Há algumas semanas, uma marca de vitaminas e suplementos alimentares brasileira lançou uma campanha publicitária em que uma famosa jornalista e apresentadora de TV fala sobre a qualidade de seus produtos e seus potenciais benefícios, em especial para uma pessoa com a vida atribulada e na sua idade. Além de emprestar sua credibilidade a esta ideia, ela reforça que os produtos da marca têm certificação da FDA (Food and Drugs Administration, a agência responsável pelo controle de alimentos e medicamentos nos EUA) e da "União Europeia" - compreensível, dado que a European Medicine Agency (EMA) não conta com a mesma notoriedade e lugar no imaginário popular de sua equivalente americana.
Afora a vira-latice de deixar de lado a brasileiríssima Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) - da qual, em última instância, os produtos da marca dependem da aprovação e autorização para serem comercializados no país -, a campanha incorre em uma falácia comum para convencer os consumidores, a "falácia da autoridade". Isso porque, ao destacar que os produtos propagandeados têm a aprovação de autoridades sanitárias de países desenvolvidos, ela passa a ideia que o endosso abrange os benefícios propalados, quando diz respeito apenas ao fato de que eles contêm o que dizem conter, nada mais - embora, em alguns casos, nem isso.
(Essa falácia é uma ferramenta clássica da publicidade. A imagem que ilustra este artigo vem de uma campanha publicitária dos anos 1940 em que médicos supostamente recomendavam uma marca de cigarro)
Este tipo de "propaganda subliminar" não é exclusividade da marca de suplementos, sendo muito usado por outros fabricantes de produtos desta linha aqui e em outros países, e até em outras áreas da medicina. Um exemplo disso, já relatado aqui na Revista Questão de Ciência (RQC), é de um médico brasileiro radicado na Flórida que vire e mexe aparece na grande mídia nacional com suas promessas vazias de curar doenças neurodegenerativas como Alzheimer, Parkinson, esclerose múltipla e esclerose lateral amiotrófica (ELA), e, mais recentemente, até câncer. Em seus materiais de divulgação e entrevistas, o médico frisa que o equipamento que usa nos seus supostos tratamentos tem "aprovação da FDA", quando na verdade a autorização da agência americana se restringe ao uso para o qual foi inicialmente desenvolvido: a aferição da temperatura interna do cérebro.
O erro de Pauling
Os fabricantes de vitaminas e suplementos devem muito ao químico americano Linus Pauling (1901-1994). Ganhador do Prêmio Nobel de Química de 1954 - e do da Paz em 1962 -, Pauling empenhou seu prestígio à tese de que doses extremas de vitamina C ajudariam a evitar ou amenizar gripes e resfriados. Com o tempo, ele expandiu as alegações para incluir até a cura do câncer, e foi um dos responsáveis pela ascensão da chamada "medicina ortomolecular", baseada na ideia de que níveis ditos "ótimos" de determinados nutrientes promoveriam a saúde e combateriam doenças. O que não impediu que morresse de câncer de próstata em 1994, apesar da ingestão diária de cavalares 18.000 mg (18 g) de vitamina C (cerca de 450 vezes a dose diária recomendada).
O "estrago", no entanto, estava feito. Apesar da falta de evidências da eficácia de superdoses de vitamina C contra resfriados - uma revisão Cochrane de 2013 recomenda o uso caso a caso e pede por mais estudos sobre o assunto -, o mito se estabeleceu, e não há quem não ouça o conselho de "vitamina C e cama" ao primeiro espirro.
E o mesmo vale para muitos destes chamados "micronutrientes", que além de vitaminas incluem minerais como zinco, ferro e cobre. Ideia que alimenta um mercado global estimado em US$ 110 bilhões (cerca de R$ 600 bilhões) em 2022, e que se esperava chegar a US$ 252 bilhões (R$ 1,39 trilhão) no ano que vem e US$ 327,4 bilhões (R$ 1,8 trilhão) em 2030.
Não é por menos que ainda em 2022 a Associação Médica dos Estados Unidos (American Medical Association – AMA) publicou uma edição especial de seu Journal of Ethics dedicada ao tema de suplementos não regulados – ou frouxamente fiscalizados – pela FDA. Em uma série de artigos, especialistas discutem a ética da prescrição de vitaminas e suplementos pelos médicos americanos e como eles devem abordar seu uso com os pacientes. Os textos incluem estudos de caso fictícios para ilustrar os dilemas e dificuldades que os profissionais enfrentam em relação aos suplementos, além de preocupação com a regulamentação e fiscalização destes produtos e a migração de sua publicidade da mídia tradicional para o ambiente digital, especialmente influencers em redes sociais.
