Jolivi: o lucrativo e obscuro mercado das falsas curas

Dossiê Questão
30 jun 2023
cápsulas

 

Olá, tudo bem?

Hoje vou sair um pouco dos conteúdos de medicina para te contar uma história da minha família.

A história de como livrei Paulo Roberto Dutra do ALZHEIMER. Mais conhecido por mim como “pai”.

Anos atrás, meu pai começou a ter sinais de declínio cognitivo. A idade foi chegando e ele tinha esquecimentos constantes e confusão mental.

Era sofrido ver meu querido pai nessa situação. Esse foi um dos motivos para me aprofundar ainda mais nos estudos sobre o Alzheimer.

Com meus 20 anos de experiência, também fui buscar aprendizados lá fora. Assim, fui o primeiro do Brasil a conquistar o certificado do Protocolo ReCODE do renomado médico Dale Bredesen.

Nesta técnica, combatemos o Alzheimer naturalmente.

Apliquei tudo que aprendi com meu pai e, com um protocolo de 4 ETAPAS, consegui livrar ele do Alzheimer.

 

Ainda não existe cura para o Alzheimer. Mesmo assim, em 29 de maio deste ano, a empresa paulista Jolivi, uma publicadora de conteúdo "com foco em saúde natural e integrativa", enviou o texto acima para seus 75 mil assinantes em uma newsletter que vinha com o título: “Como livrei meu pai do ALZHEIMER”. Assinada pelo urologista Alain Dutra, que se autointitula médico funcional, integrativo e de estilo (sic), a mensagem em tom íntimo e pessoal revela a receita mágica: um protocolo chamado ReCODE, criado pelo neurologista americano Dale Bredesen. Por 12 x R$ 99, o leitor tem acesso a algo que a ciência atual ainda desconhece: a (falsa) cura do Alzheimer.

O protocolo vendido pela Jolivi propõe uma mescla de terapias que carecem de comprovação científica, aliadas a outras que até podem, em determinados casos, serem benéficas e válidas – embora nenhuma com o poder de reverter o quadro. Como no e-mail assinado por Dutra, baseia-se na suposta remissão de meia dúzia de pacientes para vender uma falsa esperança a milhares de famílias com parentes portadores de uma das doenças neurodegenerativas mais prevalentes no Brasil.

Além do protocolo “Fim do Alzheimer”, baseado no ReCODE, há outro sobre a mesma doença à venda no site da Jolivi, chamado “Supercérebro Sem Alzheimer”, criado pelo neurocientista Nelson Annunciato. Ambos fazem afirmações parecidas: para reverter a demência, basta adotar uma dieta específica, praticar exercícios e tomar uma série de suplementos – alguns deles vendidos por uma empresa criada pelos fundadores da Jolivi.

Quem realmente estuda o Alzheimer diz que tais afirmações são perigosas. “No momento, não existe nada que reverta a doença. Qualquer material que afirme o contrário não é ético nem verdadeiro. O máximo que certas abordagens, farmacológicas ou não, conseguem fazer é retardar a evolução inevitável da doença”, comenta a neurologista Sonia Brucki, coordenadora do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).

Além de vender duas curas diferentes para o Alzheimer por R$ 970 cada, a Jolivi envia diariamente boletins gratuitos à sua base de assinantes divulgando outros tratamentos naturais milagrosos, críticas à indústria farmacêutica e "reflexões" que plantam dúvidas sobre terapias e remédios consolidados pela ciência. São chamadas do tipo: “Plano Inédito capaz de varrer o excesso de açúcar no sangue em cerca de 30 dias”; “Insulina e metformina [remédios comumente usados no tratamento da diabetes] fazem mal”; “O arbusto que aumenta ‘o’ hormônio do homem”, em que se recomenda a ingestão de 200mg de cápsulas de ginseng da Malásia para turbinar a testosterona. Há, ainda, um boletim que começa com a frase “Exame de toque? Leia ISSO antes de fazer”, e termina desaconselhando a realização do principal exame de prevenção do câncer de próstata com o argumento de que ele "traz mais riscos do que benefícios". 

 

anúncio fígado
Exemplo de publicidade do grupo

 

A equipe da Jolivi também divulgou, durante a pandemia, uma entrevista com um médico que defendeu a ozonioterapia para o tratamento da COVID-19, procedimento sem comprovação científica para controlar a infecção ou qualquer outra doença. Em outro vídeo no canal do YouTube da empresa, com mais de 1,1 milhão de inscritos, “especialistas” afirmaram que a vacina da gripe, uma das maiores aliadas da saúde pública, não funciona.

