O jornal O Globo noticia que uma empresária matogrossense foi às redes sociais denunciar que havia sofrido um AVC após ter o pescoço manipulado numa sessão quiropraxia. A relação estreita entre quiropraxia da coluna cervical e o risco de derrames cerebrais é velha conhecida nos Estados Unidos, país de origem da prática. Em janeiro do ano passado, o Courier-Journal da cidade de Louisville, no estado de Kentucky (EUA), noticiava que uma quiroprata local havia sido condenada a pagar uma indenização de mais de US$ 1 milhão – incluindo despesas médicas e compensação por danos – a uma paciente que sofreu derrame após ter o pescoço manipulado pela profissional.
A quiropraxia é um método de manipulação dos ossos da coluna vertebral e do pescoço que alega promover a saúde, mas que não tem benefícios comprovados por pesquisas científicas de qualidade. Quando aplicada ao pescoço, a técnica tem uma chance – estimada em 1,3 caso por 100 mil pacientes – de causar a “dissecção” das artérias carótidas. Trata-se de um dano no revestimento interno do vaso sanguíneo que pode vir a servir como ponto focal para a formação de coágulos, que por sua vez podem chegar ao cérebro e causar derrames. A taxa estimada de derrames provocados dessa forma é de 0,97 por 100 mil.
Como não existe um sistema de registro de efeitos adversos de terapias alternativas – como há para medicamentos aprovados e vacinas –, essas estatísticas, quase que certamente, estão subestimadas. Os dados de 1,3 dissecção por 100 mil e 0,97 derrame por 100 mil vêm do livro Chiropractic, do especialista em medicina alternativa Edzard Ernst, publicado em 2020.
Tal como imaginada no século 19 por seu criador, o canadense D.D. (Daniel David) Palmer – que contou várias histórias sobre a origem da prática, incluindo uma em que teria recebido a revelação de um espírito –, a técnica corrige supostas “subluxações” (lesões imaginárias, que apenas o quiroprata é capaz de identificar) da coluna vertebral, e pode curar qualquer doença, ao liberar o fluxo de “inteligência inata” do corpo.
Hoje em dia, os praticantes dividem-se em diferentes escolas: alguns ainda seguem a doutrina de Palmer ao pé da letra; outros tentam associar a quiropraxia a outras práticas alternativas, como acupuntura e homeopatia; e outros, ainda, buscam aproximar-se do conhecimento moderno sobre saúde, afastando-se da linguagem mística e limitando-se a usar a técnica como uma forma de massagem para dores lombares e problemas afins. A evidência de que quiropraxia pode funcionar melhor do que um placebo para dores nas costas é fraca, e para qualquer outro tipo de problema de saúde, inexistente.
Historicamente, sabe-se que Palmer, nascido no Canadá mas que fez carreira nos Estados Unidos, era um oportunista e um charlatão, promotor de diversas “curas” tão milagrosas quanto ineficazes. Em 1906, chegou a ser preso por prática ilegal da Medicina. Antes de inventar a quiropraxia, vendia “remédios magnéticos”, e sempre condenou o uso de vacinas: Palmer negava a teoria de que doenças infecciosas eram causadas por microrganismos, preferindo atribuí-las às imaginárias “subluxações”.
Sendo um produto norte-americano com menos de 200 anos, a quiropraxia dificilmente poderia ser considerada uma forma de terapia tradicional, ou com peso relevante na cultura brasileira. Mesmo assim, viu-se incluída no Plano Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), do Ministério da Saúde, em 2017, durante o governo de Michel Temer.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)