Certamente, todos já viram um filtro de barro. Com algumas centenas de reais, você pode ter água filtrada em casa. Porém, é possível gastar pelo menos 20 vezes mais, se o seu filtro de barro possuir as palavras "amor e "gratidão" grafadas em alto relevo na superfície.
De acordo com o site que comercializa esse objeto, o filtro possui "um sistema de purificação de água único no mercado, que produz água contendo a memória celular da água primordial, a água no estado hexagonal, que só é encontrada em raríssimos lugares do nosso planeta... o Dr. Masaru Emoto defendeu a capacidade do Habitah Fresh Vittro de introduzir as vibrações das palavras ‘amor e gratidão’ na água de forma permanente”. É claro que, no site, existe uma explicação de que tudo isso é possível por causa da física quântica.
O "doutor" Masaru Emoto, de acordo com o seu site oficial, conseguiu o seu "PhD" na Open International University na Índia, que figura de uma lista de instituições suspeitas do site QuackWatch. Não dá para saber exatamente qual o tipo de certificação que ele conseguiu nessa universidade, mas alguns programas têm a duração de um ano. Emoto publicou alguns artigos em revistas "científicas" com reputações semelhantes à instituição onde conseguiu o seu PhD (uma delas é o Journal of Scientific Exploration, onde foi publicado o trabalho Effects of Distant Intention on Water Crystal Formation: A Triple-Blind Replication, do qual Emoto é coautor). Mas o que ele descobriu? Bem, na verdade, ele não descobriu nada.
O que Emoto fez foi publicar estudos, mal feitos, em algumas revistas, e depois escreveu livros que venderam milhões de exemplares. Nesses textos, ele afirmava que de acordo com o sentimento e palavras direcionados a amostras de água, após o congelamento dessas amostras, elas apresentariam cristais mais ou menos bonitos (diga-se de passagem, a beleza não é lá um fator objetivo que pode ser considerada como parâmetro científico). Em suma, a consciência da pessoas poderia alterar a forma dos cristais de gelo. Essa ideia da água com "boas energias e propriedades curativas" permeia também religiões como o espiritismo, e sua água fluidificada, e algumas vertentes da religião evangélica com a sua garrafa em cima da televisão.
No artigo Effects of Distant Intention on Water Crystal Formation: A Triple-Blind Replication, Emoto e os colaboradores encheram seis garrafas de água e as separaram em três pares. Um par recebia orações, outro só ficava na mesma sala, e o último, em outra sala.
Após as orações, 50 gotas d’água de cada garrafa foram pingadas em placas de Petri e posteriormente congeladas. Fotos dos cristais de gelo foram analisados com base em critérios subjetivos, entre eles beleza, por diversas pessoas. O resultado final não mostrou nenhuma diferença significativa entre os três pares de garrafas.
Apesar dos autores tergiversarem no final do texto, dizendo que poderia existir uma fraca evidência da influência das orações na formação dos cristais, o fato é que o experimento é mal conduzido e fortemente influenciado por viés de confirmação: ou seja, qualquer resultado proveniente dele não pode, nem deve, ser levado a sério.
Além disso, mudanças estruturais nos cristais podem ser identificadas através de parâmetros objetivos - não há a necessidade de se recorrer a critérios não científicos como a beleza, por exemplo.
A despeito do experimento acima apresentar diversas falhas de desenho, procedimento e embasamento teórico para que fizesse algum sentido (além de o próprio artigo mostrar que não houve nenhuma diferença entre as águas com e sem oração), Emoto publicou diversos livros com fotografias de cristais de gelo, tentando convencer o público de que haveria algum efeito da consciência sobre a formação dos cristais.
Esses livros venderam milhões de exemplares, conforme já mencionamos. Mesmo após o falecimento de Emoto, você ainda pode desperdiçar o seu dinheiro numa loja com picaretagens aquáticas.
A questão sobre a qualidade das publicações já foi abordada em mais de um artigo nesta revista, por exemplo, aqui e aqui. A verdade é que podemos achar quase qualquer bobagem publicada em algum artigo “científico”, por causa do aparecimento de revistas predatórias, a criação de revistas para abrigar certos nichos de pesquisa que raramente conseguem espaço em revistas respeitadas pela comunidade científica além, é claro, de eventuais artigos de qualidade duvidosa que passam mesmo pelos processos mais rigorosos de revisão por pares.
O artigo de Emoto é um desses trabalhos ruins, seguido pela publicação de livros, que certamente não passaram pelo crivo de nenhum cientista sério.
Água com memória?
Análoga à ideia errada de Emoto, de que a água reagiria à consciência humana, existe uma tentativa irracional de atribuir à agua algo como “memória”.
É notório que medicamentos homeopáticos submetidos a ultradiluições não contêm nem uma molécula sequer do suposto princípio ativo: remova-se o rótulo de um medicamento homeopático e ninguém, nem nenhuma técnica, será capaz de descobrir para que serve o medicamento.
A inexistência de princípio ativo no medicamento homeopático faz com que a pessoa que tem fé na homeopatia invoque teorias e experimentos estapafúrdios como os que foram publicados por Jacques Benveniste na revista Nature (veja um relato sobre este artigo aqui).
Apesar de o trabalho de Benveniste nunca ter sido retratado (retirado do registro oficial de publicações da revista pelo editor), foi desmentido ad nauseam pela comunidade científica e foi, inclusive, objeto de uma publicação crítica da própria Nature assinada por J. Maddox, J. Randi e W. W. Stewart, High-dilution experiments a delusion.
Apesar da comunidade científica séria não poder evitar a publicação de artigos de qualidade duvidosa, análises isentas de crenças pessoais para elaboração de políticas públicas deveriam ser algo corriqueiro.
Muitas vezes, a falta de conhecimento científico dos governantes eleitos mistura-se a convicções pseudocientíficas e o resultado pode ser algo desastroso como, por exemplo, a utilização de homeopatia em um programa para a recuperação de dependentes químicos em crack e cocaína na cidade de Itajaí (SC).
Marcelo Yamashita é doutor em Física, professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência