Revisão pelos pares ou revisão judicial?

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23 ago 2024
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Dama da Justiça

 

É provável que você ainda não conheça este nome, mas deveria. Dr. Cyriac Abby Philips (também conhecido nas redes sociais como TheLiverDoc) é um médico especializado em hepatologia e pesquisador indiano. Entretanto, o foco aqui não são suas conquistas profissionais, mas uma situação recorrente em sua vida.

Em janeiro de 2021, o editor-assistente da RQC, Cesar Baima, publicou o artigo “Quando a ciência vai para o banco dos réus”, no qual descreveu a saga jurídica enfrentada por Philips após a publicação do relato de caso de uma jovem indiana de 24 anos, que morreu depois de iniciar um programa dietético usando produtos da empresa Herbalife. A investigação subsequente sobre a composição desses produtos gerou controvérsias. Como era de se esperar, a fabricante não ficou satisfeita com a divulgação e lançou ameaças legais contra a Elsevier, editora que havia publicado as conclusões de Philips, que acabou cedendo, publicando uma nota de retratação e removendo o artigo - sugiro que leiam “banco dos réus” na íntegra, para entender melhor a história.

Três anos e meio após esse evento, somos surpreendidos, no último 18 de julho, no blog Retraction Watch, pela seguinte nota: “Supplement maker sues critic for defamation, spurring removal of accepted abstract”.  O processo, por difamação, foi movido pela Himalaya Wellness, uma empresa de suplementos de ervas baseados na medicina ayurvédica, devido a postagens no X (antigo Twitter) sobre seus produtos.

Além de ser proibido de falar sobre a empresa e seus produtos, Philips teve sua conta no X suspensa por ordem judicial. A suspensão foi revertida após um recurso, e a conta foi restaurada, mas o silêncio persiste.

Antes de a Himalaya entrar com a ação, Philips havia submetido um artigo ao periódico Frontiers in Pharmacology. O artigo descrevia casos de danos hepáticos associados a um dos produtos da empresa, o Liv.52, um suplemento herbal supostamente indicado para ajudar na saúde do fígado, composto por diferentes ervas, incluindo alcaparra e chicória. Embora a revista tenha aceitado e publicado o artigo em janeiro deste ano, a história não terminou aí.

Algumas semanas após a publicação, Laura Johnson, gerente de integridade de pesquisa da Frontiers, enviou um e-mail ao Dr. Philips informando que a editora havia sido notificada de processos judiciais em andamento entre o autor e a empresa, além de possíveis conflitos de interesse financeiros não divulgados. Diante das questões legais em curso, foi sugerido que a publicação fosse suspensa até a conclusão dos processos.

Em resposta, Philips argumentou que o processo civil em andamento entre ele e a Himalaya Wellness Company era irrelevante para a recente publicação aceita na revista, uma vez que o processo foi movido devido às suas postagens em redes sociais, e não por publicações científicas. Além disso, não havia nenhuma ordem legal ativa de um tribunal que impedisse Frontiers de publicar este manuscrito, que já havia sido aceito e revisado por pares.

O autor declarou ainda não ter conflitos de interesse nem divulgações financeiras a fazer.

Quatro meses após esse primeiro contato, Johnson, em sua tréplica, informou que, após revisar a situação em detalhes, a editora decidira suspender a publicação do artigo até que os processos legais na Índia fossem resolvidos.

Um dos coautores do artigo, o pesquisador Arif Hussain Theruvath, conversou com Retraction Watch: "Philips está atualmente proibido, por uma ordem do Tribunal Civil de Karnataka, de falar sobre a empresa Himalaya Wellness ou seus produtos, especialmente o Liv.52." E continua: “Não havia justificativa para a Frontiers suspender a publicação".

Como um simples nutricionista brasileiro, não tenho conhecimento sobre o sistema judiciário indiano, e não posso afirmar se a decisão foi correta ou não. No entanto, há algo que posso fazer: discutir o Liv.52, já que existem outros estudos sobre o produto.

 

O polêmico Liv.52

Infelizmente, não consegui acesso ao texto completo de Philips para compreender a metodologia empregada, as possíveis limitações e a confiabilidade do estudo. Mas, graças ao Wayback Machine, um banco de dados digital que permite acessar "versões antigas" de websites, pude ler o resumo.

O artigo intitulado “Severe Liver Injury Due to the Proprietary Herbal Liv.52 – Clinical Outcomes, Toxicology, and Critical Review of Literature” identificou 15 casos de lesão hepática induzida por ervas (HILI, sigla em inglês) relacionados ao Liv.52, com base em uma revisão retrospectiva de um banco de dados de pacientes, com informações de 1º de junho de 2019 a 15 de junho de 2023.

