que está avançando rapidamente nos últimos anos.
Outras fazendas
Fundada em 2007, a Unidade de Pesquisa de Osteologia Forense da Universidade da Western Carolina foi a segunda fazenda de corpos dos EUA. Além de servir de laboratório para estudos da decomposição humana a 692 metros de altitude, nas montanhas Blue Ridge, o local funciona também como centro de treinamento para cães farejadores de cadáveres.
A terceira e maior unidade de pesquisa de antropologia forense foi aberta em 2008, na Universidade Estadual do Texas, em San Marcos. Numa área de 100 mil metros quadrados, a unidade vem produzindo dados valiosos sobre a decomposição nas altas temperaturas do condado de Hill, e pesquisa sobre a velocidade da ação necrófaga dos abutres.
Uma segunda unidade texana funciona no sudeste do Estado, na Universidade Estadual Sam Houston, famosa por seu programa de justiça criminal. Outras fazendas de corpos foram criadas no Illinois, Colorado, sul da Flórida e norte de Michigan, permitindo que os pesquisadores comparem como os corpos se decompõem em diferentes ambientes, dos pântanos subtropicais aos desertos áridos e planícies nevadas.
Em 2016, a Austrália inaugurou a primeira fazenda de corpos fora dos Estados Unidos, a Unidade Australiana para Pesquisa Experimental Tafonômica, perto de Sydney. Ali, os cientistas descobriram que corpos que se decompõem na savana australiana passam por algum grau de mumificação natural, produzindo uma pele seca e coriácea que se preserva por mais tempo. Um ano mais tarde, um hospital-escola de Amsterdã recebeu autorização para estudar a decomposição de corpos em covas rasas. E este ano, uma nova fazenda de corpos foi instalada em Quebec, dando aos pesquisadores a chance de estudar a decomposição de corpos humanos um local onde as temperaturas no inverno podem chegar a -34°C. Há planos para outras fazendas de corpos em diferentes partes do mundo, inclusive na Grã-Bretanha.
“Essas iniciativas são muito bem-vindas porque, embora parte de nossas pesquisas se apliquem a qualquer ambiente, algumas questões são específicas”, explica Steadman. “Por exemplo, não sabemos como cadáveres se decompõem no pergelissolo (permafrost, o solo encontrado na região do Ártico) ou quando são cobertos por neve durante oito meses por ano. Podemos fazer suposições, mas é o tipo de coisa que poderíamos aprender nesse ambiente. Podemos responder a questões específicas de cada ambiente, e também ter uma noção melhor do que é universal nesse processo.”
Ela está particularmente animada com inovações recentes que permitem expandir a pesquisa. “Você pode aprender muito simplesmente observando o cadáver, mas com as novas tecnologias podemos analisar coisas que vão muito além de temperatura, umidade e insetos e descer ao nível da química, estrutura celular, proteômica e questões mais detalhadas.
“Ainda estamos concentrados na mesma questão, há quanto tempo aquela pessoa está morta,” continua. “Mas a tecnologia permite que a gente vá mais fundo.”
Microscópio
Micróbios começam a agir assim que damos o último suspiro, mesmo se estivermos numa câmara fria, porque alguns microrganismos conseguem trabalhar, bem lentamente, mesmo abaixo de zero. Quando o coração para de bombear sangue, o sistema imune desliga e as bactérias dos intestinos começam a se multiplicar, consumindo nutrientes rapidamente. Essa fúria alimentar, basicamente consumindo o corpo de fora para dentro, produz gases que fazem o cadáver inchar.
Com o tempo, essa pressão faz a pele se romper, liberando fluidos, nutrindo diferentes tipos de micróbios e atraindo bactérias, fungos e vermes nematoides do exterior. À medida que líquidos e nutrientes deixam o corpo, a pele se torna flácida e quebradiça, expondo os ossos. Ao ar livre, animais terminam o serviço, limpando os ossos.
Jessica Metcalf, ecologista de micróbios da Universidade Estadual do Colorado, vem há anos estudando o vai e vem dos micróbios na esperança de desenvolver uma nova ferramenta forense. Ela o chama de “relógio dos micróbios”, elaborado a partir do agrupamento de espécies que aumentam ou diminuem ao longo do tempo em padrões complexos, mas previsíveis. “À medida que diferentes nutrientes se tornam disponíveis, diferentes micróbios prosperam, então você observa diferentes perfis em diferentes períodos de tempo”, explica. “Um pesquisador pode coletá-los e encaixá-los num modelo baseado na experiência.”
Em um estudo publicado na Science em 2016, Metcalf e sua equipe mapearam a atividade microbiana durante a decomposição de camundongos, em laboratório, e de cadáveres humanos na fazenda de corpos da Universidade Estadual Sam Houston. A equipe encontrou uma consistente sucessão de micróbios transformando lipídeos e proteínas em compostos malcheirosos como cadaverina, putrescina e amônia em diferentes estações do ano, solos variados e nas duas espécies, humanos e camundongos. Nesse mesmo trabalho, os pesquisadores identificaram com precisão o tempo decorrido desde a morte dentro de um período de dois ou três dias durante as duas primeiras semanas de decomposição.
Metcalf conta que sua mais recente pesquisa mostra que micróbios são confiáveis para indicar o período decorrido desde a morte mesmo após 25 dias de decomposição, e que a pesquisa de micróbios de solo e da pele pode estimar o tempo da morte com margem de dois a quatro dias. “Estamos usando aprendizado de máquina, semelhante ao que a Netflix usa para saber o que gostaríamos de assistir. Coletamos os micróbios nesses diferentes períodos de tempo, sequenciamos o DNA e então comparamos com uma amostra desconhecida para tentar combinar com a época em que aquele conjunto de micróbios aparece.”
Metcalf também mantém uma colaboração com pesquisadores das fazendas de corpos do Texas, Colorado e Tennessee para determinar se há consistência suficiente na sucessão de micróbios ativados na decomposição de cadáveres para desenvolver um relógio universal. “Ainda estamos tentando saber o quanto nosso modelo é robusto e qual nossa margem de erro, enquanto testamos certas variáveis como estação do ano, temperatura e geografia”, explica. “A sucessão de micróbios é suficientemente generalizável, não importa onde o corpo é encontrado? Ou precisamos de um relógio específico para cada região?”
De acordo com ela, se tudo correr bem, a nova ferramenta forense poderá ser usada em investigações dentro de três a cinco anos. No entanto, alguns de seus colegas acreditam que levará mais tempo – de sete a dez anos – para que a pesquisa alcance os padrões necessários para que seja admissível como prova nos tribunais.
Outra iniciativa que analisa o testemunho de micróbios sobre nossa morte é, informalmente, conhecida como Projeto do Microbioma Humano Post Mortem, criado em parte com um financiamento de US$ 843 mil do Instituto Nacional de Justiça. Jennifer Pechal, entomologista da Universidade Estadual de Michigan, é uma dentre os vários pesquisadores de diferentes instituições que trabalham no projeto, que nasceu num encontro que ela teve com Carl Schmidt, legista do condado de Wayne, na Conferência da Academia Americana de Ciências Forenses de 2014.
“Eu dei uma palestra e disse que precisava de colaboradores”, conta. “Ele estava na plateia porque precisava de créditos continuados para seu emprego. Ele veio falar comigo depois, e disse que trabalhava perto e se eu queria corpos, ele tinha.”
Até agora, Schmidt forneceu amostras microbianas de ouvido, nariz, boca e reto de quase 3 mil cadáveres – vítimas de ataque cardíaco, overdose, suicídio, sem-teto que morreram de hipotermia – que entraram no Serviço do Legista do Condado de Wayne, que inclui a área de Detroit. Da mesma forma que os estudos em fazendas de corpos, essas amostras de várias partes do corpo permitem que os pesquisadores identifiquem os microrganismos presentes nos cadáveres poucas horas ou dias após a morte. Mas o conjunto de dados produzidos em Detroit é diferente do que vem das fazendas de corpos, em que os doadores tendem a ser brancos e de classe média ou alta. O estudo de Detroit representa uma população urbana e operária do Meio-Oeste.
