O túnel que não é túnel: atalho cósmico para cliques

Artigo
5 dez 2024
Autor
túnel espacial

 

Notícias sobre astronomia e espaço costumam ser uma boa maneira de atrair o público para as editorias de ciência da imprensa generalista. A fascinação histórica do ser humano com o céu e o Universo é um chamariz poderoso, despertando interesse por descobertas de todo tipo. Mas muitas vezes jornalistas e veículos não consideram isso suficiente, especialmente nestes tempos de economia da atenção e luta por cliques. Assim, surgem manchetes exageradas e enganosas, como no caso dos supostos "sinais de vida em Vênus", ou que o núcleo da Terra "parou de girar".

E foi o que aconteceu recentemente com o anúncio da descoberta de um "túnel interestelar" que sai das cercanias do Sistema Solar rumo à constelação do Centauro, conhecida por abrigar o sistema estelar mais próximo do nosso, Alfa Centauri. De um termo figurativo para designar uma assimetria no gradiente de temperatura do meio interestelar na chamada Bolha Quente Local - ou simplesmente Bolha Local, a região da Via Láctea onde o Sistema Solar está atualmente -, o "túnel" logo ganhou contornos de ficção científica nas chamadas para as matérias, sugerindo uma passagem para viagens interestelares.

Com isso, a descoberta talvez prosaica - pelo menos outro "túnel" do tipo na Bolha Local já era conhecido, na direção da constelação de Cão Maior, objeto de estudo publicado em 1991 - se transformou em um verdadeiro atalho cósmico para cliques. Mesmo o vetusto veículo público britânico BBC embarcou na viagem, primeiro com seu serviço em espanhol e depois o em português, anunciando o achado como um "surpreendente túnel interestelar" - e ao mesmo tempo ignorando a detecção anterior de estrutura similar na Bolha Local.

Daí, o conteúdo foi reproduzido por outros grandes veículos brasileiros, como Folha e G1, ou ganhou coberturas próprias, sejam baseadas na notícia da BBC ou em matéria de divulgação produzida pela Instituto Max Planck para Física Extraterrestre, na Alemanha, onde trabalham os cientistas responsáveis pela descoberta. Embora também ocasionalmente faça uso do termo "túnel", o material institucional mostra comedimento na prática, evitando incluí-lo no título e mantendo seu caráter figurativo.

Alguns veículos, porém, foram numa direção diametralmente oposta. No caso de um deles, em vídeo de divulgação da notícia circulando no WhatsApp, a profissional da redação - que não é jornalista - faz uso explicitamente capcioso do termo "túnel", chegando a citar a ideia de ligação com "ficção científica", para atrair audiência para seu site. Quem clica no link da mensagem, no entanto, cai direto numa página com a manchete ambígua e o conteúdo escondido por um paywall. Sintomaticamente, também não é a profissional do vídeo que assina o material, mas um genérico "por redação".

 

Erosão da confiança

Recentemente, o editor-chefe desta Revista Questão de Ciência, Carlos Orsi, publicou coluna em que destaca que nem tudo precisa ser notícia. Embora seu foco fossem descobertas na área de saúde - muitas vezes ainda incipientes, em fase de testes em laboratório ou com animais e, portanto, ainda longe de se traduzirem em sequer uma esperança de tratamento para seres humanos -, o alerta também pode servir para ciências mais "duras", como a astrofísica neste caso.

Até porque há vários aspectos na descoberta e seu entorno que podem exercitar a fascinação humana pelo Universo sem apelar para a ficção científica. Desde a natureza da Bolha Local - mais para uma “cavidade” com cerca de mil anos-luz de extensão no Braço de Órion da nossa galáxia, a Via Láctea, caracterizada por uma baixíssima densidade de gás (essencialmente hidrogênio neutro, com uma concentração de cerca de 0,05 átomo por cm3, ou 50 átomos por litro) a alta temperatura (cerca de 1 milhão de graus Kelvin), mas que não "queima" nada justamente pela falta de contato entre os átomos para transferir esta energia - até como a estrutura foi identificada - os dados vieram o eRosita, principal instrumento de um observatório espacial de raios X, construído em cooperação entre Rússia e Alemanha, e lançado em 2019 a cerca de 1,5 milhão de quilômetros de distância da Terra para o "ponto Lagrange 2", uma região do espaço além da Lua em que fica numa órbita relativamente estável em torno do Sol na qual efetivamente segue "alinhado" ao nosso planeta, com a vantagem de também escapar da interferência do "brilho" residual em raios X emitido pela chamada geocorona, resultado da interação da camada mais externa da atmosfera terrestre, a exosfera, com a radiação solar.

Isso sem contar as implicações do achado, como evidência de que a Bolha Local e outras estruturas do tipo na nossa vizinhança galáctica foram "escavadas" por uma sucessão de explosões de supernovas que iluminaram o céu da Terra algumas dezenas de milhões de anos atrás, muito pouco tempo em termos astronômicos, e que o nosso Sistema Solar só começou a atravessar essa região do espaço nos últimos 5 milhões de anos, com sua posição aparentemente central na cavidade atualmente não passando de uma coincidência.

Ludibriar o público com manchetes enganosas sobre ciência e pôr o hype acima da relevância pode render cliques no curto prazo. Esta estratégia, no entanto, arrisca erodir a confiança e dissipar a fascinação que tanto podem contribuir para a divulgação científica e a disseminação de conhecimento com conteúdos de qualidade.

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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