Após a exclusão de outras causas, cinco dos 15 casos foram considerados decorrentes da suplementação com Liv.52. O consumo médio do suplemento foi de 57 dias, conforme as instruções da bula, o que descarta a hipótese de consumo acima do limite recomendado.

As indicações para o uso do produto incluíam: "desintoxicação do álcool", reversão do fígado gorduroso (também conhecido como esteatose hepática, caracterizada pelo acúmulo anormal de gordura nas células do fígado) e prevenção de hepatite infecciosa. Como não foi especificada qual hepatite seria prevenida, presumo que se refira à hepatite B, transmitida por via parenteral ou sexual, ou à hepatite C, que ocorre principalmente por via sanguínea. Minha hipótese baseia-se no “Global Hepatitis Report 2024”, publicado pela OMS, que aponta 29,8 milhões de infecções de hepatite B e 5,5 milhões de infecções de hepatite C na Índia.

Entre os desfechos observados, foram identificados lesão hepática aguda grave, descompensação aguda e falência hepática. Além disso, foram encontrados sinais de obstrução biliar (ou seja, um bloqueio no sistema biliar, resultando na diminuição do fluxo de bile do fígado para o trato intestinal, o que pode causar infecção e icterícia).

Também verificou-se que os suplementos contêm ingredientes botânicos e outros que causam danos ao fígado. A análise toxicológica revelou altos níveis de metais pesados.

Embora Philips e seus colegas apresentem conclusões fortemente contrárias ao uso do produto, seu trabalho, por si só, não basta para comprovar a causalidade entre o suplemento e lesão hepática grave.

A conclusão alcançada por Philips não é corroborada por outros trabalhos. Por exemplo, Kantharia, C. et al. publicaram em 2023 um artigo intitulado “Hepatoprotective Effects of Liv.52 in Chronic Liver Disease: Preclinical, Clinical and Safety Evidence: A Review”, com o objetivo de apresentar todas as evidências clínicas e pré-clínicas sobre o uso do suplemento no tratamento de diversas doenças hepáticas.

Nesse estudo, os autores afirmam que a formulação ayurvédica do Liv.52, composta por sete ervas e mandur bhasma (uma preparação ayurvédica feita a partir de óxido férrico), apresenta um poderoso efeito protetor do fígado. A lista de benefícios atribuída pelos autores ao suplemento inclui manejo de hepatopatia alcoólica (lesão hepática provocada por uso abusivo e prolongado de etanol), hepatite viral, cirrose hepática inicial, anorexia, perda de peso e ganho de peso — só por essa introdução já é possível perceber que estamos lidando com uma panaceia.

Nos estudos clínicos revisados, o efeito hepatoprotetor do Liv.52 foi avaliado para as seguintes condições: tuberculose (seis estudos), hepatopatia alcoólica (cinco), hepatite viral (nove), doenças hepáticas crônicas não infecciosas (um), função hepática na gravidez (um), cirrose hepática (três), DHGNA (seis) e síndrome de hepatomegalia (um).

Embora a duração do tratamento, a dose e a composição do produto tenham variado entre os estudos (atualmente existem três versões do suplemento: Liv.52, Liv.52 DS, com concentração mais elevada, e Liv.52 HB, indicado para hepatite B), observou-se uma tendência de melhora em todas as condições mencionadas. Contudo, a confiabilidade dos achados foi limitada pelo pequeno tamanho das amostras nos ensaios clínicos e pela ausência de avaliações histológicas, como ultrassom e biópsia hepática, para comprovar a melhora do fígado.

E alguns estudos verificaram efeitos negativos ou eficácia limitada do Liv.52, como o trabalho de Silva, H. et al., intitulado “Liv.52 in Alcoholic Liver Disease: A Prospective, Controlled Trial”, que foi conduzido em 80 pacientes com hepatopatia alcoólica ao longo de seis meses e não encontrou diferenças significativas nos desfechos clínicos e na bioquímica hepática entre os dois grupos. É importante salientar que esses estudos apresentaram limitações graves. Por exemplo, a pesquisa de Silva teve uma taxa de abandono muito alta (apenas 38 dos 80 voluntários completaram o estudo), o que pode ter comprometido a avaliação da eficácia do suplemento.

Com base nisso, os autores concluem que os resultados desta revisão sistemática sugerem que o Liv.52 pode ser benéfico na melhora dos sintomas e parâmetros hepáticos em diversas doenças, além de potencialmente melhorar a qualidade de vida dos pacientes. A conclusão é otimista, mas o levantamento tem problemas sérios, e soa mais como uma peça de marketing do que como um estudo científico rigoroso.

O primeiro ponto que me chamou a atenção foi a falta de uma explicação detalhada sobre a metodologia empregada; em nenhum momento os autores indicam os critérios utilizados para a seleção dos artigos. Ou seja, estamos lidando, na verdade, com uma revisão narrativa marcada por uma escolha enviesada para reforçar a proposta de que o Liv.52 é "eficaz", um cherry picking de supostas evidências.

