
Aproveitando o enorme hype gerado pela série Vinagre de Maçã, mencionada pelo editor-assistente da RQC, Cesar Baima, em um artigo anterior — que merece ser lido na íntegra —, e que reproduziu em formato audiovisual o que tentamos expressar por escrito, acredito ser válido discutir, mais uma vez, uma prática abordada em edições anteriores da revista, e tratada apenas de forma tangencial na série: a Terapia Gerson.
Para quem não assistiu ou não está familiarizado, trago um breve contexto, com poucos spoilers. Embora a série seja centrada na personagem Belle Gibson (retratada na série pela atriz Kaitlyn Dever, que aparece na imagem que ilustra este atigo), a figura relevante aqui é Milla Blake, personagem inspirada na australiana Jessica Ainscough (conhecida como Wellness Warrior). Milla vê sua vida virar de cabeça para baixo aos 22 anos, ao ser diagnosticada com um câncer raro em seu braço esquerdo. Infelizmente, a única opção que poderia, talvez, aumentar sua expectativa de vida seria uma amputação.
Diante disso, Milla começa a investigar outras possibilidades terapêuticas e descobre estudos que sugerem um efeito positivo da Terapia Gerson — sobre a qual falaremos com mais detalhes na próxima seção.
Em um momento de desespero, embriagada pelo efeito Dunning-Krueger e pelas incertezas de sua situação, Milla decide seguir o protocolo dessa terapia, que consiste basicamente em consumir suco de vegetais orgânicos, realizar enemas de café, seguir uma dieta à base de alimentos orgânicos e tomar alguns suplementos.
Após perceber alguns sinais de melhora, Milla se torna uma defensora fervorosa da prática, passando a lucrar com isso ao vender livros de receitas, realizar palestras e se torna uma celebridade no mundo das terapias alternativas.
No entanto, o que parecia se encaminhar para um final feliz toma um rumo trágico: a mãe de Milla, que sofria com desconforto gastrointestinal e dificuldade para evacuar, descobre que esses sintomas são causados por um câncer de intestino. Seguindo os passos da filha, decide adotar o mesmo protocolo, mas infelizmente falece. Milla, abalada pela morte da mãe e percebendo a recorrência de seu câncer, continua apostando na terapia ineficaz e, um ano e meio depois, tem o mesmo desfecho.
Embora seja uma obra de ficção baseada em alguns fatos reais, em minha opinião, a série captura perfeitamente como uma pessoa pode ser tragada por completo por um discurso falacioso devido à fragilidade emocional em que se encontra. Esse discurso é sustentado por jargões científicos, alguns "estudos" que corroboram suas "ideias" e uma lógica conspiracionista que, na maioria das vezes, sugere uma "verdade escondida pela Big Pharma". E a ilusão produzida pode ser poderosa.
Por exemplo, de acordo com matéria publicada no The Australian (um jornal australiano), Tallomn Pamenter, ex-namorado de Jessica Ainscough, a "verdadeira" Milla Blake, destacou que, embora a série tentasse insinuar que ela rejeitou completamente a medicina convencional, isso era incorreto, pois ela tinha uma mente aberta tanto para a medicina convencional quanto para a holística. Pamenter acredita que ela morreu por complicações da radioterapia convencional, e não porque seu câncer se espalhou ou porque o tratamento foi iniciado tarde demais.
Infelizmente, Jessica e sua mãe, Sharyn Ainscough, não foram as únicas vítimas dessa pseudociência. Embora a série retrate uma clínica fictícia sediada no México, esse local realmente existe. Trata-se do Health Institute de Tijuana, fundado em 2001, que adota os preceitos terapêuticos criados por Max Gerson (1881–1959) e levados adiante por sua filha, Charlotte Gerson (1922–2019). Por US$ 6 mil semanais (aproximadamente R$ 34 mil), o instituto oferece protocolos personalizados da Terapia Gerson, incluindo alimentação, suplementos, enemas e acompanhamento com profissionais de saúde durante sete dias — mas, claro, apenas a indústria farmacêutica se importa com lucro.
