O governo federal, na figura do Ministério da Saúde, encaminhou, no sábado, 12, ao Supremo Tribunal Federal (STF) o que seria a forma final do Plano Nacional de Vacinação contra COVID-19. O documento (PDF aqui), embora superficialmente correto – ao prever, por exemplo, prioridade para a vacinação de idosos, trabalhadores de saúde, indígenas –, continha, quando analisado em detalhe, uma série de omissões graves e, até mesmo, erros crassos de informação e de conceitos científicos fundamentais, nas tabelas que descrevem os tipos de vacina, já disponíveis ou em vias de assim tornarem-se, para conter o SARS-CoV-2.
Para ficar apenas num par das omissões mais gritantes: o plano exclui da lista de prioridades a população carcerária, no que parece um aceno do governo federal à parcela, que infelizmente parece ser expressiva, de sua base para quem “bandido bom é bandido morto”.
Se a importância de vacinar uma população que vive em condições desumanas de aglomeração e falta de higiene não é autoevidente para alguém, explicamos: a população carcerária não está isolada no restante da sociedade. Presidiários têm contato com parentes, nos dias de visita; com policiais e agentes penitenciários; com seus advogados. Vacinar prioritariamente os encarcerados não é um favor que se faz a eles, furando fila e passando para trás o sempre ressentido “cidadão de bem”, mas uma forma de privar o vírus de uma zona segura de reprodução e disseminação.
Outra omissão é a exclusão da vacina Coronavac, desenvolvida na China, licenciada para o Instituto Butantan. Caso os resultados dos testes de eficácia, a serem divulgados nos próximos dias, forem adequados como se espera, não há razão técnica ou sanitária para mantê-la fora do plano. O que há é a sinofobia disseminada pelo presidente da República entre seus “cidadãos de bem”.
Inadequado como é, o plano foi encaminhado ao STF com a aparente anuência de uma impressionante lista de nomes de eminentes médicos e cientistas, ostensivamente apresentados como apoiadores ou subscritores do documento. Poucas horas depois da divulgação do documento, dezenas dos nomes apresentados ali já tinham vindo a público repudiar o material e dizer que não haviam elaborado, aceitado ou referendado nada daquilo.
Prima facie, o que o Ministério da Saúde fez configura crime de falsidade ideológica: submeter ao Judiciário um documento com assinaturas falsas. Tentativas de contornar a situação envolveram a alegação de que os nomes ali configuram uma lista de “consultores técnicos”, não de autores ou apoiadores. Contra essa versão, milita a notável ausência da palavra “consultores” acima da lista de especialistas independentes (que aparecem sob a rubrica "elaboradores", o que é quase sinônimo de "autores"). Teria o ministro-general Eduardo Pazuello confiado a elaboração final de um documento solicitado pela mais alta instância do Judiciário brasileiro a um estagiário desastrado, sem acesso a bons dicionários?
O que resta, de qualquer modo, é uma tentativa – deliberada ou não – de dotar o documento entregue ao STF e, por meio dele, à sociedade como um todo, de uma aura de credibilidade científica e rigor técnico absolutamente indevida: a comparação mais próxima que nos ocorre é a das várias frases de apoio à astrologia atribuídas indevidamente a Albert Einstein. Em outras palavras, buscou-se (“por acidente”?) usar da reputação dos “elaboradores” para dar sustentação a um plano insustentável.
Há um princípio de caridade argumentativa, chamado Navalha de Hanlon, que diz: “Nunca atribua à malícia o que pode ser adequadamente explicado por incompetência”. Ele reflete o fato da vida de que é muito mais fácil coisas erradas acontecerem por engano honesto do que como resultado de algum planejamento cuidadoso. Há mais incompetentes do que vilões no mundo.
A condução desastrosa do combate à pandemia pelo governo federal brasileiro tem abusado dessa caridade, no entanto. A realidade é que para quem está morrendo, perdendo entes queridos ou à espera da vacina, isso não importa. Malícia ou incompetência, a contagem de corpos é a mesma.