Em segundo lugar, os autores declaram, na discussão e na conclusão, que o artigo é uma revisão sistemática, mas o trabalho não atende a pré-condições básicas desse tipo de estudo, como análise de risco de viés. A limitação mais grave surge no final do artigo e está relacionada ao financiamento da pesquisa. Deixando claro, como afirmei em outros momentos, a presença de financiamento e/ou conflito de interesse, por si só, não invalida os achados de uma pesquisa. No entanto, pode indicar que os autores tenham "buscado" resultados positivos onde não existiam ou minimizando possíveis resultados negativos. Neste caso, houve financiamento da fabricante do Liv.52, a Himalaya Wellness.

Embora os autores tenham declarado que esse financiamento não influenciou o trabalho relatado, devo alertar que, ao examinar as referências utilizadas, descobri que alguns dos estudos citados incluíam pesquisadores que também eram funcionários da empresa ou recebiam financiamento dela.

Exemplificando, a referência de número 49 (Meta-analysis of 50 Phase III Clinical Trials in Evaluation of Efficacy and Safety of Liv.52 in Infective Hepatitis) foi utilizada para argumentar a eficácia do suplemento tanto na prevenção da hepatotoxicidade induzida por medicamentos usados em terapias antituberculose quanto na redução de marcadores séricos que avaliam a função hepática, como TGO, TGP e bilirrubina sérica. Para ambos os desfechos estudados, observou-se que o Liv.52 era eficaz. Contudo, um dos autores, Mitra, S., ocupava o cargo de diretor executivo no departamento de Pesquisa e Serviço Técnico do Centro de P&D da empresa Himalaya.

Com base nas evidências apresentadas tanto por Philips quanto pelos “estudos” financiados pela Himalaya, não é possível afirmar que o produto possa ocasionar danos hepáticos graves ou, tampouco, que seja benéfico.

Contudo, acredito que existe uma questão ainda mais grave a ser discutida. O estudo de Philips não foi excluído da literatura científica por apresentar falhas metodológicas graves, má conduta científica, e tampouco por pressão acadêmica resultante de ciência fraca. O que ocorreu, de fato, foi que a Frontiers retirou o artigo da plataforma possivelmente devido a pressões econômicas ou jurídicas. Vale ressaltar que isso é uma especulação da minha parte; segundo um representante da empresa, a questão está sub judice e não deve ser discutida publicamente.

O que não podemos desconsiderar é o precedente que se abre a partir da ação da Frontiers, que, mesmo indiretamente, sugere que pesquisadores processados, independentemente do motivo, terão seus trabalhos colocados no limbo até que resolvam as pendências judiciais. Isso é algo que deve ser cuidadosamente considerado pela comunidade científica.

 

Mauro Proença é nutricionista

 

REFERÊNCIAS

BAIMA, C. Quando a ciência vai para o banco dos réus. 2024. Disponível em: https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/artigo/2021/01/13/quando-ciencia-vai-para-o-banco-dos-reus.

KINCAID, E. Supplement maker sues critic for defamation, spurring removal of accepted abstract. 2024. Disponível em: https://retractionwatch.com/2024/07/18/supplement-maker-sues-critic-for-defamation-spurring-removal-of-accepted-abstract/.

PHILIPS, C. et al. Severe Liver Injury due to the Proprietary Herbal Liv.52® - Clinical Outcomes, Toxicology, and Critical Review of Literature. Front. Pharmacol. 2024. Disponível em: https://web.archive.org/web/20240531063856/https:/www.frontiersin.org/journals/pharmacology/articles/10.3389/fphar.2024.1276313/abstract.

OMS. Global Hepatitis report 2024: action for access in low- and middle-income countries. 2024. Disponível em: https://iris.who.int/bitstream/handle/10665/376461/9789240091672-eng.pdf?sequence=1.

KHANTHARIA, C. et al. Hepatoprotective Effects of Liv.52 in Chronic Liver Disease Preclinical, Clinical and Safety Evidence: A Review. Gastroenterol. Insights 2023, 14(3), 293-308. Disponível em: https://www.mdpi.com/2036-7422/14/3/21.

SILVA, H. et al. Liv.52 in alcoholic liver disease: a prospective, controlled trial. J Ethnopharmacol. 2003 Jan;84(1): 47-50. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/12499076/.

MITRA, S. e KOLHAPURE, S. Meta-analysis of 50 Phase 50 III Clinical Trials in Evaluation of Efficacy and Safety of Liv.52 in Infective Hepatitis. Medicine Update (2004): 12(2), 51-61. Disponível em:https://www.liv52.co.uk/research/wp-content/uploads/2016/06/liv257.pdf

 

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