A terapia de Max Gerson
No livro Dr. Max Gerson: Healing the Hopeless, publicado em 2002 por seu neto, Howard Straus, é possível observar as falácias e tentativas – desesperadas – de enaltecer a figura de Gerson. Já no início da obra, o leitor encontra uma enxurrada de alegações conspiratórias e elogios exagerados ao médico. Segundo o autor, Gerson teria feito descobertas revolucionárias na terapia dietética já nas décadas de 1920 e 1930 que, se não tivessem sido barradas pela Segunda Guerra Mundial e pela resistência das associações médicas, poderiam até ter lhe rendido um Nobel de Fisiologia ou Medicina. O relato enfatiza que, após 1946, todas as referências a Gerson na literatura científica desapareceram – exceto as “críticas difamatórias” –, e ele passou a ser retratado como um “curandeiro”.
A terapia original de Gerson baseava-se, segundo o neto, em uma dieta sem sal e com baixo teor de gorduras, predominantemente vegetariana, rica em frutas, vegetais, produtos integrais e com restrição quase total ao álcool e a estimulantes.
Para enaltecer ainda mais a figura do avô, o livro traça um paralelo – duvidoso – entre Gerson e Albert Einstein, destacando que ambos, nascidos na Alemanha e exilados nos EUA, foram revolucionários em suas áreas. No entanto, enquanto Einstein se firmou como um dos maiores cientistas do século 20, o nome de Gerson permanece quase desconhecido, “como se ele tivesse se dedicado a enganar pacientes”.
Straus não poupa críticas ao establishment médico, alegando que Gerson foi rejeitado por inveja ou vítima de conspiração.
Experiências na juventude com enxaqueca levaram Gerson a adotar ideias pouco ortodoxas sobre dieta, por exemplo, vendo vantagens na restrição radical do consumo de proteínas. Formou-se em Medicina em 1906 e abriu uma clínica após a Primeira Guerra Mundial. Seu primeiro grande caso: o gerente de um escritório de advocacia que buscava ajuda para tratar suas enxaquecas severas. Gerson lhe entregou um panfleto com a "dieta para enxaquecas" – a mesma que ele próprio havia seguido – e enfatizou que os resultados dependeriam estritamente da disciplina em seguir a dieta prescrita.
Com a ascensão do nazismo, exilou-se nos Estados Unidos, onde inicialmente se destacou no tratamento da tuberculose. Contudo, o advento dos antibióticos – um método rápido, eficaz e econômico – tornou sua abordagem obsoleta. Diante disso, Gerson voltou sua atenção para a cura do câncer por meio de intervenções dietéticas.
Gerson acreditava que seu regime alimentar poderia reativar o sistema imune – que ele via numa "reação de cura" com febre e aumento dos glóbulos brancos – e, em alguns casos, acelerar a eliminação das células tumorais. Contudo, ao promover a destruição das células cancerosas, o processo liberava toxinas que sobrecarregavam o fígado, podendo resultar em coma hepático e, consequentemente, na morte do paciente.
Por isso, a remoção eficaz das toxinas tornou-se uma prioridade. Buscando uma solução, Gerson revisou suas anotações e encontrou referência a enemas de café como um método de desintoxicação hepática.
Apesar das críticas do meio médico e científico, Gerson continuou tratando pacientes. Em 1958, publicou o livro “A Cancer Therapy: Results of Fifty Cases and the Cure of Advanced Cancer by Diet Therapy – A Summary of 30 Years of Clinical Experimentation”. A obra aumentou o interesse do público, mas também intensificou a hostilidade das instituições médicas.
Em 1959, Max Gerson faleceu devido a uma infecção viral pulmonar. No entanto, sua terapia continuou a ser defendida por seguidores – entre eles, sua filha Charlotte.
Em 1977, o médico Tom Siaw fundou o Instituto Gerson em Tijuana. Para escapar da regulação médica nos Estados Unidos, o instituto abriu uma clínica no México para tratar pacientes com câncer.
A biografia oficial chega a ser ridícula — e nada original. Gerson, em muitos aspectos, lembra uma figura messiânica ou um herói de história em quadrinhos: alguém que, ao descobrir uma suposta verdade oculta, torna-se o inimigo número um de um sistema determinado a manter o status quo. Ciente da magnitude do adversário, decide enfrentá-lo a qualquer custo, convencido de que essa é a única forma de salvar vidas.
Essa narrativa, obviamente, está repleta de falácias lógicas e teorias conspiratórias. A base da Terapia Gerson é a equivocada premissa de que tudo o que não é "natural" faz mal, aliada à crença de que alguns poucos resultados aparentemente positivos bastam para validar uma teoria jamais submetida a ensaios clínicos rigorosos.
A "Terapia Gerson" nunca foi levada a sério pela ciência, sobretudo porque não se alinhava nem mesmo aos princípios básicos da fisiopatologia do câncer. Gerson ignorava os fatores de risco que contribuem para o desenvolvimento do câncer, rejeitava qualquer tratamento medicamentoso – ou que envolvesse substâncias que ele classificava como "químicas" – e via a dieta como o fator determinante tanto na origem quanto na cura das doenças. Além disso, desconsiderava que diferentes tipos de câncer exigem abordagens terapêuticas específicas.
As evidências
Curiosamente – ou tragicamente, dependendo do ponto de vista –, a Terapia Gerson já era questionada desde meados da década de 1940. Um caso emblemático ocorreu em 1946, quando o Journal of the American Medical Association (JAMA) publicou um editorial afirmando que, por anos, recebera solicitações de informações sobre o método dietético do Dr. Gerson – as quais ele jamais forneceu de forma satisfatória.
Gerson chegou a publicar alguns relatos de caso em que, mesmo sem constatar remissão do câncer, afirmava ter obtido melhora evidente não apenas na saúde geral, mas também na redução do tamanho dos tumores em muitos pacientes. No entanto, acredito que essa afirmação reflete mais o otimismo do médico do que dados sólidos, visto que todos os relatos baseiam-se apenas em impressões clínicas sobre os supostos benefícios.
Corroborando as observações feitas no editorial, o National Cancer Institute (NCI) revisou os casos apresentados por Gerson e constatou que, embora os relatos incluíssem anotações clínicas e radiografias ao longo do tempo, o acompanhamento dos pacientes era feito de forma pouco sistemática, muitas vezes por meio de comunicações via correio ou telefone.
Tentativas posteriores de avaliar a Terapia Gerson – ou estratégias complementares ao tratamento convencional baseadas nela – produziram resultados negativos ou sofreram com graves problemas metodológicos, como número muito pequeno de participantes, falta de grupos controle, exclusão arbitrária de participantes e intenso conflito de interesse.
Se isso não fosse suficiente para marginalizar ainda mais a prática, os riscos e efeitos adversos são preocupantes. A utilização dos enemas de café, parte central do protocolo, já foi associada a efeitos indesejados. Em um dos casos, um paciente faleceu pouco após receber tratamento na clínica do Instituto Gerson, apresentando as bactérias Salmonella (responsável pela doença homônima) e Campylobacter fetus intestinalis (uma das principais causas de diarreia aguda). No entanto, não é possível atribuir essa morte diretamente aos enemas, pois não foram realizados testes adicionais.
Outros relatos mencionam desequilíbrios eletrolíticos fatais, o que evidencia que o tratamento pode apresentar riscos significativos, especialmente quando a eliminação de supostas “toxinas” ocorre de forma intensa, sem monitoramento adequado.
Possivelmente, muitos leitores e/ou espectadores da série ficaram indignados com a terapia e, possivelmente, julgaram Milla e sua mãe por terem participado de uma prática claramente pseudocientífica, que poderia trazer apenas malefícios. No entanto, alerto que a grande maioria das Práticas Integrativas e Complementares (PICs) no Brasil segue o mesmo padrão: carecem de evidências científicas — ou, quando têm, estas frequentemente contradizem a própria prática. Aproveitam-se da fragilidade das pessoas, desviam recursos que poderiam ser melhor aplicados em outras áreas da saúde e, claro, induzem pacientes a interromper tratamentos eficazes e respaldados por evidências, resultando em mortes desnecessárias e sofrimento.
Mauro Proença é nutricionista
REFERÊNCIAS
STRAUS, H. e MARINACCI, B. Dr. Max Gerson: Healing the Hopeless. 2002. Disponível em: https://www.amazon.com.br/Dr-Max-Gerson-Healing-Hopeless/dp/0976018616.
JAMA. Gerson’s Cancer Treatment. JAMA. 1946; 132(11): 645-646. Disponível em: https://jamanetwork.com/journals/jama/article-abstract/289754.
NCI. Gerson Therapy (PDQ) - Health Professional Version. 2016. Disponível em: https://www.cancer.gov/about-cancer/treatment/cam/hp/gerson-pdq.