O escândalo da pseudociência na universidade pública

Editorial
17 fev 2019
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Cena de escola medieval

Recentemente, o ensino de homeopatia foi exaltado, de forma acrítica, em material de divulgação produzido sob a chancela de duas importantes universidades estaduais de São Paulo. Logo no início do mês, o campus de Botucatu da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita  Filho (Unesp) fez divulgar press-release que celebra a oferta de disciplina de práticas alternativas e complementares, entre elas homeopatia, acupuntura, medicina antroposófica, plantas medicinais e fitoterapia, florais, arteterapia, tai chi, lian gong, chi kung, constelação familiar, terapia comunitária, reiki, dança circular, yoga, massoterapia, osteopatia, quiropraxia, ayurveda, aromaterapia, mindfulness e mindful eating em sua Faculdade de Medicina. Poucos dias depois, como se não quisesse ficar para trás, a diretora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP divulgou, no Facebook, a disponibilização de uma disciplina de homeopatia na escola pela qual é responsável.

A maioria das práticas citadas no parágrafo acima carece de qualquer vestígio de respaldo científico. Muitas delas, de fato, colidem frontalmente com princípios científicos muito bem estabelecidos: a presença de um curso de homeopatia ou reiki numa escola de Medicina (ou Farmácia, ou Enfermagem) deveria causar tanto escândalo quando a de uma especialização em moto perpétuo numa faculdade de Engenharia, ou de uma cátedra de terraplanismo numa escola de Geografia.

É especialmente notável que a justificativa para o oferecimento dessas disciplinas bizarras seja sempre estatutária-burocrática-econômica, nunca científica: gira em torno da aprovação pelos conselhos centrais das universidades; do reconhecimento por órgãos de representação profissional; do fato de existirem profissionais que ganham a vida mercadejando tais produtos e terapias. Uma vaga desculpa filosófica aparece, às vezes, sobre a forma do velho clichê da “abertura da Universidade a diferentes ideias”.

Ouvir argumentos assim, da boca (ou teclado) de acadêmicos universitários é, no mínimo, preocupante. Colegiados podem errar, e é por isso que suas decisões estão sempre abertas a debate e revisão. Diplomas e reconhecimentos oficiais simbolizam, mas não criam, mérito: se o merecimento não existe, o diploma deve ser cassado e o reconhecimento, removido.

A existência de profissionais que vendem absurdos que tangenciam algum objeto de estudo da ciência nunca deveria ser razão de endosso por parte da Universidade. Mais antiga do que a homeopatia é a astrologia. A astrologia conta com profissionais que vivem da produção de vaticínios, perfis de personalidade e cartas astrais. Colunas de astrologia são publicadas todos os dias na imprensa. Teremos, portanto, o ensino de astrologia na universidade? Melhor não.

A abertura da Universidade à pluralidade de ideias e o estímulo do debate é algo extremamente desejável, mas devem-se evitar falsas equivalências e desperdícios.

O filósofo da ciência Imre Lakatos certa vez propôs uma distinção entre programas de pesquisa “progressivos” – que lançam constantes desafios à própria base de conhecimento e, com isso, fazem a ciência avançar, abrindo os olhos dos cientistas para perguntas que  ainda sequer tinham sido imaginadas – e “degenerados”, que se concentram unicamente em defender algumas “verdades” sagradas, que repetem sempre as mesmas perguntas, que giram em falso inventando desculpas para resgatar hipóteses fracassadas.

Não é preciso pensar muito para ver onde reiki, homeopatia, ayurveda, florais e outros se encaixam. Passou da hora de pararmos de desperdiçar dinheiro e talento em estudos-piloto que geram resultados classificados pelos entusiastas mais otimistas como “sugestivos”, mas que não se reproduzem e, embora sugiram muito, jamais afirmam nada. No caso da homeopatia, lá se vão 200 anos dessa cantilena!

E, talvez mais importante, também já passou da hora de parar de usar esses pseudo-resultados como base para cursos de formação profissional chancelados pela Universidade.

Universidades e professores universitários formam opiniões. Associar o nome de universidades como USP ou Unesp a práticas pseudocientíficas nunca deveria receber o apoio de nenhum docente. Algumas práticas foram aprovadas por sociedades de classe? Sim, mas não deveriam: o espírito crítico que se espera da Universidade deveria ser capaz de separar mérito de corporativismo.

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