“É um estudo transversal de como a comunidade de micróbios realmente muda com uma população que não doou seus corpos para pesquisa. Ela representa as pessoas comuns” explica Pechal. Até aqui, a análise dos dados indica que certos padrões microbianos podem ajudar a determinar o sexo da vítima, enquanto outros podem reduzir o conjunto de pessoas desaparecidas em casos em que o corpo não tem marcas que o identifiquem, como tatuagens, por exemplo. Outro achado importante é o de que vítimas de overdose parecem abrigar comunidades distintas de micróbios, diferentes dos que morrem de causas naturais.
Pesquisadores de fazendas de corpos também estão avaliando como doença e os medicamentos que tomamos para diabetes, câncer, depressão e hipertensão podem influenciar o necrobioma e a decomposição. Os cientistas da fazenda de corpos de Knoxville estão avaliando se vítimas de diabetes são mais atraentes para insetos, e estudando como certos remédios podem acelerar ou retardar a decomposição.
“Sabemos que a cocaína acelera o desenvolvimento de larvas, enquanto barbitúricos parecem fazer o contrário”, diz Steadman. Ela está bastante otimista de que DeBruyn e seus alunos possam encontrar novas pistas para esta e outras questões.
Num dia úmido de maio, DeBruyn e quatro outras mulheres vestidas em macacões Tyvek brancos tiraram um homem de 90 quilos de um freezer gigante e colocaram numa maca. Elas suavam dentro da roupa enquanto desciam uma encosta até uma área de solo virgem preparado com equipamento especial para monitorar temperatura, umidade e sais sob os cadáveres.
Nos dias, semanas e meses seguintes, elas retornaram regularmente ao local para virar os corpos e medir oxigênio, e retirar amostras do solo, bem como coletar os fluidos depositados no terreno com uma seringa. Algumas amostras de solo e fluido foram rapidamente congeladas em nitrogênio líquido, para posterior sequenciamento de DNA. Quando as amostras foram processadas no laboratório, verificou-se que dois corpos estavam se decompondo mais depressa do que o terceiro, mas não se sabia o motivo. É um enigma comum: a velocidade da decomposição varia de cadáver para cadáver, mesmo quando se mantêm variáveis constantes e controladas, como peso e localização.
“Há uma variabilidade intrínseca na velocidade de composição que ainda não conseguimos entender”, diz DeBruyn. “Talvez essas pessoas tenham tido microflora diferentes, dietas diferentes, tomaram remédios diferentes. Isso torna a procura por padrões universais um enorme desafio.”
É por isso que DeBruyn é cautelosamente otimista sobre a possibilidade de o microbioma ajudar a resolver crimes. “Ele tem grandes promessas, mas acho que ainda estamos longe de usá-lo como ferramenta forense”, diz. “Precisamos dar um passo para trás e observar o sistema como um todo – química, larvas, micróbios, solo. E isso é ecologia clássica, a observação do ecossistema, o que é bem diferente da forma forense de pensar, que tende a olhar uma coisa específica.”
DeBruyn faz uma analogia com a cozinha para explicar por que nuances são significativas. O atual sequenciamento do DNA de micróbios associados à morte basicamente fornece o nome dos chefs na cozinha, mas talvez seja mais importante saber qual o tipo de culinária que fazem, seu estilo de cozinha ou saber que ingredientes usam.
“Há uma série de perguntas que podemos responder da mesma forma, quando se trata da comunidade de micróbios,” ela diz, ainda agachada ao lado do cadáver da mulher idosa que examina. “No caso de corpos em decomposição, que tecidos e moléculas eles estão quebrando e que produtos estão liberando? Essas perguntas podem ser mis úteis para entender o sistema”, avalia. Levantando-se e andando cuidadosamente entre as folhas caídas no chão, ela encontra Steadman numa trilha, onde uma turma de alunos está reunida para uma aula sobe coleta de evidências. “Acho que, ao fim desses estudos, teremos um monte de novas questões,” diz Steadman, removendo suas luvas e passando pelos portões que escondem a entrada da fazenda de corpos. “E isso é bom, porque é assim que a ciência funciona.”
Rene Ebersole é professora de jornalismo no Programa de Cobertura de Ciência, Saúde e Meio Amiente da Universidade de Nova York. Ela escreve para National Geographic, Audubon, Outside, Popular Science, The Nation, e The Washington Post, entre outros. Reportagem publicada originalmente no site Undark.