Mais brasileiros acreditam na importância das vacinas do que na validade das chamadas terapias alternativas, e quase 90% da população adulta aceita, mesmo que em parte, o fato de que a mudança climática é real e causada pela atividade humana. No entanto, quase metade dos brasileiros adultos rejeita um dos princípios fundamentais da Teoria da Evolução, o de que seres humanos e outros primatas descendem de um ancestral comum. E quase 40% da população adulta do país crê que o governo esconde alguma informação sobre extraterrestres.
Estes são alguns dos resultados de uma pesquisa nacional sobre compreensão pública da ciência conduzida em março pelo Datafolha, com exclusividade para o Instituto Questão de Ciência. Foram ouvidos mais de 2 mil brasileiros maiores de 16 anos, em 130 municípios de todas as regiões do país, numa amostra representativa da população brasileira. A margem de erro dos resultados é de dois pontos porcentuais, para mais ou para menos.
A pesquisa avaliou o grau de concordância dos entrevistados com uma série de afirmações que ou refletem consensos da comunidade científica (por exemplo, “É importante tomar vacinas pois trazem benefícios para a saúde”; “A Terra gira em torno do Sol”; “O aquecimento global e as mudanças climáticas provenientes de ação humana são um problema real que terá efeitos graves sobre a sociedade”) ou crenças pseudocientíficas (“Energia espiritual pode ter o poder da cura”; “Alienígenas visitaram antigas civilizações na Terra”; “Alimentos transgênicos, ou seja, alimentos geneticamente modificados, fazem mal à saúde”).
Maiorias e minorias
O resultado mostra um perfil nacional multifacetado, em que 97% das pessoas concordam com a importância das vacinas, mas onde 83% acham que a medicina alternativa é uma “boa opção para tratar doenças” e 66% acreditam no poder de cura da “energia espiritual”. A afirmação “O ser humano e o chimpanzé vêm de uma espécie de origem comum” é aceita por pouco mais da metade da amostra – 54% – e 73% acham que consumir transgênicos faz mal à saúde.
De acordo com a pesquisa, mais pessoas acreditam em teorias da conspiração envolvendo governos e alienígenas (38%) do que na segurança dos transgênicos para a saúde humana (27%), a despeito de a primeira afirmação ser pseudocientífica e a segunda, um firme consenso científico: levantamento da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, publicado em 2016, encontrou mais de 1,5 mil estudos confirmando que o consumo de transgênicos não tem impacto negativo sobre a saúde.
No lado positivo, exceto pela teoria da evolução e pelos transgênicos, os chamados negacionismos anticientíficos – a rejeição de afirmações endossadas pela comunidade científica – parecem ter muito pouca penetração, com apenas 3% das pessoas negando a importância das vacinas, 5% negando que a Terra gira em torno do Sol e 10% rejeitando a realidade e a gravidade da mudança climática.
Grupos
A análise do Datafolha permitiu dividir a amostra de entrevistados em quatro grupos de afinidade de acordo com o nível de concordância entre as respostas dadas.
O grupo mais próximo dos vários consensos científicos, representando 29% da amostra, é onde se encontra o maior grau de concordância com as afirmações: “A Terra gira em torno do sol”, “É importante toma vacinas pois trazem benefícios para a saúde”, “O ser humano e o chimpanzé vêm de uma espécie de origem comum” e “O aquecimento global e as mudanças climáticas provenientes de ação humana são um problema real ”.
Também é o grupo que mais discorda da ideia de que há benefícios na medicina alternativa, do poder de cura da energia espiritual, menos acredita que haja supostos malefícios no consumo de transgênicos e que menos acata a ideia de que haja interações entre humanos e alienígenas, no presente ou no passado. Neste grupo, a maior parte da amostra (75%) tem, como maior grau de escolaridade, ensino médio (49%) ou superior (26%).
