Lançado em 18 de julho de 1997, o último álbum de estúdio da banda Legião Urbana, intitulado Uma Outra Estação, tem como décima primeira faixa a música “Marcianos Invadem a Terra”. Embora o intuito de Renato Russo não fosse necessariamente escrever uma canção sobre vida extraterrestre, nem sobre a visita de pequeninos seres verdes, há na canção alguns versos que pedem reflexão. O compositor escreveu: “Será que existe vida em Marte? Janelas de hotéis, garagens vazias, fronteiras, granadas, lençóis?”.
Assim como nós, Renato sabia que não, não há janelas de hotéis em Marte; não há nenhum indicativo da presença de seres com biologia e cultura como as nossas, junto com suas maravilhas e mazelas inerentes. Mas ainda permanece a questão: será que existe vida em Marte? Essa é uma pergunta muito interessante e pertinente, para a qual, feliz ou infelizmente, ainda não temos uma resposta. Com os dados que temos até agora, penso eu, a resposta mais correta é “não” ou, na melhor das hipóteses, “não sabemos”. Mas será que já existiu? Essa é outra pergunta. E é dela que trataremos aqui.
A Nasa reportou em 25 de julho que cientistas do rover Perserverance encontraram rochas intrigantes em Marte. Uma chamada bastante neutra, apesar de direta. O lide jornalístico também vai ao ponto: “O geólogo de seis rodas encontrou uma rocha fascinante que apresenta alguns indícios de que pode ter abrigado vida microbiana há bilhões de anos, porém mais pesquisas são necessárias”. Essencialmente, é isso. O nosso querido Perserverance encontrou uma rocha com feições bastante curiosas, que podem ser vestígios de vida passada, mas é algo que está longe de “prova cabal”.
Desde que pousou no planeta vermelho em 18 de fevereiro de 2021, o rover vem investigando a cratera Jazero, cujas rochas devem ter por volta de 4 bilhões de anos, quando ainda havia em Marte rios e lagos, uma espessa atmosfera e condições químicas e de temperatura mais compatíveis com a vida como a conhecemos. Ali na cratera, o rover encontrou uma rocha, informalmente batizada de “Cheyava Falls”, que chamou a atenção dos cientistas. Provavelmente um lamito — tipo rocha sedimentar formado por silte e argila —, a rocha contém moléculas orgânicas, como sugere análise realizada por um dos instrumentos a bordo do robô. Evidentemente, apesar do nome, moléculas orgânicas também podem ser produzidas por outras vias, que não a vida em si.
Também são visíveis na rocha linhas ou sulcos paralelos, chamados de “veias”, ricos em sulfato de cálcio. Essas “veias” geralmente se formam quando água passa pelas fraturas das rochas, e minerais se precipitam. Isso pode indicar, portanto, algum grau de habitabilidade. Porém, existe um complicador. Essas mesmas “veias” contém um mineral conhecido como olivina, cuja origem é ígnea, ou seja, vêm do magma. Isso quer dizer que, embora a água pudesse estar presente, ela não estava ali em temperaturas muito amenas ou desejáveis para a vida como conhecemos.
Entre essas “veias” paralelas, há bandas avermelhadas, provavelmente devido à presença de hematita, um dos minerais que conferem a Marte a sua típica coloração. Justamente nessas regiões avermelhadas o Perserverance foi capaz de identificar muitas manchas esbranquiçadas, de alguns milímetros. Ao redor de cada mancha há uma espécie de halo ou anel de coloração escura. Por isso, essas manchas estão sendo descritas como lembrando pintas de um leopardo. Outro instrumento apontou a possível presença de ferro e fosfato nesses anéis escurecidos. David Flannery, astrobiólogo, membro da equipe científica do Perseverance da Universidade de Tecnologia de Queensland, na Austrália, explicou porque essas manchas são tão interessantes: “Na Terra, esses tipos de características em rochas são frequentemente associados ao registro fossilizado de micróbios que vivem no subsolo”.
Como assim?
Escrevendo no The Conversation, Sean McMahon, outro astrobiólogo, explicou:
“Elas [as manchas] se parecem com as ‘manchas de redução’, também chamadas de ‘manchas de leopardo’, comumente vistas em rochas sedimentares vermelhas na Terra. Essas rochas são de cor vermelha enferrujada porque contêm uma forma oxidada de ferro. Quando reações químicas modificam o ferro para um estado menos oxidado, ele se torna solúvel. A água carrega o pigmento embora, deixando uma mancha descolorida.
“Na Terra, essas reações são frequentemente conduzidas por bactérias que vivem no subsolo. Elas usam o ferro oxidado como fonte de energia, da mesma forma que você e eu usamos o oxigênio no ar. Em Marte, organismos semelhantes a bactérias poderiam ter usado a matéria orgânica na rocha para completar a reação (da mesma forma que usamos a glicose dos alimentos que comemos)”.
Contudo, apesar de promissor, ainda é preciso descartar hipóteses não biológicas para a produção das tais manchas. Isso é porque, como ressalta McMahon, reações químicas envolvendo fluidos ácidos podem produzir os padrões observados na rocha encontrada pelo Perserverance. Portanto, é preciso cautela. E para se ter alguma resposta mais definitiva, o melhor mesmo seria coletar essas amostras e trazer para a Terra, para que sejam analisadas com os melhores instrumentos possíveis. A Nasa planeja uma missão de coleta de amostras em Marte, mas só o futuro dirá se sairá do papel.
Toda essa conversa de vida ou fósseis em Marte se baseia muito na ideia de que seríamos capazes de identificar a vida, isto é, de que conhecemos quais são as assinaturas deixadas por atividade biológica (em oposição à atividade “meramente” física ou química). Porém, é evidente que as assinaturas que podemos conceber são baseadas no tipo de vida que conhecemos. E só conhecemos um tipo: a vida no nosso planeta. Mas não é um absurdo buscar por assinaturas familiares nas vizinhanças do Sistema Solar ou nos confins do Cosmos. Gosto de uma analogia que ouvi de David Bull, um artista de xilogravura no estilo japonês.
Em um vídeo no qual versa sobre os significados da vida, Bull compara a vida a rios. Dadas certas condições de temperatura, precipitação, topografia, etc., rios são inevitáveis. Você nunca deve encontrar o mesmo rio duas vezes, com as mesmas sinuosidades e padrões, mas há de haver rios por aí no Universo, sim. Para Bull, a vida também é assim. E concordo, de maneira geral. Claro, não dá pra esperar homenzinhos verdes por aí, como se a forma humana fosse inevitável, mas alguns padrões bioquímicos, genéticos e morfológicos podem se repetir. Podemos esperar algumas generalidades sobre a vida. E talvez algumas das bioassinaturas que conhecemos possam ser gerais, ou chegar perto disso. Então, para citar Renato Russo mais uma vez, não é tempo perdido buscar por elas.
Enfim. Enquanto a evidência for ambígua, nos resta perguntar, como fez Renato Russo no último verso de sua canção: e mesmo se eu tiver a minha liberdade, será que existe vida em Marte?
João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade