Liberar antibiótico sem receita? Melhor não!

Questão de Fato
25 jan 2019
Cápsulas do antibiótico cefalexina
Cápsulas do antibiótico cefalexina

A multiplicação dos microrganismos resistentes a medicamentos, impulsionada principalmente pelo uso irresponsável de antibióticos, é uma das dez grandes ameaças à saúde global em 2019, listadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). No Brasil, um senador da República propõe a liberação da venda de antibióticos sem receita médica. Como diz um clichê que anda muito popular nas redes sociais, o que poderia dar errado?

Tentativas de usar o processo legislativo, ou o poder discricionário do executivo, para atropelar a ciência não são novidade no Brasil, e as consequências são sempre desastrosas para a população.

Já tivemos os casos da fosfoetanolamina, a famigerada pílula do câncer; as práticas integrativas no SUS; os inibidores de apetite liberados por decreto. Casos em que sempre figuram representantes eleitos, tomando decisões que vão contra consensos científicos internacionais, contra pareceres técnicos, contra as recomendações das sociedades científicas e contra nossa agência regulatória, a Anvisa.

"Corporativismo"

O novo ataque conjugado a tudo isso parte do Senador Guaracy Silveira (PSL-TO), que não se conforma com a determinação de 2010 da Anvisa, exigindo receita médica, com retenção de cópia, na compra de antibióticos.

O projeto de lei do Senado 545/2018, apresentado por Silveira, revela uma espantosa ingenuidade quanto à ciência que embasa a questão dos antibióticos e que aponta os riscos, para a saúde pública, de seu uso indiscriminado. O texto da proposta, que está em análise na Comissão de Assuntos Sociais (CAS), prevê a compra de antibióticos, sem necessidade de receita médica, em regiões onde não há atendimento médico adequado.

Os argumentos do senador: ele alega que as restrições impostas pela Anvisa representam uma medida que “é resultante do corporativismo dos médicos e dificulta o acesso da população ao tratamento”.

“Trago um exemplo para explicar melhor minha indignação: a Amoxicilina, antibiótico muito usado para combater dores simples de garganta, custa R$ 16 nas farmácias de Brasília. Mas a consulta médica para se conseguir a receita custa R$ 200, R$ 300. Isso está certo? Isso é justo com a população mais pobre?”

Duas considerações que podem ajudar o senador a pôr sua indignação no contexto devido (ou, mesmo, a livrar-se dela): a primeira é que a solução para regiões onde não há atendimento médico público adequado – consultas médicas pelo SUS, afinal, são cobertas pelo dinheiro dos impostos – é prover atendimento médico adequado, não liberar a automedicação ampla e irrestrita, o que só interessaria a donos de farmácia mais preocupados com o lucro imediato do que com a saúde de seus clientes.

A segunda é que, quando tratamos de um assunto científico e de Saúde Pública, profissionais dotados de competência técnica devem ser consultados. Ninguém espera que o motor de um avião seja regulado com base no achismo de curiosos indignados, e sim na opinião profissional de mecânicos e engenheiros gabaritados. Senão, é alta a probabilidade de o avião cair, matando todos a bordo. E o fato é que políticas ruins de saúde pública podem matar muito mais gente do que o pior dos desastres aéreos!

Entendendo a restrição

Mas, enfim, por que antibióticos precisam ser regulados? É possível pôr muita coisa esquisita na conta dos interesses corporativos da classe médica, mas o controle do uso de antibióticos não está na lista.

Em 2015, a OMS reconheceu o surgimento de bactérias multirresistentes (multi-R) como um problema de saúde pública mundial, e lançou diretrizes para combatê-lo. O uso indevido de antibióticos, tanto na clínica como na criação de animais, facilita o surgimento de bactérias resistentes. Há linhagens multi-R, que, como o nome diz, são resistentes não somente a um, mas a diversos e, até mesmo, a todos os antibióticos conhecidos. Quando uma dessas bactérias infecta uma pessoa, não há o que fazer: o agente infeccioso é imune a todos os medicamentos disponíveis!.

O problema acontece porque as bactérias se reproduzem muito depressa – algumas espécies produzem novas gerações de 20 em 20 minutos, têm taxas de mutação muito altas  e trocam informação genética entre si com muita facilidade.

Assim, a probabilidade de uma bactéria apresentar uma mutação que confira resistência a determinado antibiótico é alta. Esse gene não só será transmitido para a “prole” da bactéria quando ela se dividir, ele também será compartilhado com as bactérias vizinhas, por transferência genética. Dá para perceber que um único gene de resistência pode se disseminar muito rapidamente por uma população inteira de bactérias?

Em laboratório, a maneira mais fácil de “encontrar” uma bactéria resistente a um antibiótico (chamamos esse processo de seleção artificial) é cultivar uma população de bactérias em um meio de cultura contendo o fármaco. As bactérias que forem sensíveis vão morrer, e aquelas resistentes ao produto vão sobreviver. Foram selecionadas.

Assim, teremos uma população inteira resistente ao antibiótico da nossa escolha. Esse mesmo processo acontece no corpo humano, e nos animais de criação. Agora, imagine quantas pessoas e animais utilizam antibióticos diferentes. E imagine que esses antibióticos são descartados nos esgotos, nos solos, e além das nossas bactérias, as bactérias do ambiente também têm contato com os antibióticos, e com genes de resistência! E podem passar esses genes umas para as outras. Vira uma bagunça, não? E nesta bagunça, a probabilidade de termos linhagens multi-R é muito grande.

Elas são selecionadas pelos antibióticos presentes no ambiente, no  organismo humano  e nos animais. Assim, quanto mais antibiótico circulando por aí, mais bactérias resistentes teremos. Por isso, é preciso reduzir e controlar o uso. Não pode usar à toa, sem necessidade, nem pode usar de forma errada.   

Regras

As recomendações da OMS são, justamente, de regulamentar estes medicamentos, para minimizar o surgimento de bactérias resistentes. Além das diretrizes para diminuir o uso de antibióticos na criação animal, a OMS recomenda o uso consciente na clínica humana, da seguinte forma:

Aconselhar corretamente o paciente e prover informação adequada, por escrito, quando prescrever antibióticos;

Encorajar o paciente a tomar o curso completo do tratamento, e se não for possível, descartar corretamente qualquer medicamento antimicrobiano não utilizado;

Trabalhar junto aos farmacêuticos para prescrever doses suficientes para completar um curso de terapia;

Recomendar outras terapias para condições menos severas;

Prover informação atualizada sobre antimicrobianos para médicos e profissionais da saúde que têm contato com pacientes;

Monitorar de forma eficiente o uso de antimicrobianos dos pacientes

 

O projeto de lei do senador Silveira consegue violar TODOS os preceitos da OMS de uma só vez.

Uma recomendação muito comum, que quase todos já ouvimos de um médico, é a importância de terminar o tratamento. Ou seja, se o médico mandou tomar sete dias de antibiótico, é muito importante cumprir esse prazo, mesmo que os sintomas desapareçam depois de dois dias.

É isso que a OMS quer dizer quando fala no “curso completo” do antibiótico. Quando paramos um tratamento no meio, ainda não eliminamos toda a população de bactérias que estão causando a doença, e assim aumentamos a chance de selecionar as bactérias resistentes que ainda estão vivas. Quando fazemos muitos tratamentos repetidos com antibióticos, o risco também aumenta. Cada vez que tomamos um antibiótico, existe um risco de selecionarmos bactérias resistentes. Por isso é tão importante seguir as recomendações médicas. E por isso, o acompanhamento do paciente também é essencial.

Outro fator de risco de administrar um antibiótico na ausência do médico é o erro de diagnóstico. Quando o senador fala do custo do medicamento para “uma simples dor de garganta”, ignora que muitas dores de garganta são infecções causadas por vírus, assim como resfriados e gripes. Antibióticos só servem para infecções causadas por bactérias. Sem um médico para realizar o diagnóstico, como os pacientes vão saber quando usar o antibiótico? E se usarem indevidamente e para qualquer resfriado, vão aumentar muito a probabilidade de selecionar uma bactéria resistente àquele antibiótico!

Some-se a isso o fato de que, em regiões remotas, a variedade de antibióticos disponível tende a ser menor. Ou seja, rapidamente podemos chegar a uma situação onde uma pessoa está infectada por uma bactéria resistente ao único antibiótico disponível.

O projeto de lei de Silveira representa, portanto, um perigo para a saúde pública, e para a saúde, justamente, dos cidadãos que o parlamentar julga estar protegendo.

Como  no caso do avião “tunado” por curiosos, pessoas podem morrer quando a ciência é ignorada na formulação de políticas públicas. E nunca é demais repetir: a natureza não é uma democracia, fatos científicos não estão abertos a votação.  Legisladores, juízes e governantes que ignoram essas verdades fundamentais, mesmo que com a melhor das intenções, põem suas populações em grave perigo.

Natalia Pasternak é pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, coordenadora nacional do festival de divulgação científica Pint of Science para o Brasil e presidente do Instituto Questão de Ciência

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