Carvão: use para assar comida, não para fazer "detox"

Questão de Fato
28 nov 2018
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Antiga mina de carvão nos Estados Unidos
Antiga mina de carvão nos Estados Unidos

A despeito da minha biografia ser desinteressante para a imensa maioria das pessoas, acho que cabe aqui um breve comentário a respeito. Cresci em uma família de espíritas. Fui batizado na igreja católica, umbanda e candomblé. Cresci sendo levado em um pediatra homeopático. Já fiz acupuntura, quiroprática, curso de médiuns e cromoterapia, tomei fitoterápicos e carvão ativado. Até fui em um curso de parapsicologia do padre Oscar Quevedo.

Tudo isso não me torna, obviamente, uma Gwyneth Paltrow, mas não posso ser acusado de não conhecer pseudociência e coisas correlatas. E por falar em pseudociência, o texto que se segue aborda um material presente tanto em coisas seriíssimas (churrasco, por exemplo) como em outras coisas não tão sérias assim: o carvão.

O carvão é predominantemente formado de carbono. O tipo utilizado no churrasco provém, basicamente, da queima direta da madeira. Já o carvão dito “ativado”, utilizado em filtros de água ou em procedimentos médicos de emergência, relacionados à desintoxicação, passa por um processo mais complicado, que aumenta substancialmente a porosidade da superfície dos grãos, fazendo com que a sua capacidade de absorção de partículas seja amplificada.

Quando uma pessoa ingere uma grande quantidade de alguma substância tóxica (álcool, remédio, veneno, etc.) o procedimento médico de emergência consiste na utilização do carvão ativado, que funciona como uma esponja química, retirando o material nocivo antes dele ser absorvido pelo corpo.

Como já mencionei em textos anteriores, a primeira etapa da criação de uma pseudociência é assumir o disfarce de ciência, através da apropriação indevida do discurso científico. No caso específico do carvão, o processo de desintoxicação, mencionado no parágrafo anterior, é indevidamente estendido para afirmar que o pó de carvão ativado pode ser misturado a alguma bebida para desintoxicar o corpo. A indústria de cosméticos também utiliza o mesmo discurso de desintoxicação para vender sabonetes e pastas de dente com carvão.

A eliminação de toxinas presentes no corpo humano é feita primordialmente pelos rins e fígado. A desintoxicação com carvão ativado,  feita em casos de emergência quando ocorre a ingestão de alguma substância tóxica,  funciona apenas quando o composto químico não foi absorvido pelo corpo, ou seja,  ainda está em algum lugar do sistema digestório.

Uma vez que a toxina é absorvida, o trabalho de desintoxicação fica a cargo de rins e fígado: não adianta tomar a limonada, passar o sabonete ou utilizar a pasta de dente com carvão.

 "Ah, mas mal não faz". De fato, o carvão ativado ingerido não será absorvido pelo corpo. Mas note que seu poder de alta absorção não distingue o que é bom do que é mau para o corpo humano. Portanto, os nutrientes, vitaminas e sais minerais, importantes para a saúde, serão também absorvidos e eliminados. O saldo final é, portanto, negativo.

O falso efeito desintoxicante, ou “detox”, utilizado hoje no marketing da "indústria do bem-estar" provavelmente aparece há muito mais tempo em outro contexto, mas com o mesmo espírito (com o perdão do trocadilho).

No caso das superstições que antecedem as aplicações pseudocientíficas, o efeito detox transcende o corpo e assume  propriedades esotéricas. Uma busca no Google com uma combinação das palavras carvão, espiritismo ou feng shui retorna, em meio a um diverso material sobre purificação do ambiente contra as energias malignas, o seguinte texto:

"Insira o carvão dentro do copo com água e coloque-o atrás da porta de entrada. Faça uma mentalização para que todas as energias negativas sejam sugadas pelo carvão. Troque esta proteção a cada três meses ou, antes, se o carvão submergir. A água deve ser jogada no mar, num rio ou ralo, e o carvão, no lixo. O mesmo copo pode ser usado para um novo ritual.".

Em geral, não cabe à ciência opinar em questões que, a priori, já não fazem nenhum sentido ("mentalização para manipular energias negativas" - lembrando a famosa frase do ganhador do Nobel em Física Wolfgang Pauli, "isto sequer está errado") e outras que não são falseáveis (o carvão absorve energia negativa, mas pode, ou não, afundar durante o prazo de validade de três meses).

A verdade é que se você fizer um experimento com diversos pedaços de carvão com a mesma geometria, imersos em água, alguns afundarão antes de outros, e isto está relacionado, apenas, com a absorção da água pelo pedaço de carvão.

Ao utilizar uma pasta de dente ou sabonete com carvão ativado, ou ainda uma limonada que se torna preta por causa da adição de carvão, saiba que você está apenas sendo alvo do marketing dos produtos detox – que, se na grande maioria das vezes não fazem o que prometem, em outras tantas ainda fazem mal: ou seja, o saldo final, quando não é nulo, é negativo. Recomendo, portanto, que continue utilizando o seu carvão para fazer churrasco. Neste caso, o saldo quase sempre é muito positivo.

Marcelo Yamashita é doutor em Física, professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência

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