George Gaylord Simpson (1902-1984) é tido por muitos como o mais influente paleontólogo de sua geração. Costuma ser o único paleontólogo a aparecer de forma proeminente nas narrativas mais populares do período em que se consolidou a Síntese Moderna, geralmente considerada o cerne da moderna Teoria da Evolução. Seu livro, Tempo and Mode in Evolution, publicado em 1944, cumpriu um papel crucial em construir uma ponte entre a paleontologia e biologia dos seres ainda viventes — a neontologia. Para além dos aspectos teóricos de seu trabalho, Simpson era um especialista em mamíferos fósseis. Na sua bibliografia também consta uma ficção científica, “A Descronização de Sam Magruder” (1996), publicada postumamente.
Simpson costuma ser descrito como alguém brilhante, porém tímido e contido. Por escrito, no entanto, podia vociferar bastante e ser bem incisivo. Por exemplo: teve um artigo publicado na Science em 1960, no ano seguinte ao centenário de “A Origem das Espécies”. Nele, o autor discute tanto os aspectos teóricos quanto factuais do darwinismo, com um foco especial em como “a revolução darwiniana mudou o elemento mais crucial no mundo do homem: sua concepção de si mesmo”. Um trecho em particular me chamou atenção, por razões que esclareço depois de um pouco de contextualização.
Provavelmente você já ouviu de algum criacionista a seguinte indagação: se nós evoluímos de macacos, então porque ainda existem macacos? Ao que se responde geralmente nos seguintes moldes: na verdade não descendemos de nenhuma espécie de macaco vivente; temos ancestrais em comum com as espécies de macacos e símios, mas não descendemos delas; os chimpanzés são nossos “primos”, não nossos “pais”. Esse tipo de resposta esclarece alguns pontos, mas deixa algumas sutilezas de lado.
Essa resposta não enfatiza que a principal razão para os macacos ainda existirem é o fato de que não há necessidade alguma que eles se tornem humanos. Eles estão muito bem, obrigado. Além disso, espécies não se transformam nas outras por inteiro. O que ocorre é um processo de diferenciação de subpopulações, que geralmente se isolam e acabam divergindo (morfológica, genética e/ou comportamentalmente). Não há necessidade alguma para exigir a extinção da forma ancestral para que uma nova possa surgir.
Há ainda outro aspecto que pode tornar essa resposta padrão insatisfatória. E aí que voltamos a Simpson. Embora reconhecendo que “a ascendência precisa do homem não está identificada em todos os detalhes e, portanto, está sujeita a algum desacordo”, Simpson também enfatiza o ponto pacífico de que “o homem é membro da ordem dos Primatas” e que poucos “duvidam que seus parentes vivos mais próximos sejam os grandes símios”. Logo em seguida, o tímido Simpson demonstra o seu gênio irascível:
“Sobre esse assunto, aliás, há muita hesitação desnecessária. Apologistas enfatizam que o homem não pode ser descendente de nenhum grande símio vivo — uma afirmação óbvia até o limite da imbecilidade — e prosseguem afirmando ou insinuando que o homem não é realmente descendente de um símio ou macaco, mas de um ancestral comum mais antigo. Na verdade, esse ancestral comum certamente seria chamado de símio ou macaco na linguagem popular por qualquer pessoa que o visse. Como os termos ’símio’ e ‘macaco’ são definidos pelo uso popular, os ancestrais do homem eram símios ou macacos (ou sucessivamente ambos). É pusilânime, senão desonesto, que um investigador informado diga o contrário”.
Eu certamente não usaria as mesmas palavras que Simpson, mas consigo concordar com o sentimento geral. Considere os símios: gibões, orangotangos, gorilas, chimpanzés e humanos. O ancestral comum desses primatas provavelmente se pareceria com um... bem, algo mais similar a esses símios do que a um sagui ou qualquer outro macaco. Então, não é problemático dizer que nós, humanos, descendemos de símios. O argumento pode ser estendido para abranger mais e mais e primatas, em algum momento o ancestral teria uma morfologia similar ao que chamaríamos popularmente de macaco. Então, nesse sentido, descendemos de macacos.
Na verdade, como o Pirulla argumentou há alguns anos, nós também somos macacos, nesse sentido genealógico, ou filogenético, para usar um termo mais técnico. Se nós chamamos chimpanzés, gorilas, saguis, etc, de macaco, então porque não generalizar e nos incluir também? Somos tão macacos quanto eles. É simples entender o motivo. Pense na sua família. Provavelmente tem aquele parente que você gostaria de excluir, mas você sabe que, embora possa artificialmente criar um conjunto familiar que deixe a pessoa indesejada de fora, na realidade ele/ela continuaria, genealogicamente, parte da família.
A mesma coisa acontece conosco. Os primatas são organismos muito diversos. São inúmeros grupos e subgrupos. Um desses subgrupos são os hominídeos, que inclui os orangotangos, gorilas, chimpanzés e humanos. Não há razão alguma para pôr chimpanzés, gorilas e orangotangos num mesmo grupo, com a exclusão dos humanos. Sabemos que chimpanzés são parentes mais próximos de nós do que de gorilas ou orangotangos. Num sistema de classificação natural, portanto, somos hominídeos e compartilhamos uma história evolutiva com os outros membros desse grupo.
Somos macacos, e isso de forma alguma diminui a maravilha da nossa existência. Só engrandece. O quão maravilhoso é saber que não estamos isolados, mas conectados a bilhões de seres vivos que existiram, existem ou existirão, galhos de uma antiga árvore genealógica que nasceu há cerca de 4 bilhões de anos? Ecoando Simpson:
“É concebível que a vida possa ser mais feliz para algumas pessoas nos antigos mundos da superstição. É possível que algumas crianças sejam felizes acreditando no Papai Noel, mas os adultos deveriam preferir viver em um mundo de realidade e razão.
“Talvez eu devesse encerrar com essa nota de mera preferência, mas isso é impossível. É uma característica deste mundo, cuja porta Darwin abriu, que, a menos que a maioria de nós entre nele e viva de forma madura e racional, o futuro da Humanidade será sombrio — se é que haverá algum futuro”.
João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade
PARA SABER MAIS
Simpson, G. G. (1960). The World into Which Darwin Led Us: The Darwinian revolution changed the most crucial element in man's world—his concept of himself. Science, 131(3405), 966-974.