Estase no criacionismo e na biologia evolutiva

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16 dez 2024
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besouro

 

Me perdoe por isso, mas começo esta coluna mais uma vez em tom pessoal. Prometo que não é só por vaidade. Acontece que entre os dias 28 e 29 de novembro tive uma chance ímpar: pude desfrutar da companhia de um dos maiores nomes da paleontologia do último século — Niles Eldredge. Ao longo de sua extensa carreira, Eldredge publicou muitos artigos científicos e livros, tanto técnicos quanto populares. Mas é certamente mais conhecido como um dos autores da Teoria dos Equilíbrios Pontuados. Na verdade, como já discutimos aqui, embora geralmente o crédito seja dado a S. J. Gould, o cerne da teoria havia sido desenvolvido anteriormente por Eldredge  em um artigo solo, publicado um ano antes do famoso capítulo de livro de 1972.

Eldredge , com razão, tem orgulho de sua história. Já a contou em Eternal Ephemera (2015) e agora em Macroevolutionaries (2024; com Bruce Lieberman). Um de seus maiores feitos foi trazer um aspecto muito importante das espécies de volta à biologia evolutiva: a estase. O que se observa no registro fóssil é que, em geral, as espécies não estão constantemente mudando de forma cumulativa e tendenciosa, mas permanecem morfologicamente estáveis pela maior parte da sua existência — estase, portanto. O reconhecimento disso tem implicações importantes, e Eldredge passou parte de sua carreira apontando quais são.

Acontece que, enquanto realizava o sonho de conhecer e conversar pessoalmente com um de meus heróis intelectuais, o Evolution News publicava desinformação sobre biologia evolutiva, justamente envolvendo... estase! Me surpreende que, depois de décadas, os criacionistas ainda usem o tipo de argumento que você está a prestes a ver.

Conforme reporta Günter Bechly em sua coluna, dois artigos recentes descrevem besouros do gênero Loricera preservados em âmbar (tanto adultos quanto larvas) com idade estimada em 99 milhões de anos. De acordo com Bechly, “esses besouros fósseis são basicamente indistinguíveis das várias espécies vivas do gênero Loricera e têm características anatômicas idênticas de adultos e larvas”. E ele vê um problema para a biologia evolutiva aí.

O problema, acredita, é que os Loricera não poderiam demonstrar tamanha estabilidade morfológica, já que passaram pela extinção do final do Cretáceo. Dada essa crise biológica de grandes proporções, Bechly sugere que deveríamos ver mudança nos besouros Loricera, já que a seleção natural não poderia simplesmente favorecer a estabilidade, pois se o ambiente está em crise, então as espécies precisam se adaptar. Bechly argumenta:

“Este é de fato o ponto crucial, porque tais casos marcantes de estase são comumente explicados por biólogos evolutivos como causados por uma seleção estabilizadora em um ambiente estável de seu nicho ecológico. No entanto, essa explicação simplesmente não é plausível ao longo de centenas de milhões de anos com habitats em mudança, clima em mudança, biota em mudança e até mesmo eventos de extinção em massa de dimensões apocalípticas”.

Aqui reside uma confusão entre regularidade e regra estrita. O próprio Niles Eldredge elaborou um modelo evolutivo, por ele chamado de “sloshing bucket” (“balde agitado”), que pode servir de pano de fundo para entendermos o equívoco fundamental de Bechly e de muitos criacionistas. Eldredge defende que podemos compreender melhor a evolução da vida e da complexidade biológica se reconhecermos a existência de duas hierarquias dominantes.

A primeira, conhecida como hierarquia genealógica ou evolutiva, é formada por organismos que se agrupam em populações reprodutivas (ou “demes”), as quais, por sua vez, compõem espécies. Essas espécies, então, integram grupos maiores.

Já a segunda, a hierarquia ecológica, considera os organismos como agentes ecológicos, não apenas reprodutivos. Nesse contexto, as populações têm um papel distinto: enquanto as populações reprodutivas estão focadas na reprodução, as populações ecológicas (ou “avatares”) têm como principal função a sobrevivência, criando uma rede e um contexto que permitem a continuidade dos demes. Essas populações ecológicas dão origem a ecossistemas locais, que se conectam para formar ecossistemas regionais e, por fim, culminam na biosfera, o conjunto de todos os ecossistemas.

Segundo o modelo de Eldredge, quando algo “sacode” a hierarquia ecológica, isso reflete em algum nível na hierarquia evolutiva. Por exemplo, quando há perturbação ambiental local, isso deve refletir em mudanças evolutivas de menor escala em populações locais. Quando regiões inteiras são afetadas, como por um evento de vulcanismo intenso, isso pode refletir nas taxas de extinção e especiação (origem de novas espécies) naquela região. Por fim, uma mudança global, como a que aconteceu com a queda do bólido no final do Período Cretáceo, pode causar um evento de extinção em massa e, assim, criar a oportunidade para a origem de novos grupos.

Então isso só dá mais apoio à reclamação de Bechly, certo? Na verdade, não. O modelo do “sloshing bucket” trata de generalidades. Não se deve esperar que todos os grupos de organismos respondam da mesma maneira. Em um evento de grandes proporções, muitas espécies serão eliminadas, muitas acabarão por surgir, mas também haverá aqueles grupos que não sofrerão muita mudança aparente. A estase observada nos besouros Loricera precisa ser estudada para que possamos entender suas causas, mas isso em nada abala a biologia evolutiva como a compreendemos.

A partir desses poucos fatos sobre os besouros, Bechly esbraveja:

“Compare isso com a alegação evolucionista de que mamíferos semelhantes a porcos, como Indohyus e Pakicetus, se transformaram em baleias completamente marinhas, como golfinhos, como Dorudon e Basilosaurus, em apenas 4 a 8 milhões de anos. A seleção natural é a grande mágica na terra da fantasia evolutiva, onde explica mudanças rápidas em radiações explosivas, bem como nenhuma mudança ao longo de eras nos chamados ‘fósseis vivos’. No entanto, uma teoria que é sempre perfeitamente consistente com qualquer resultado possível não está explicando nada, mas é tão duvidosa quanto a psicanálise freudiana ou a astrologia, com suas previsões vagas que sempre se encaixam”.

Se o ancestral longínquo das baleais não tivesse sofrido nenhuma alteração, e se seus descendentes não tivessem desviado da morfologia ancestral, então simplesmente não existiriam baleias. Aconteceu, eles mudaram, mas não é uma obrigatoriedade. Poderia simplesmente não ter acontecido. E nós também não sabemos quantas vezes organismos terrestre passaram a habitar as proximidades da água e acabaram por não evoluir adaptações aquáticas. Então o fato de ora observamos mudança considerável, ora não, em si, não afeta em nada a validade da biologia evolutiva. Exigir esse tipo de homogeneidade de taxa e modo de evolução é absurdo.

E não, a biologia evolutiva não é consistente com qualquer cenário possível. Há potenciais assinaturas no registro fóssil que seriam inconsistentes com as expectativas evolutivas. Por exemplo, uma troca completa de fauna de um período para outro, sem conexão alguma entre elas, é inconsistente com as previsões da ancestralidade comum. Vida não é criada do nada após um evento de extinção, mas evolui a partir dos sobreviventes. Por isso, deve haver conexão. E há.

Assim, os argumentos de Bechly, e de criacionistas em geral, falham por não compreender as nuances fundamentais da teoria evolutiva — ou por ignorá-las propositalmente. A estase, longe de ser uma fraqueza, é um aspecto bem documentado e consistente com a moderna biologia evolutiva. O trabalho de Eldredge e outros pioneiros nos mostra que a evolução é um processo complexo, multifacetado e intrinsecamente ligado às interações entre organismos e seus ambientes, em escalas variadas.

Devemos, portanto, buscar regularidades, mas não regras fixas e inflexíveis. A biologia evolutiva não é um dogma rígido, mas uma estrutura teórica aberta a revisões baseadas em novas evidências — e, até o momento, ela permanece plenamente consistente com o que observamos no registro fóssil e na biologia contemporânea. A biologia evolutiva é dinâmica, já o criacionismo é estático. Não avança, apenas recicla.

João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade

 

PARA SABER MAIS

Eldredge, N. (2008). Hierarchies and the sloshing bucket: toward the unification of evolutionary biology. Evolution: Education and Outreach1, 10-15.

Eldredge, N. (2015). Eternal ephemera: Adaptation and the origin of species from the nineteenth century through punctuated equilibria and beyond. Columbia University Press.

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