Vale a pena comprar alimentos orgânicos? Eles são, em média, 40% mais caros que os convencionais, mas seus defensores alegam que são mais saborosos e nutritivos, não contêm resíduos de pesticidas, e que a agricultura orgânica usa modos de produção menos prejudiciais ao ambiente. Além disso, esses alimentos não são produzidos por latifundiários ou grandes corporações, logo a opção pelo orgânico favorece a pequena propriedade e a agricultura familiar. Será que é isso mesmo?
Primeiro, vejamos o que “orgânico” quer dizer, nesse contexto. No Brasil, produção agropecuária orgânica é uma categoria definida pelo Poder Legislativo.
De acordo com a lei 10.831/2003, “Considera-se sistema orgânico de produção agropecuária todo aquele em que se adotam técnicas específicas, mediante a otimização do uso dos recursos naturais e socioeconômicos disponíveis e o respeito à integridade cultural das comunidades rurais, tendo por objetivo a sustentabilidade econômica e ecológica, a maximização dos benefícios sociais, a minimização da dependência de energia não renovável, empregando, sempre que possível, métodos culturais, biológicos e mecânicos, em contraposição ao uso de materiais sintéticos, a eliminação do uso de organismos geneticamente modificados e radiações ionizantes, em qualquer fase do processo de produção, processamento, armazenamento, distribuição e comercialização, e a proteção do meio ambiente.”
Pela letra da lei, já vemos que técnicas de modificação genética e radiação ionizante – mesmo para descontaminação e preservação dos alimentos – estão excluídas. E deve-se dar preferência e métodos de controle de pragas biológicos e mecânicos.
Sem pesticida?
Mas existem defensivos – isto é, pesticidas, agrotóxicos – liberados para produtos orgânicos.
A diferença é que são pesticidas submetidos a uma regulamentação própria. Infelizmente, o critério para um defensivo ser aprovado para este tipo de manejo não envolve nem eficácia no combate às pragas, nem segurança para o consumidor, o agricultor ou o meio ambiente.
O pesticida orgânico precisa ser um produto de ocorrência natural. Não pode ser sintético – isto é, uma molécula criada em laboratório. Mas não ser sintético não quer dizer que seja bom ou seguro. Um critério que só leva em conta origem e modo de produção ignora fatores como impacto ambiental ou riscos à saúde. Com isso, acabamos tendo produtos piores e menos eficazes, simplesmente porque são “naturais”.
A natureza está cheia de materiais tóxicos e letais. Muitos dos defensivos sintéticos mais modernos degradam-se rapidamente, protegendo o ambiente e a saúde do consumidor: são moléculas projetadas e testadas para funcionar assim. Já no caso do pesticida orgânico, estamos limitados ao que a natureza oferece. Estudo conduzido pela USDA, o Ministério da Agricultura dos Estados Unidos, demonstrou que 20% da alface orgânica nos EUA está contaminada com resíduos de pesticidas. Mas isso não quer dizer que a alface orgânica represente um perigo. Os níveis de pesticida são extremamente baixos, e estão perfeitamente dentro do permitido.
Para um exemplo de pesticida orgânico tóxico para humanos e meio-ambiente, vejamos como a agricultura orgânica lida com fungos. Uma plantação acometida por fungos pode trazer prejuízos enormes para o produtor, incluindo perda total da safra. Ninguém pode ser dar o luxo de correr este risco.
Como o agricultor não pode usar fungicidas sintéticos, ele se vale do sulfato de cobre, um produto natural, mas muito tóxico. A ingestão de cobre é deletéria para fígado e rins em humanos, e o produto também apresenta toxicidade elevada para pássaros e pequenos mamíferos. O sulfato de cobre não degrada no solo, e pode contaminar rios e lençóis freáticos. É classificado como altamente tóxico para o meio-ambiente, altamente tóxico para microrganismos de solo, e altamente tóxico para animais aquáticos. A bula indica seu armazenamento em local com sinalização de “VENENO” para evitar acidentes.
Assim, já vemos que os orgânicos podem conter pesticidas mais tóxicos e prejudiciais ao meio-ambiente do que os tradicionais.
O importante é perceber que existem produtos extremamente seguros, e outros nem tanto, em ambos os tipos de manejo: a agricultura convencional de larga escala, e a agricultura orgânica. É preciso avaliar caso a caso. O tipo de manejo, por si só, não é um bom indicador de segurança.
Mais saudáveis?
A segunda alegação é de que orgânicos seriam mais nutritivos e saudáveis. Uma extensa revisão da literatura científica sobre isso foi publicada em 2012, por um grupo dos Estados Unidos, que analisou mais de 240 artigos tratando do efeito de produtos orgânicos sobre a saúde humana. O trabalho não encontra evidência de nenhum benefício nutricional, ou de segurança.
Bem pelo contrário: o risco de contaminação em alimentos orgânicos é bem maior, graças ao uso de adubo de esterco. Um caso famoso de contaminação ocorreu na Alemanha, em 2011, quando mais de três mil pessoas foram infectadas e 53 morreram, por causa de broto de feijão proveniente de uma fazenda orgânica, contaminado com uma bactéria perigosa.
A certificação também pode ser um problema. A USDA, quando estabeleceu os critérios para certificação de produtos orgânicos, que foram copiados pela grande maioria das agencias regulatórias, inclusive a brasileira Anvisa, deixou claro que o selo orgânico não confere qualidade nutricional, qualidade, ou informação nutricional. Dan Glickman, que foi secretário da USDA (cargo equivalente ao de ministro da Agricultura) de 1995 a 2011, comentou em declaração pública: “Vamos deixar uma coisa clara: o selo orgânico é uma ferramenta de marketing. Não diz nada sobre nutrição ou qualidade”.
Uma vantagem do manejo orgânico, citada na revisão de 2012, é a proibição do uso de antibióticos na criação animal. Antibióticos muitas vezes são utilizados como promotores de crescimento, e essa prática aumenta o risco da seleção de bactérias multirresistentes e de sua transmissão para humanos. No entanto, o rigor da certificação orgânica pode ter efeitos imprevistos: como o produtor não pode utilizar nenhum antibiótico, nem para tratar animais doentes, esses animais sofrem, como foi denunciado pela ONG de proteção animal PETA..
Melhores para o planeta?
O terceiro argumento para o uso de orgânicos seria de que são melhores para o ambiente. Isso também é falso. Como a modalidade proíbe defensivos sintéticos e produtos geneticamente modificados, o rendimento – unidades de produto por unidade de área – é menor. Agricultura orgânica requer mais terra, mais água e mais intervenções mecânicas para manejo de pragas, como aragem da terra para retirar ervas daninhas, por exemplo. Isso aumenta o uso de combustível fóssil, contribuindo para a emissão de gases de efeito estufa. A aragem também prejudica a microbiota do solo, além de matar insetos e pequenos animais.
Estudo conduzido na Suécia e publicado na revista Nature utiliza um novo método chamado de “Custo de oportunidade de carbono” para medir o impacto das diferentes técnicas de manejo na emissão de gases de efeito estufa. A métrica avalia a quantidade de carbono estocada nas florestas, e que será liberada no desmatamento. Como a agricultura orgânica apresenta menor rendimento, o custo de carbono é bem maior.
No caso específico da Suécia – mas que se aplica também ao resto do mundo –, os autores estão preocupados porque este fato não está sendo levado em conta na formulação de políticas públicas, que estimulam a substituição das práticas convencionais pelo manejo orgânico. Segundo os autores, devemos lembrar que a produção de alimentos é determinada por comércio internacional, e por isso, as práticas de manejo da Suécia podem influenciar o desmatamento nos trópicos.
Outro estudo, conduzido na Bélgica, avaliou a redução na emissão de CO2 obtida com cultivares geneticamente modificados, e concluiu que nos últimos 18 anos, cultivares resistentes a inseticidas resultaram em menos 230 milhões de quilosde inseticidas liberados no ambiente. Cultivares tolerantes a herbicidas economizaram 6,3 bilhões de litros de combustível e reduziram a emissão de CO2 em 16,8 milhões de toneladas , simplesmente por dispensar a aragem da terra.
Trabalho realizado no Reino Unido e publicado na Nature Communications também aponta o mesmo problema. Se toda a produção do Reino Unido fosse convertida em orgânica, o rendimento cairia pela metade, e o uso de terra no restante do mundo, para compensar a perda de produção, seria enorme.
Mais um exemplo: estudo feito pelo departamento de Meio-Ambiente, Alimentos e Assuntos Rurais, no Reino Unido, demonstrou que um litro de leite orgânico produz 20% mais gases de efeito estufa e precisa de 80% mais terra. Tomates orgânicos cultivados em estufas, na Inglaterra, utilizam 100 vezes mais energia do que os cultivados na África. O rendimento é 75% do rendimento dos tomates africanos, e usa mais energia, fazendo com que seja mais viável, para o aquecimento global, importar os tomates da África, mesmo levando em conta o combustível do transporte!
Sem transgênicos
Rejeitar a tecnologia de transgênicos (OGMs) e, mais recentemente, a de edição de genoma (CRISPR) foi um tiro no pé. Essas técnicas, quando bem utilizadas, permitem reduzir o uso de defensivos quase a zero, e ainda diminuir a contaminação por agentes causadores de doenças em seres humanos.
O uso de milho geneticamente modificado do tipo Bt quase zerou a aplicação de inseticidas nessas lavouras. Trata-se de um milho resistente a uma lagarta, feito a partir da inserção de um gene da bactéria Bacillus thuringiensis (Bt). Esse gene manda produzir uma proteína que é tóxica para a lagarta, mas que não faz absolutamente nada no sistema digestivo de mamíferos.
Além de reduzir o uso de pesticida, o milho Bt reduz o risco de contaminação por micotoxinas – venenos produzidos por fungos –, muito comum no milho orgânico. A lagarta, quando come a espiga, libera espaço e umidade para a contaminação por fungos. Estes fungos produzem uma toxina que é cancerígena. Isso não ocorre no milho transgênico.
O uso de algodão Bt, resistente a insetos, na China, diminuiu drasticamente o uso de inseticidas na lavoura, além de restaurar um equilíbrio ecológico. Como a toxina Bt age exclusivamente na lagarta, e permite reduzir o uso de inseticidas que matam indiscriminadamente, os demais insetos são poupados e podem controlar outras pragas, como pulgões.
Aqui no Brasil, o feijão RMD, resistente ao vírus do mosaico dourado transmitido pela mosca branca, permitiu reduzir o número de aplicações de inseticidas nas lavouras, de 15-20 por safra, para apenas três. O feijão chegará às nossas mesas com muito menos agrotóxico.
OGMs também aumentam a produção por hectare, diminuindo o uso de terra e de água. Plantas desenhadas para resistir a secas e condições extremas podem aproveitar solos que, antes, eram considerados impróprios para o cultivo. A biotecnologia pode aumentar o valor nutricional dos alimentos, usando processos de biofortificação.
Se o intuito do manejo orgânico é proteger o meio-ambiente e reduzir o uso de pesticidas, qual o sentido em deixar a biotecnologia de fora? A resposta é a velha falácia do “natural é sempre melhor”, que impede que o agricultor orgânico utilize produtos melhores e mais sustentáveis.
Mas e o aspecto social e econômico?
Outro argumento é de que a agricultura orgânica prioriza o pequeno produtor e não as multinacionais. Isso também não é sempre verdade. O mercado de orgânicos é um gigante global. A empresa Whole Foods, uma rede de lojas de produtos naturais e orgânicos, foi comprada pelo grupo Amazon, em 2016, por US$ 13,7 bilhões. Trata-se de um nicho de mercado extremamente lucrativo. No Brasil, os orgânicos movimentaram R$ 4 bilhões em 2018. O mercado de orgânicos é um mercado gourmet, para poucos. Jamais será possível alimentar oito bilhões de pessoas com esse tipo de manejo: teríamos que desmatar todo o planeta para abrir espaço para as lavouras orgânicas, que por serem menos produtivas e eficientes, requerem muito mais solo.
Dito isso, do ponto de vista nutricional e de saúde, não há nada de errado em consumir orgânicos. São produtos igualmente seguros e de mesmo valor nutricional, quando comparados aos produtos convencionais. Mas o custo-benefício deve ser levado em conta, e a opção por este mercado deve ser realmente uma opção pessoal e não uma imposição social, movida por temores infundados e vantagens imaginárias.
De fato, as fantasias criadas em torno da suposta superioridade dos orgânicos (e dos supostos riscos da produção convencional) já estão prejudicando os mais pobres. Levantamento realizado em Chicago (EUA) aponta que famílias de baixa renda estão deixando de consumir frutas e vegetais porque não têm dinheiro para comprar orgânicos e sentem medo dos produtos da agricultura convencional.
A pressão de mercado pela produção orgânica também é perigosa. Alguns produtores estão migrando para a agricultura orgânica simplesmente porque deixa o produto mais caro, acessando um público gourmet. A cadeia de restaurantes mexicanos Chipotle deixou de usar óleo de soja para usar óleo de girassol, a fim de atrair consumidores orgânicos. A jogada de marketing era anunciar que a empresa tem uma preocupação com a saúde e o meio-ambiente, e atrair clientes com esse perfil. A soja costuma ser associada ao herbicida glifosato, injustamente acusado de causar desde câncer até unha encravada, como já explicamos aqui.
O que a empresa não contou aos clientes, no entanto, é que as sementes de girassol foram modificadas – por técnicas convencionais – para serem resistentes a outro tipo de herbicida, inibidor de ALS, e usam muito mais pesticida do que a soja.
A marca internacional de chocolates Hershey’s, também pressionada por grupos contrários à biotecnologia, optou por substituir o açúcar derivado de beterraba geneticamente modificada pelo açúcar de cana. Mas uma molécula de açúcar é uma molécula de açúcar: não há como distinguir açúcar de fonte transgênica de açúcar de fonte “natural”.
Segundo problema, a maior parte do açúcar de cana nos EUA e Europa é importado, e sabemos que o cultivo de cana ocupa uma grande extensão de terra, e que a queima da cana estraga o solo. Como é preciso importar, há que levar em conta o carbono do combustível do transporte. Ou seja, o consumidor não estará desfrutando de um produto mais saudável, nem mais sustentável. Apesar disso, a decisão da Hershey’s foi comemorada pelos ativistas pró-orgânicos nos EUA como uma vitória para o consumidor.
A demanda, nos EUA, por ovos e laticínios produzidos de forma orgânica, por animais que não consomem ração com produtos geneticamente modificados, também levou a empresa Whole Foods a importar esse produtos de países como Romênia, Ucrânia e Índia, onde a fiscalização e as normas de segurança são bem mais frouxas. Isso favorece não só a circulação de alimentos contaminados, mas também aumenta o custo de carbono com emissão de combustível fóssil para o transporte.
A solução? Boas práticas de agricultura!
Não há razão para “contra” orgânicos. Se manejados dentro da lei, estes produtos são tão seguros e nutritivos quanto os convencionais. É difícil, porém, achar justificativa ética ou científica para a estratégia de marketing utilizada para fazer com que as pessoas sejam “a favor” deles. O mercado força o consumidor a escolher entre “dois lados”, e o joga no pior dos dois mundos. Iludido pela aura enganosa dos orgânicos, acredita estar consumindo produtos superiores e livres de pesticidas. E o mercado convencional deixa de adotar práticas sustentáveis porque não existem políticas públicas adequadas para regulamentá-lo nesse sentido.
Boas práticas de manejo deveriam ser utilizadas – e exigidas – tanto na agricultura convencional quanto na orgânica. A dicotomia entre os dois tipos de manejo foi criada artificialmente, por questões de mercado, e não com a intenção clara de ganhar sustentabilidade, com os produtos e técnicas mais seguros para a saúde e para o ambiente.
A ideia original da agricultura orgânica era fazer um melhor uso do solo e dos recursos limitados do planeta, e criar animais de maneira ética e sem maus tratos. Muitas práticas orgânicas, como rotação de culturas e manejo integrado de pragas, assim como a criação livre de animais, são técnicas que deveriam ser adotadas por qualquer produtor. Assim como o uso de variedades geneticamente modificadas que reduzam o uso de pesticidas, água e espaço deveria ser comum em qualquer manejo sustentável.
Talvez esteja na hora de acabar com certificações de mercado que só servem para induzir o consumidor a erro e forçam o produtor a utilizar técnicas inadequadas e produtos inferiores, piores para a saúde e o ambiente, apenas para poder vender mais caro.
Natalia Pasternak é bióloga, pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e presidente do Instituto Questão de Ciência