Já no Brasil, onde o mercado de suplementos movimentou R$ 6,6 bilhões em 2019, o Conselho Federal de Medicina (CFM) não parece dar muita importância à questão. Aqui, a autarquia tem como única orientação na área a Resolução número 2.004/2012, que alerta contra a prática da medicina ortomolecular - que o CFM não reconhece como especialidade médica - e diz que “a avaliação de nutrientes, vitaminas, minerais, ácidos graxos ou aminoácidos que podem, eventualmente, estar em falta ou em excesso no organismo humano, faz parte da propedêutica médica”.
Ainda de acordo com a resolução do CFM, “os tratamentos das eventuais deficiências ou excessos devem obedecer às comprovações embasadas por evidências clínico-epidemiológicas que indiquem efeito terapêutico benéfico”, sendo que “a reposição medicamentosa em comprovadas deficiências de vitaminas, minerais, ácidos graxos ou aminoácidos será feita de acordo com a existência de nexo causal entre a reposição de nutrientes e a meta terapêutica ou preventiva”. Por fim, o CFM estabelece que “medidas higiênicas, dietéticas e de estilo de vida não podem ser substituídas por qualquer tratamento medicamentoso, suplementos de vitaminas, sais minerais, ácidos graxos ou aminoácidos”.
Publicidade ambígua
De volta à questão da publicidade de vitaminas e suplementos, tanto os EUA quanto o Brasil adotam uma política restritiva, com exigências claras e rigorosas para evitar alegações falsas ou exageradas de eficácia, ou que os produtos sejam confundidos ou usados como remédios ou curas. Aqui, resolução da Anvisa limita o que pode ser escrito nos rótulos, em geral frases genéricas como "rico em...", "fonte de...", além de indicações de que a substância "ajuda" ou "auxilia" nisso e naquilo, acompanhadas de advertência em destaque e negrito de que “este produto não é um medicamento”.
A regulamentação, no entanto, deixa uma brecha aberta para o tipo de publicidade ambígua adotado na campanha da marca brasileira. Nos EUA, qualquer alegação de benefício, mesmo que indireta, deve vir acompanhada da advertência de que "esta afirmação não foi avaliada pela FDA". Aqui, porém, quando a jornalista e apresentadora de TV menciona a "certificação da FDA" logo após afirmar que "cuidar da saúde sempre foi uma das minhas prioridades" e destacar a necessidade de "saúde, qualidade de vida e vitalidade", esta ressalva é convenientemente deixada de lado.
Mas ela não está sozinha nisso. Antes da jornalista e apresentadora, um famoso ator brasileiro, hoje nonagenário, também encabeçava campanha em que cantava loas de produto da mesma marca de vitaminas e suplementos. Voltando mais no tempo, qualquer brasileiro que cresceu nos anos 1980 há de lembrar de Pelé recomendando tomar os produtos da Vitasay para ter mais saúde e combater os efeitos do estresse.
Xixi caro
A realidade é que afora estados de deficiência de nutrientes, algumas doenças e situações especiais (como o ácido fólico para mulheres em idade fértil), na maioria das vezes não há evidências conclusivas de benefícios da suplementação de micronutrientes. Em alguns casos há, inclusive, potenciais riscos no seu consumo, em especial em protocolos de superdosagem, como o que Pauling usava e defendia.
Aqui mesmo na RQC, o nutricionista Mauro Proença escreveu artigos relatando estudos que não encontraram influência do consumo de multivitamínicos no aumento da longevidade de adultos saudáveis, ou que tiveram seus resultados exagerados pela mídia, como na melhoria da memória e cognição. Também já alertamos que tomar pílulas de colágeno não vai evitar que apareçam rugas no seu rosto, muito menos curar sua artrose.
Isto para citar apenas os enganos mais comuns. Há exemplos muito mais desonestos, e até perigosos. Coisas como o mineral zeólita clinoptilolita, que prometia "atuar como desintoxicante, hipoglicêmico, hipocolesterolêmico e fortalecedor do sistema imune" e teve sua comercialização, distribuição, fabricação, importação e propaganda no Brasil proibidas pela Anvisa em 2021; ou a microalga chlorella, cujo importador preferiu deixar "caducar" a autorização que tinha para vender o produto no país a cumprir novas regras da Anvisa para sua formulação e rotulagem. Ou, ainda, a bobagem arriscada dos "vapes" de vitamina.
Assim, muitas vezes, na melhor das hipóteses tudo que um suplemento vai fazer por você é que tenha um xixi caro.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência