Com base em modelos matemáticos, a estatística fornece métodos seguros para a coleta, organização e análise de dados antes da tomada de decisões. É uma ferramenta fundamental em qualquer ramo de atividade. Ajuda empresas a produzir o que os clientes querem, governos a identificar as áreas mais carentes de investimentos, eleitores e candidatos a se posicionar nas eleições. Os levantamentos estatísticos, se conduzidos adequadamente, produzem resultados cada vez mais precisos – por isso não é nenhum pecado tratar essa modalidade da matemática aplicada como ciência.
A interferência humana, porém, pode levar a eventuais interpretações errôneas dos resultados estatísticos. As pesquisas de campo também podem ser sutilmente (ou grosseiramente) manipuladas com o objetivo de esconder um ou outro fato desagradável – e, nesse caso, a estatística servirá para maquiar a realidade, embalando os resultados num falso manto de seriedade e induzindo os cidadãos ao erro. Isso era mais comum no passado, quando os levantamentos se guiavam por parâmetros bem menos rigorosos que os atuais, e também tinham um alcance menor.
O escritor norte-americano Mark Twain até popularizou uma frase a respeito dos desacertos estatísticos no século 19 que se tornaria falsa no mundo de língua inglesa: “Há três espécies de mentiras: as mentiras, as malditas mentiras e as estatísticas.” Outro escritor dessa época, o italiano Pitigrilli, emendou, no mesmo tom jocoso: “Segundo a estatística, se eu comi um frango e você não comeu nenhum, teremos comido, em média, meio frango cada um.”
Os números do desemprego
Hoje, não se discute mais a importância da estatística no papel de radiografar a realidade, embora volta e meia seus métodos de apuração ainda sejam questionados – geralmente por governos – ao apontar resultados indesejáveis.
Foi o que aconteceu recentemente, quando o presidente Jair Bolsonaro criticou os critérios do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) para a apuração do índice de desemprego no país. “A pesquisa parece ter sido feita para enganar a população”, disparou, sugerindo ser mais confiáveis os dados divulgados pelo Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados), que informam simplesmente quantos empregos foram gerados ou perdidos a cada mês.
O dado do IBGE que incomodou Bolsonaro foi o crescimento de 0,8% no desemprego no trimestre compreendido entre dezembro de 2018 e fevereiro de 2019, em relação ao trimestre anterior, de setembro a novembro de 2018. Com isso, o total de desocupados chegou a 12,4% da força de trabalho, correspondendo a 13,1 milhões de pessoas. Essa notícia, divulgada no final de março, não combinava, na cabeça do presidente, com os relatórios do Caged informando sobre a geração de 49.600 empregos em janeiro e outros 173.139 em fevereiro.
Explicando
Apesar do aparente desencontro de cifras, não havia exagero por parte do IBGE nem do Caged, já que as duas instituições usam métodos distintos e complementares para aferir a realidade. Se Bolsonaro tivesse considerado os dados do Caged referentes a dezembro de 2018, por exemplo, ou esperado mais um mês pela divulgação de novos resultados, tanto do IBGE como do Caged, perceberia facilmente que as curvas dos dois órgãos acabam convergindo ao longo do tempo, apesar do descompasso entre uma e outra.
Agora, no final de abril, tanto o Caged quanto o IBGE divulgaram números negativos sobre a situação do emprego. No dia 24, o Caged anunciou o fechamento de 43.196 vagas durante o mês de março. No dia 30 de abril, o IBGE revelou que o índice de desemprego no primeiro trimestre de 2019 foi de 12,7%, aumentando o contingente de desocupados para 13,4 milhões.
Em relação ao trimestre anterior (outubro a dezembro de 2018), quando os desempregados somavam 12,2 milhões, houve um aumento de 10,2%, segundo o IBGE; já na comparação com o mesmo período (janeiro a março) de 2018, quando havia 13,6 milhões de pessoas sem trabalho, o índice de desemprego caiu 1,5%.
Ou seja, houve uma visível queda no emprego no último trimestre, mas uma ligeira melhora em relação a um ano atrás. Ambos os dados estão corretos, à disposição de avaliações pessimistas ou moderadamente otimistas, num caso e no outro. Bolsonaro poderia se valer da comparação anual, mais favorável ao seu governo, iniciado em 2019.
Para o professor da Unicamp José Dari Krein, especialista em Economia Social e do Trabalho, colocar em dúvida os resultados do IBGE reflete desinformação e, até, leviandade. “O IBGE tem feito um grande esforço nos últimos anos para se manter atualizado com os métodos de pesquisa mais avançados. Ele não só é uma instituição respeitada internacionalmente, como se tornou um órgão de referência mundial na produção de estatísticas”, afirma Krein, que integra oCentro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho do Instituto de Economia da Unicamp.
PNAD
Desde 2012, o IBGE investiga o mercado de trabalho no país por meio daPNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), cuja metodologia, recomendada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), permite comparar os resultados obtidos aqui com os de outros países. A cada trimestre, o órgão despacha 2 mil agentes para visitar 210 mil domicílios de 3.500 municípios e colher dados sobre a situação laboral dos moradores com 14 anos ou mais.
No levantamento divulgado no final de abril, detectou, além dos 13,4 milhões de desempregados, 28,3 milhões de pessoas em diferentes situações precárias de trabalho, realizando tarefas eventuais sem proteção jurídica, e 4,8 milhões de desocupados que deixaram de procurar emprego por se perceberem sem chance de arrumar um – os chamados desalentados.
A PNAD oferece uma fotografia do mercado de trabalho do país inteiro, a partir de uma amostragem feita com rigor científico. Já o Caged fornece o número de empregados contratados e demitidos em cada mês, segundo registros do Ministério do Trabalho, atualizando assim o total de brasileiros com trabalho regular ao longo do ano – um universo de 38,5 milhões de pessoas, atualmente.
Em dezembro, no encerramento do ano fiscal, os dados do Caged são quase sempre negativos: no último mês de 2018, por exemplo, foram fechados 334.462 postos de trabalho. Assim como a onda de demissões de dezembro é esperada, a recuperação do emprego em janeiro e fevereiro também é, como mais uma vez mostrou o Caged neste ano.
No caso da PNAD, porém, a tradicional crise de emprego de dezembro só é relatada no mês seguinte, o que faz inflar o número de demitidos em janeiro, num movimento contrário, e aparentemente contraditório, ao sugerido pelo Caged. Considerados os dados do Caged de dezembro de 2018, o saldo entre contratações e demissões entre esse mês e fevereiro de 2019 resultou negativo, com a perda de 111.723 postos de trabalho.
Como se vê, é preciso levar em conta as particularidades das duas pesquisas e analisar seus resultados ao longo de períodos maiores, de ao menos um trimestre, para interpretar corretamente as tendências do mercado de trabalho. É importante considerar, também, efeitos nem tão evidentes provocados pelas demissões.
Por exemplo: quando alguém perde o emprego, é comum que o filho e o cônjuge, se não trabalhavam, passem a procurar emprego para repor a renda familiar, o que leva os três a ser relacionados, temporariamente, como desocupados. Como isso pode ser percebido na leitura dos estudos de campo? Com a manutenção de métodos científicos ao longo do tempo, realizados com rigor e interpretados com sensibilidade por especialistas em estatística. (Texto atualizado às 18h52)
Luiz Maciel é jornalista profissional, graduado na ECA/USP e atuante nas áreas de economia e tecnologia. É colaborador do jornal Valor Econômico e de revistas das editoras Globo e Custom