Não raro, os mesmos conteúdos da Jolivi aparecem também no site de notícias Infovital e ambos indicam suplementos alimentares vendidos no site Vitaminas.com.vc, nome comercial da Millipharma Produtos Médicos e Farmacêuticos Ltda. Parte das newsletters da Jolivi é dedicada à oferta desses suplementos, que prometem resolver de dores nas articulações à perda de libido. Conforme a instrução nº 28/18 da Anvisa, nenhum suplemento alimentar pode apresentar alegações terapêuticas para tratamento de doenças ou agravos à saúde, pois essas propriedades são exclusivas de medicamentos. A Jolivi e sua parceira Vitaminas parecem desconhecer a regra.

O que pouca gente sabe é que Vitaminas e Jolivi são empresas criadas por uma parceria entre a Empiricus, a polêmica casa de análises de investimentos, recentemente comprada pelo BTG Pactual, e a Agora Inc., autointitulada a maior publicadora de conteúdos de finanças e saúde natural dos Estados Unidos. O fundador da Agora, Bill Bonner, foi quem ensinou ao trio fundador da Empiricus, Caio Mesquita, Felipe Miranda e Rodolfo Amstalden, a técnica de escrita persuasiva das newsletters da Jolivi: o “copywriting”, ou copy, a que Mesquita atribui o crescimento exponencial da empresa após 2014. Foi Bonner também quem sugeriu aos economistas do mercado financeiro a criação da Jolivi, chamada pelos seus fundadores de “Empiricus da saúde”, hoje comandada pelo irmão de Rodolfo, Daniel Amstalden. A Agora fez um aporte de R$ 500 mil no capital social da Jolivi em 28 de junho de 2016, conforme registrado em contrato social, e ainda hoje é sócia da empresa, por meio de uma holding baseada no Chipre, um paraíso fiscal. Também mantém sólida sua sociedade com a Millipharma.

Segundo informações do CEO da Jolivi, Daniel Amstalden, enviadas por meio de assessoria de imprensa, as três empresas têm 46 sócios e colaboradores, mais de 75 mil assinantes, 12 programas de saúde ativos – entre eles o protocolo Fim do Alzheimer – e três assinaturas mensais, referendadas por ditos especialistas em um assunto. A mais recente delas é a de Fred Pescatore, médico americano especializado em nutrição que ensinará aos leitores da Jolivi “uma rápida ação imediata para reverter a demência súbita”.

Depois de assustar o leitor com a possibilidade de a memória sumir de uma hora para a outra, Pescatore revela uma solução mágica, entre as muitas que o leitor conhecerá, desde que assine seu protocolo por 12 x R$ 19,90. A planta, segundo o médico, fará “sua memória parecer jovem novamente em menos de 1 HORA”. Trata-se da Melissa officinalis, comumente utilizada em chás e estudada por suas propriedades calmantes.

Como referência para tal afirmação, Pescatore usa um estudo avaliando o efeito anti-estresse da planta e outro feito em roedores, que nem sequer mostra uma ação prática do princípio ativo, apenas indica que ele pode se ligar (no cérebro desses animais) a receptores cerebrais relacionados à cognição. Não cita nenhum estudo demonstrando reversão da demência em uma hora — talvez porque, na literatura científica, não se encontre respaldo para isso. Esse é um modus operandi típico dos materiais da Jolivi e de outros vendedores de suplementos: extrapolar ou distorcer resultados de estudos iniciais para prometer efeitos práticos. Outra tática que fica clara no texto é o sensacionalismo, a emulação de uma dita urgência e o conspiracionismo. “Só há uma maneira de colocar as mãos nisso… As notícias sobre esse “milagre mental” estão se espalhando… e isso pode tornar muito mais difícil encontrá-lo”.

Além de contar com os relatórios mensais ensinando esse e outros “segredos”, cada novo assinante ganha um crédito de R$ 50 para usar no Vitaminas.com.vc.

 

O início

A relação entre a Empiricus e a Agora começou no início de 2013, na sala de reuniões de um prédio comercial discreto no bairro Itaim Bibi, em São Paulo. De passagem para seu rancho nos Andes argentinos, Bill Bonner veio consolidar a parceria e convencê-los do poder do “copy”.

O economista Rodolfo, ou Dolfo, como é chamado pelos sócios, que também é jornalista formado pela Cásper Líbero (SP), já havia viajado aos Estados Unidos para aprender a técnica de vendas direto na fonte. A sugestão de se aproximar da Agora teria partido de Beatriz Nantes, atual diretora de Operações da Empiricus Research – como Rodolfo, Nantes tem formação em economia e jornalismo. À época, a casa de análise de ações (que depois, assim como a Agora, virou uma publicadora), havia ganhado notoriedade por suas recomendações de investimento debochadas – uma delas dizia que o empresário Eike Batista devia ter “uma gaveta lotada de fatos relevantes. A cada dia, ele pega um e manda publicar” –, mas o número de assinantes não decolava na mesma medida da irreverência.

O problema de audiência começou a mudar rapidamente com a entrada em cena do “guru da mala direta”. Formado na Sorbonne, Bill Bonner criou em 1978 um império de publicações aplicando a técnica do copy, primeiro em catálogos de produtos financeiros e de saúde natural e, depois, em newsletters e relatórios.

A Agora tem hoje ao menos 31 marcas diferentes só nos Estados Unidos e exporta seu modelo de negócios fazendo associações com empresas locais em 14 países, como a Empiricus, a Jolivi e a Vitaminas. Seu público, disse ele em uma entrevista, são pessoas que "querem ser mais ricas, mais felizes, mais saudáveis e mais produtivas. Tentamos ir diretamente a esses pontos emocionais".

linha do tempo

Em outra entrevista, questionado sobre uma das newsletters da Agora que anunciava a “cura secreta do câncer escondida no Evangelho de Matheus”, acrescentou: "Nossos clientes não nos pagam para estarmos certos. E certamente não somos pagos para sermos tímidos. Em vez disso, esperam que sejamos diligentes e honestos e que exploremos as nuances não convencionais, muitas vezes infames e sempre ousadas do espectro de ideias. Nossos clientes têm a última palavra. Se não gostarem do que oferecemos, eles não compram”. Invocar a liberdade individual é a principal estratégia da Agora para escapar de processos e condenações por fraude e propaganda enganosa. Nem sempre funciona. Em 2021, diversas subsidiárias da holding foram processadas por fake news em saúde e concordaram em pagar US$ 2 milhões em multas a autoridades americanas.

Em uma coluna no site MoneyTimes de 2019, em que relata o encontro com o presidente da Agora, Caio Mesquita disse inicialmente não ter entendido a insistência de Bonner no tal de “copy”, usado nas mais de 300 newsletters e livros com o selo da Agora. Segundo ele, o CEO da Agora teria dito que a parceria só iria vingar se os sócios se tornassem especialistas no método: “Definitivamente pelo copy. É fundamental que vocês absorvam as técnicas de copy para assim desenvolverem o negócio”.

Mesmo sem entender, o trio do mercado financeiro resolveu seguir à risca os mandamentos da Agora. O aprendizado envolveu não só abrir novas empresas para aumentar os lucros, como a Jolivi e a Millipharma, mas entender que sempre há um público mais propenso a pagar para descobrir “a incrível cura do câncer escondida no Evangelho de Matheus” ou as “Informações de bastidor de um acordo de desarmamento nuclear”. Nos EUA, a Agora fez parcerias com políticos de extrema direita para difundir seus endossos a tratamentos duvidosos entre os eleitores identificados com ideias conservadoras. Como revelou uma reportagem do site de jornalismo Mother Jones, Bonner foi o primeiro a capitalizar a estratégia batizada pelo historiador Rick Perlstein de “a monetização da paranoia”.

No Brasil, a Empiricus seguiu a mesma estratégia, tornando-se anunciante e depois sócia da editora Mare Clausum, dona do O Antagonista e da revista Crusoé. Em uma live de 2020, em que contam o fim da parceria devido à reestruturação societária feita antes da compra pelo BTG Pactual, Caio Mesquita deixa claro que o interesse da sua empresa era no público d’O Antagonista. “Qual o nosso interesse n’O Antagonista? Era na audiência, porque nós vendemos assinaturas, assim como O Antagonista e a Crusoé. A gente tinha (....) uma percepção que compartilhávamos, nós, as pessoas e as audiências, valores. A gente acredita na iniciativa privada, no capitalismo, na liberdade. São valores que nos norteiam, e a gente percebeu isso em vocês também”, disse Mesquita. No mesmo vídeo, Diogo Mainardi, um dos sócios d’O Antagonista, acrescentou que as semelhanças também se davam ao fato de a Empiricus e O Antagonista serem “outsiders”, independentes, e não parte do “mainstream”, um discurso importado da Agora e também presente nas newsletters da Jolivi.

 

O crescimento

A primeira prova do poder do copy ocorreu um ano depois do encontro com Bill Bonner, em São Paulo. Às vésperas das eleições de 2014, um vídeo narrado por Felipe Miranda fez previsões catastróficas para a economia em caso de vitória de Dilma Rousseff para um segundo mandato. “Com um orçamento modesto de marketing impactamos o Brasil e incomodamos a então presidente Dilma, com a campanha ‘O Fim do Brasil’. Resultado: em menos de 12 meses, duplicamos a nossa base de assinantes e nos posicionamos como a maior e mais relevante publicadora financeira do país”, escreveu Caio Mesquita.

cérebro

 

O vídeo era, na verdade, uma adaptação do “The end of America”, publicado pós-crise de 2008, com predições de que ocorreria um colapso da economia na Era Obama, pela Stansberry Research, uma das marcas de análise de investimento mais polêmicas da Agora, condenada por fraude em pelo menos duas ocasiões. Em uma entrevista, Rodolfo Amstalden justificou que copiar a “estrutura” do vídeo americano foi um gesto de “humildade intelectual”. “Essa abordagem do marketing digital, agressivo, a gente copiou dos caras. É da natureza do research independente ter que fazer teses pessimistas, sejam soberanas ou corporativas e as mais variadas narrativas”, disse. “Junto com a Agora, a gente começou a estudar bastante sobre finanças comportamentais, como você ativa a emoção de uma pessoa”. A campanha motivou uma ação do PT no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) contra a Empiricus, que foi julgada improcedente.

Lá nos EUA, a irmã da Empiricus, a Stansberry Research, foi condenada pela Securities and Exchange Commission (SEC), equivalente à Comissão de Valores Imobiliários, a CVM, no Brasil. Segundo a SEC, os boletins da Stansberry continham “nada mais do que especulações infundadas e mentiras descaradas, fabricadas para induzir os investidores a pagar à Agora (ou suas subsidiárias) por assinaturas ou supostas informações privilegiadas". A Empiricus também coleciona multas emitidas pela Associação dos Analistas e Profissionais de Investimento do Mercado de Capitais (Apimec), pela CVM, pelo Procon-SP por análises com promessas de retorno garantido, o que é irregular, e propaganda enganosa, como o famoso caso Bettina, que rendeu uma multa milionária ao grupo.

Até mesmo na hora de se defender perante aos órgãos de controle, a empresa brasileira seguiu as recomendações da Agora. Disse não ser mais uma casa de análises, mas uma publicadora de conteúdo sobre investimentos, tal qual um site de notícias – o que não colou. Quando o assunto é a Jolivi, o argumento é o mesmo: não são médicos e nem estão recomendando tratamentos, apenas publicam conteúdo sobre saúde.

A Empiricus só mudou o discurso há dois anos, quando foi comprada pelo BTG, o maior banco de investimentos da América Latina. Mas a Jolivi ficou de fora do negócio e hoje não faz parte mais da Empiricus. Caio Mesquita deixou a "Empiricus da Saúde" em junho de 2021, e Felipe Miranda já havia deixado a participação logo no início da fundação da empresa. Apenas Rodolfo Amstalden continua na sociedade, sendo seu sócio-administrador e dono da maior parte do capital da Jolivi e da Millipharma. Nenhum dos três quis dar entrevista.

 

Pseudociência, bom negócio

Entre milhares de newsletters, vídeos e podcasts, a Jolivi faz alertas contra o uso de medicamentos e promete curar com suplementos, entre eles as vitaminas da Millipharma, uma série de doenças. Entram na lista problemas de visão (“Ele escanteou os óculos e hoje revela segredo natural contra a catarata”), próstata (“O combo de suplementos da próstata enxuta”), dores crônicas (“Técnica que pode apagar 90% a 100% da dor crônica com apenas 10 minutos por dia”), entre outros.

Com a ajuda de técnicas de raspagem de dados, a reportagem fez uma análise sobre o alcance desses materiais. São 1,5 milhão de seguidores nas diferentes redes sociais das três empresas. Nos vídeos do YouTube, mais de 52 milhões de visualizações. Os problemas de saúde mais mencionados no canal são dores (em 499 vídeos), câncer (415), diabetes (411) e Alzheimer (289).

Nas newsletters, um espaço mais íntimo, o discurso é mais agressivo e direto. O ranking de doenças mais citadas é praticamente o mesmo, mas, em uma análise de 1.220 e-mails enviados pela empresa, é possível contabilizar o excesso de uso das palavras cura, em 149 newsletters, reverter/reversão, em 292, e suplementos, em 472 e-mails disparados.

reversão
Trecho de newsletter da Jolivi

 

A reportagem adquiriu dois dos protocolos à venda pela empresa: “Supercérebro Sem Alzheimer”, de autoria do obstetra doutor em biomedicina Nelson Annunciato, e “Protocolo Contra o Diabetes”, do cirurgião Naif Thadeu, ao custo de R$ 970 cada. Logo em seguida, passou a ser bombardeada com mensagens no WhatsApp e ligações oferecendo descontos no site Vitaminas.com.vc. A foto de perfil do número é uma mescla dos logos das duas empresas.

A Jolivi não revelou o faturamento que obtém com a venda de vitaminas e outros suplementos. Portanto, não há como saber o quanto de fato receberam. Mas dá para, hipoteticamente, fazer um exercício de matemática a partir da venda de conteúdo e tentar dimensionar os valores envolvidos no negócio. Se cada um dos 75 mil assinantes que a empresa tem comprou ao menos um protocolo de R$ 970 (o preço médio da maioria deles), então foram R$ 72 milhões em vendas. E, se esses assinantes compraram ao menos cinco suplementos do site…

 

“Reversão” do Alzheimer

O médico Dale Bredesen, inspiração do protocolo “O Fim do Alzheimer”, é autor de livros controversos onde afirma (sem as evidências necessárias para tal) que é possível reverter a doença, e vende o protocolo ReCODE por mais de US$ 1,3 mil. Na sua mais recente obra, “Os primeiros sobreviventes do Alzheimer, sete pacientes dão seus relatos pessoais de cura. E a Jolivi vai na mesma linha, usando o pai do médico Alain Dutra - urologista que difundiu, no ano passado, desinformação científica sobre as vacinas contra COVID-19 feitas por RNA mensageiro e desmentidas pelo Projeto Comprova - e a mãe do obstetra doutor em biomedicina Nelson Annunciato como personagens desta suposta cura.

“Nesse tipo de situação, não é possível sequer saber se as pessoas tinham o diagnóstico confirmado”, explica a médica neurologista Elisa Resende, do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e vice-coordenadora do Departamento Científico de Neurologia Cognitiva e do Envelhecimento da Academia Brasileira de Neurologia (ABN). Qualquer relato pessoal de melhora não tem o valor de uma evidência científica até que seja revisado por outros pesquisadores e publicado em periódicos.

A pedido da Revista Questão de Ciência e da Veja Saúde, especialistas em algumas das doenças “curáveis” pelos protocolos da Jolivi analisaram os materiais. A investigação completa sobre as promessas será publicada na edição de julho da Veja Saúde. Mas dá para adiantar que o que eles encontraram foi uma base científica fraca e uma série de meias verdades.

“Sem dúvida, a mudança de estilo de vida e cuidados gerais de saúde exercem um papel importantíssimo nas funções cognitivas, como observado em vários estudos. É o que orientamos a todas as pessoas, inclusive as com Alzheimer”, esclarece a neurologista Sonia Brucki. “Só que essas medidas não curam a doença, apenas amenizam sintomas e podem desacelerar a progressão da doença, que ainda tem muitos aspectos que sequer foram esclarecidos pela ciência”, completa a médica.

O que ocorre é que esses materiais transpõem alguns achados sobre prevenção para o tratamento da doença. Por exemplo, sabe-se que o diabetes tipo 2 é um fator de risco para o desenvolvimento de Alzheimer. E que o diabetes tipo 2 costuma aparecer após anos consumindo calorias em excesso, em especial dos carboidratos refinados, embora o papel das gorduras esteja cada vez mais em evidência. Daí, o autor do protocolo “Supercérebro Sem Alzheimer”, Nelson Annunciato, propõe que o leitor adote a dieta cetogênica, que praticamente exclui os carboidratos do cardápio. E promete que isso consegue reduzir em até 25% o acúmulo de proteínas beta-amiloide no cérebro (um dos mecanismos fisiológicos da doença), uma afirmação sequer posta à prova em estudos clínicos. “E mesmo os novos medicamentos, que de fato diminuem os níveis da beta-amiloide, não conseguem reverter sintomas”, destaca Resende.

vasos sanguíneos

 

No livro impresso enviado aos assinantes, há um capítulo dedicado aos “protagonistas da reversão do Alzheimer”. Dois deles, segundo Annunciato, são o óleo de coco e o ômega-3, gorduras que ajudariam na reversão dos sintomas por vários motivos. Entre eles, o de que a doença estaria relacionada a uma “deficiência de boas gorduras”. “Essa é uma teoria que ainda está sendo estudada, mas até agora não foi comprovada. Vários estudos já foram feitos com reposição de ômega-3, mas eles mostraram resultados contraditórios e não surtiram efeitos relevantes nos sintomas”, comenta Resende. Sobre o óleo de coco, Brucki complementa: “Não existem estudos de boa qualidade e resultados robustos que justifiquem o uso de óleo de coco”.

 

Perigo iminente 

O “Protocolo contra o Diabetes” é assinado por Naif Thadeu, um cirurgião plástico, que promete no canal da Jolivi no YouTube reverter o diabetes tipo 2, doença também incurável, em 21 dias. Ao assinar o protocolo, uma surpresa: o médico diz ser capaz de reverter também o diabetes tipo 1, uma condição autoimune que acomete em especial crianças e adolescentes. Para isso, o assinante recebe uma série de e-books com guias de comportamento diário, como a indicação de seguir a dieta cetogênica e o jejum intermitente (ambos recomendados também contra o Alzheimer), além de um guia de suplementação que cita mais de 15 substâncias, a maioria não testada contra o diabetes.

Em diversos momentos, Thadeu coloca os diabetes tipo 1 e 2 no mesmo balaio. Em um dos vídeos exclusivos aos assinantes, afirma que “indivíduos com diabetes tipo 1 podem perfeitamente ter reversão do quadro” e que “na sua prática clínica, lida com muitos indivíduos com diabetes tipo 1 que não precisam nem de insulina nem de remédios para controlar a glicemia”. O endocrinologista Carlos Eduardo Barra Couri, pesquisador da USP em Ribeirão Preto, destaca esse aspecto como o mais grave do protocolo. “O diabetes tipo 1 é uma doença que mata o indivíduo se ele não tomar insulina, e o protocolo promete uma opção de tratamento com superdoses de vitamina D e medicamentos psiquiátricos usados no tratamento do alcoolismo”, comenta o médico.

Outro problema do material, destacam especialistas, é a indicação de tratamentos generalizados. Nas páginas, Naif Thadeu sugere dosagens e frequência de suplementos, além de atacar os remédios prescritos por médicos especializados em diabetes. “Qualquer recomendação do tipo deve ser individual, pois há variação de doses conforme sexo, idade e presença de outras comorbidades. A dose generalizada pode trazer riscos”, comenta a nutricionista Natasha Albuquerque, preceptora da Residência Multiprofissional em Assistência em Diabetes da Universidade Federal do Ceará (UFC). Além dos suplementos sem evidências, Thadeu recomenda fitoterápicos contraindicados para quem tem diabetes. “Melão de São Caetano e berberina podem levar à hipoglicemia nesses pacientes”, aponta Natasha Albuquerque.

Por fim, outra situação de risco é o cardápio proposto por Thadeu, que praticamente elimina todos os carboidratos da dieta. Nos primeiros dias, só é permitido comer vegetais e frutas in natura. “Com esse corte drástico, a pessoa pode entrar em cetoacidose, um quadro potencialmente fatal”, alerta Couri. Nesta situação, o organismo produz substâncias chamadas cetonas em excesso, como resultado da obtenção de energia na ausência de glicose.

 

Explorando a dúvida

A atuação da Jolivi se assemelha à de outras empresas e entidades formadas por médicos que nasceram e/ou ganharam notoriedade com a pandemia da COVID-19 e lucraram promovendo a desconfiança sobre vacinas e tratamentos sem comprovação científica. “Existe um padrão nesses grupos. Eles partem da desconfiança da população nas big pharmas, incluem teorias da conspiração como a de que ‘Bill Gates quer criar uma nova forma de controle da população’ e misturam tudo em um texto que faz sentido, é persuasivo, é compartilhado por gente que você conhece. No final, só querem mesmo é vender uma solução ou uma terapia ‘natural’, ‘alternativa’. Lucram com a desinformação”, descreve Fabio Malini, professor da Universidade Federal do Espírito Santo e pesquisador sobre ciência de dados.

Nas perguntas enviadas à assessoria de imprensa, questionamos o trio da Empiricus e Daniel Amstalden, CEO da Jolivi, sobre o que eles tinham a dizer em relação aos protocolos de reversão do diabetes e do Alzheimer. Apenas Daniel Amstalden respondeu. Disse que todos os conteúdos gratuitos ou pagos da Jolivi são embasados em publicações técnicas de instituições confiáveis.

“Todos os produtos, campanhas de marketing, vídeos ou cartas de vendas sempre referenciam as pesquisas que suportam esses conteúdos no texto ou nos rodapés. Isso é a espinha dorsal do nosso trabalho. Nós nunca publicamos algo que não estivesse suportado por publicações técnicas”, respondeu.

natural
Exemplo da técnica de redação publicitária usada para "pescar" o cliente

 

Para responder sobre as doenças citadas na pergunta, Daniel enviou links para cinco artigos científicos. O CEO da Jolivi garantiu que “as pesquisas que suportam nossos conteúdos sugerem remissão ou desaceleração do avanço de doenças, bem como melhora dos sintomas de algumas. São exatamente estes mesmos termos (desaceleração, melhora dos sintomas, remissão, por exemplo) que são usados nos nossos conteúdos”. Na verdade, em uma rápida olhada nos conteúdos da Jolivi, dá pra perceber que a empresa também adota termos mais agressivos, cujo significado vai além daqueles que constam nos estudos científicos, como reversão, "“fim do diabetes” e “fim do Alzheimer”.

Dos artigos enviados por Amstalden, apenas um é um estudo clínico randomizado (que se baseia na comparação entre duas ou mais terapias, com seleção rigorosa de participantes e distribuição aleatória entre os grupos) e nenhum suporta as afirmações dos textos. (Leia a resposta na íntegra aqui).

 

Nas margens da lei

Os materiais da Jolivi foram enviados pela reportagem a especialistas do direito do consumidor, direito sanitário e autoridades da classe médica.

O advogado Victor Durigan, coordenador de Relações Institucionais do Instituto Vero, esclarece que há, na esfera criminal, possibilidade de responsabilização individual. Profissionais que prometem eficácia total de algum tratamento, desacreditam tratamentos tradicionais e/ou ministram outros tipos de tratamento podem responder por crimes de charlatanismo (Art. 283 do Código Penal) e curandeirismo (Art. 284). O primeiro fala de inculcar cura infalível; e o segundo em prescrever, ministrar e aplicar substâncias e tratamentos. “São tipos parecidos com o estelionato”, diz Durigan. “Vale lembrar que ainda não existe um tipo penal sobre desinformação ou disseminação enganosa em massa”, explica.

Além disso, a participação de médicos nesses protocolos pode estar em desacordo com ao menos três artigos do Código de Ética Médica. São eles, extraídos do capítulo XIII, que versa sobre a publicidade médica:

 

  • Art. 112. Divulgar informação sobre assunto médico de forma sensacionalista, promocional ou de conteúdo inverídico.
  • Art. 113. Divulgar, fora do meio científico, processo de tratamento ou descoberta cujo valor ainda não esteja expressamente reconhecido cientificamente por órgão competente.
  • Art. 114. Consultar, diagnosticar ou prescrever por qualquer meio de comunicação de massa.

 

Nos EUA, a Agora e um médico foram processados em 2021 por conta de um protocolo que prometia reverter o diabetes. O juiz entendeu que houve dano ao consumidor e propaganda enganosa e sentenciou a empresa a pagar US$ 2 milhões em multas. O protocolo tem uma linguagem muito semelhante ao que a Jolivi sugere no Brasil, embora com suplementos diferentes dos indicados na versão nacional.

Vale destacar que a Jolivi não se coloca como uma empresa que comercializa tratamentos, mas sim conteúdos. “Sempre orientamos que nossos leitores e assinantes nunca descontinuem seu tratamento atual e que discutam com o profissional de saúde de sua confiança sobre nossas publicações”, afirma Amstalden. No site e em alguns protocolos de saúde, a empresa também exime-se da responsabilidade pelos tratamentos ou suplementos que indica nas newsletters, vídeos e protocolos. “As informações contidas neste boletim são publicadas exclusivamente para fins informativos e não podem ser consideradas como aconselhamento médico pessoal”, diz a nota de rodapé que aparece em diversas newsletters e materiais da empresa. A advogada Marina Paulelli, do programa de Saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), diz, contudo, que a afirmação não isenta a empresa da responsabilidade por falhas no serviço ou por produto vendido. Se o produto, no caso, é uma promessa, a ausência de cura pode ser considerada uma falha.

Paulelli também enfatiza que toda publicidade e propaganda deve ser verdadeira, não pode induzir o consumidor ao erro ou ser abusiva, o que ocorre quando seu conteúdo apela a questões sensíveis ou emocionais – ponto-chave da técnica do copy usada pela Jolivi. “Esse aspecto emocional é especialmente importante para verificar se há abuso nas informações sobre produtos e tratamentos de saúde. Informações fidedignas, seguras e checadas são um direito básico, mas ainda há as regras éticas e as regulações específicas sobre esta área que precisam ser observadas”, disse.

Sobre os conflitos de interesse em recomendar suplementos vitamínicos da Millipharma, Daniel Amstalden alega que as “sugestões de ingestão de suplementos feitas pelos profissionais de saúde não indicam qualquer marca ou produto específico”, mas afirma que criou a Millipharma “para que nossos assinantes e leitores pudessem adquirir produtos de qualidade com ativos aprovados pela Anvisa”. Sua resposta não corresponde totalmente à verdade. Embora muitos textos deem destaque à vitamina ou à substância presente na suplementação, em pelo menos 351 newsletters há indicação direta de produtos do site Vitaminas.com.vc.

O site do e-commerce adota um tom mais moderado, usando termos como “para melhorar a saúde” e “aliado do coração”. Os boletins, entretanto, garantem a eficácia dos suplementos contra condições e doenças, o que é irregular pelas normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. A Anvisa informou à reportagem que há dois processos de investigação em andamento sobre a atuação da Millipharma.

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Trecho de newsletter da Jolivi sobre tratamento de dores crônicas que faz menção direta ao site Vitaminas.com.vc. O assunto do e-mail é “Já experimentou esse ANALGÉSICO NATURAL que é 200% Mais Forte Que Remédios ?”

 

Sobre a alegação de benefícios, Amstalden afirma que “todos os conteúdos que falam em suplementação nutricional são extraídos das mesmas publicações técnicas que suportam nosso conteúdo editorial". Em entrevista por e-mail, a Anvisa informou que fiscaliza apenas a propaganda dos produtos. A divulgação de conteúdos relacionados a tratamentos, sem vinculação direta à propaganda, não é competência da agência. A entidade explicou também que a investigação de irregularidades na propaganda de suplementos é feita em geral a partir de denúncias ou de busca ativa.

A reportagem entrou em contato repetidas vezes com entidades médicas como a Associação Médica Brasileira (AMB), o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Paulista de Medicina (APM). Não obtivemos retorno até o fechamento desta reportagem sobre a conduta dos médicos consultores da Jolivi e da Vitaminas. Uma tentativa de contato por e-mail com a Agora também foi feita para esclarecer as motivações da sociedade estabelecida com a Empiricus no Brasil, porém sem retorno até a data desta publicação. Os médicos citados, Alain Dutra, Nelson Annunciato e Naif Thadeu, também foram procurados pelo e-mail de contato dos seus sites profissionais, sem sucesso.

O caso relatado nesta reportagem espelha bem como funciona o mercado das falsas promessas de curas naturais. Impregnada de uma ideologia contra a corrente e o mainstream, a Jolivi e outras centenas de empresas desacreditam tratamentos médicos ancorados em estudos e anos de uso, levando seus clientes a abandoná-los e correr riscos em busca de uma solução definitiva para doenças crônicas ou incuráveis. Com uma forte atuação digital, por e-mail e redes sociais, não são poucos os brasileiros que acabam enredados nessa história.

 

Investigação: Jaqueline Sordi, Silvia Lisboa e Chloé Pinheiro. Texto: Silvia Lisboa e Chloé Pinheiro. Edição: Diogo Sponchiato, Jaqueline Sordi e Carlos Orsi. Ciência de dados: Álvaro Justen. Esta reportagem é uma parceria da Revista Questão de Ciência com a Revista Veja Saúde. Ela foi produzida com o apoio do programa “Disarming Disinformation”, do International Center for Journalists (ICFJ), e financiada pelo Instituto Serrapilheira. O programa é um esforço global de três anos com financiamento principal do Scripps Howard Fund

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