O maior grupo, compreendendo 33% da amostra, mistura um complexo de crenças pseudocientíficas à preocupação com o meio ambiente: ao mesmo tempo em que aceita o consenso em torno da realidade e da gravidade da mudança climática, rejeita os transgênicos, abraça a medicina alternativa e as forças espirituais, e rejeita (com 62% de discordância) a tese da ancestralidade comum entre ser humano e chimpanzé. Aqui, a maior parte da amostra (78%) tem ensino fundamental (26%) ou médio (52%).
O terceiro conjunto, com 25%, se assemelha bastante ao anterior, mas abraça ainda as teses sobre alienígenas (100% concordam que o governo esconde o que sabe sobre os ETs, 63% que houve visitas alienígenas no passado) e é menos radical em sua rejeição da evolução (a opinião se divide em 50% a favor, 50% contra). Neste perfil, a maioria (79%) tem ensino fundamental (31%) ou médio (48%).
O grupo final destaca-se dos demais pela forte rejeição (74%) à tese da mudança climática antropogênica, e compõe 13% da amostra. Este grupo é formado por 91% de entrevistados com escolaridade máxima no fundamental (51%) ou médio (40%).
Entre fatos e métodos
Nos Estados Unidos, a Fundação Nacional de Ciência publica, a cada dois anos, seus Indicadores de Ciência e Engenharia, uma ampla pesquisa que inclui questões sobre a compreensão popular da ciência. Na edição mais recente da pesquisa, referente ao ano de 2016, a afirmação “seres humanos, em sua forma atual, desenvolveram-se a partir de outras espécies de animal” foi considerada “verdadeira” por 52% dos entrevistados.
Artigo recente no periódico PNAS aponta que, além do desconhecimento sobre fatos científicos, o problema da compreensão pública da ciência envolve ainda o desconhecimento dos métodos e processos da atividade científica.
Uma pessoa aceitar a ideia da ancestralidade comum, por exemplo, apenas com base na palavra de alguma autoridade, sem ter ideia do que isso significa ou de onde vem essa conclusão, deixa aberta a porta para que a crença seja abandonada em atendimento a uma autoridade mais carismática.
As inconsistências encontradas nos perfis levantados pela pesquisa Datafolha, mesmo nas faixas de maior escolaridade (82% dos entrevistados com ensino superior acreditam na eficácia da medicina alternativa e 73% creem que transgênicos fazem mal para a saúde) sugerem que a “ignorância epistêmica” – o desconhecimento dos processos que geram e justificam o conhecimento científico – continua a ser um ponto cego dos esforços de educação e comunicação da ciência.
Esse mesmo problema já aparecia, ainda que de forma indireta, nos resultados da pesquisa de Percepção Pública da Ciência, realizada pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) e pelo então Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) em 2015. Esse levantamento apontava que a população brasileira tinha uma visão francamente positiva da ciência, com 60% dos entrevistados declarando “interessados” ou “muito interessados” em temas científicos, e 78% defendendo mais investimentos na área.
No entanto, a mesma pesquisa indicava que uma das principais preocupações do público era a segurança dos transgênicos para a saúde. Além disso, apenas 12% dos entrevistados na enquete de 2015 se lembraram de alguma instituição nacional de pesquisa, e só 6% lembraram-se do nome de um cientista brasileiro. A despeito disso, mais da metade dos respondentes afirmaram acreditar que “cientistas têm conhecimentos que os tornam perigosos”.
“Cidadãos podem ser mal informados e não informados ao mesmo tempo”, aponta o artigo na PNAS, traçando a distinção entre “não informado” (isto é, ignorante dos fatos) e “mal informado” (crente em ideias e conceitos que não correspondem aos fatos). “Por exemplo, cidadãos podem estar não informados sobre como funcionam os processos da ciência e mal informados dos fatos de alguma questão científica específica”.
Isso tudo sugere que tão importante quanto informar, é explicitar o processo gerador da informação: “comunicar ciência” efetivamente é, além da comunicação de dados e resultados, a comunicação de um modo de pensar.
Este texto foi alterado no dia 14/5/2019, com a remoção da afirmação de que 44% da amostra se concentra na região Sudeste, substituída pela de que a amostra é representativa da população nacional, o que reflete melhor a significância da pesquisa.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência