Dez perguntas para quem leva a ciência a sério

Editorial
30 ago 2022
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Iniciada a temporada de entrevistas e debates entre os candidatos à Presidência do Brasil, vemos com preocupação (mas, infelizmente, sem surpresa) o que poderia mostrar-se um diálogo franco sobre o futuro do país ser engolido e digerido pelo que o filósofo marxista francês Guy Debord tão bem diagnosticou como “sociedade do espetáculo”, um jogo de performance e aparência projetado para impressionar e mobilizar sem tocar em nada de substancial.

Ausência de substância é exatamente o que transparece nos trechos dos programas de governo que tratam de política científica, de acordo com avaliação publicada pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Citando o texto do Jornal da Ciência da SBPC:

“Em linhas gerais, a Ciência apareceu fortemente atrelada ao cenário empreendedor, como uma frente importante para o desenvolvimento econômico do País. A maioria dos candidatos também defendeu o fortalecimento de um sistema nacional para CT&I, o aumento das bolsas de pesquisa disponibilizadas pelos órgãos federais e uma melhor estrutura orçamentária para as universidades públicas”.

Dizer que a ciência é valiosa, requer mais investimentos e tem um papel importante no desenvolvimento econômico são platitudes que se encaixam bem na estrutura do espetáculo: linhas de diálogo na boca de atores cujos verdadeiros propósitos e convicções talvez sejam – e, no caso específico do incumbente, provavelmente são – diametralmente opostos.

Em um de seus aforismos, Debord adverte que “o espetáculo que falsifica a realidade é, a despeito disso, um produto dessa realidade”, e que o mundo real, invadido pela contemplação do espetáculo, “acaba absorvendo-o e alinhando-se a ele”. Se nos dermos por satisfeitos com as platitudes, seremos, por ingenuidade ou cinismo, parte da grande falsificação.

Para tentar furar a bolha do espetáculo, o Instituto Questão de Ciência elaborou uma série de questionários sobre política científica que foram enviados, meses atrás, aos quatro candidatos (então, ainda pré-candidatos) mais bem posicionados nas pesquisas. As questões iniciais eram personalizadas, mas a parte principal do documento era firmada por dez perguntas iguais para todos. As questões foram inspiradas numa iniciativa de 2012 da revista Scientific American para a eleição presidencial dos EUA.

Jamais obtivemos resposta. De nenhum deles.

Tomamos, agora, a iniciativa de publicar as dez questões que consideramos fundamentais para qualquer discussão séria – para além dos gestos vazios e promessas vagas – a respeito do papel da ciência na sociedade brasileira, o futuro da ciência no Brasil e o uso da ciência como ferramenta de gestão pública.

Esperamos que os eleitores, formadores de opinião e formuladores dos planos de governo considerem estas perguntas e usem-nas como uma oportunidade de elevar ao menos uma parte do debate eleitoral – aquele em torno de temas científicos – acima do nível de mero espetáculo.

 

1. O Brasil conta, na esfera pública, com 69 Universidades Federais, 40 Universidades Estaduais e um grande número de centros de pesquisa e de formação profissionalizante. Como você enxerga a previsão constitucional de autonomia universitária? Existe um plano para a melhor integração e especialização das instituições do ecossistema público de ensino, pesquisa e extensão?

2. A ciência de base gera conhecimento que a indústria depois emprega em produtos e processos de alto valor agregado. No Brasil, isso é raro. 90% dos royalties da USP vêm de uma única patente, a do remédio Vonau. Como podemos melhorar a integração entre academia e setor privado para que a ciência gere mais renda?

3. O clima da Terra está mudando e a discussão política se divide tanto sobre a ciência quanto sobre a melhor resposta a se tomar. Quais são seus pontos de vista sobre as mudanças climáticas e como sua administração agiria sobre esses pontos de vista?

4. A diversidade biológica fornece alimentos, medicamentos e muitos outros recursos dos quais dependemos todos os dias. O número de espécies está diminuindo em um ritmo alarmante como resultado da atividade humana. Que medidas você tomará para proteger a diversidade biológica?

5. A gestão estratégica de matrizes energéticas pode ter impactos econômicos, ambientais e de política externa. Como você vê a evolução do cenário de energia nos próximos 4 ou 8 anos e, como presidente, qual será sua estratégia de energia?

6. Como seu governo equilibraria os interesses nacionais com a cooperação global ao enfrentar ameaças esclarecidas pela ciência, como doenças pandêmicas e mudanças climáticas, que vão além das fronteiras nacionais?

7. Vacinas estão sendo uma medida sanitária primordial para o combate à COVID-19. Enquanto isso, o sarampo está ressurgindo devido à diminuição das taxas de vacinação, e grupos organizados tentam semear, na opinião pública, temor e desconfiança em relação às vacinas. Como seu governo vai lidar com o sentimento antivacinas?

 8. Muitas espécies de peixes são pescadas além de limites sustentáveis, os recifes de coral estão ameaçados pela acidificação das águas e grandes áreas do oceano e dos litorais estão poluídas. Que esforços seu governo terá em mente para atenuar problemas ambientais nos mares e evitar a extinção de espécies importantes comercialmente?

9. Em uma democracia, decisões justas precisam ser embasadas por dados científicos. Como a ciência informaria os processos de regulamentação e de tomada de decisão em seu governo? Você daria liberdade e ouvidos para pesquisadores universitários e agências federais como a Anvisa, sem pressão política?

10. Grupos de interesse organizados na sociedade, seja por razões ideológicas ou econômicas, rotineiramente buscam influenciar a formulação de políticas públicas. Em vários setores – por exemplo, política agrícola, climática, de saúde pública – algumas dessas influências vão na contramão da evidência científica, por exemplo, com a negação da mudança climática ou na promoção de terapias ditas “integrativas e complementares” no SUS. Como seu governo lidará com demandas e políticas que contrariam a ciência?

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