Não é a primeira vez que abordo os multivitamínicos, suplementos compostos por diferentes vitaminas e minerais, aqui na RQC. Em outra publicação, debrucei-me sobre os supostos efeitos benéficos desses suplementos para a cognição. Com base na evidência disponível, concluí que ainda faltava muito para que se pudesse afirmar algo a respeito.
Agora voltamos aos multivitamínicos, mas investigando outra questão: “Qual é a associação entre o uso diário e a longo prazo de multivitamínicos e a mortalidade em adultos com boa saúde geral?”. A pergunta foi proposta por Loftfield, E. e colegas em um recente artigo intitulado “Multivitamin Use and Mortality Risk in 3 Prospective US Cohorts” e publicado no JAMA Network Open, um filhote do Journal of the American Medical Association (JAMA).
Entretanto, antes de discutirmos a pesquisa, acredito que seja importante compreender o quanto os suplementos alimentares, e mais precisamente os multivitamínicos, estão presentes na vida da população brasileira.
Suplementação
De acordo com uma pesquisa de mercado realizada pela ABIAD (Associação Brasileira da Indústria de Alimentos para Fins Especiais), intitulada “Hábitos de Consumo de Suplementos Alimentares 2020”, realizada em sete capitais nas cinco regiões do Brasil, em 59% dos lares brasileiros há, no mínimo, uma pessoa consumindo suplemento. Saúde foi citada como o principal fator que leva os entrevistados a consumirem suplementos alimentares. Observou-se ainda que o hábito era maior entre mulheres; a maioria das recomendações de consumo (51%) de suplementos era feita por profissionais de saúde; e o acesso a informações era mais frequente pela internet (68%).
Em outro infográfico publicado pela ABIAD, baseado nessa mesma pesquisa, aponta-se que 95% dos idosos entrevistados responderam que utilizavam suplementos para manutenção da saúde. Dentre os mais consumidos, destacaram-se o ômega-3 (30%), os multivitamínicos (23%), cálcio (19%), vitamina C (17%) e colágeno (9%).
Infelizmente, não foi mencionado em nenhum momento qual foi a metodologia empregada nem a quantidade de indivíduos entrevistados, o que impede que sejam feitas generalizações para o conjunto da população brasileira.
Felizmente, para esclarecer um pouco a questão, Pavlak, C. e Mengue, S. publicaram, em 2023, um artigo intitulado “Uso de vitaminas e/ou minerais entre adultos e idosos em áreas urbanas no Brasil: prevalência e fatores associados”. Os autores estimaram a prevalência do uso de vitaminas e/ou minerais nas populações idosa e adulta a partir dos dados coletados pela Pesquisa Nacional de Acesso, Uso e Promoção do Uso Racional de Medicamentos no Brasil (PNAUM), um estudo transversal realizado em áreas urbanas das cinco regiões brasileiras entre setembro de 2013 e fevereiro de 2014, e que utilizou um questionário contendo 11 blocos para coletar informações dos entrevistados.
O questionário abordou diversos tópicos, incluindo a presença de doenças crônicas e medicamentos utilizados; serviços de saúde utilizados; doenças ou eventos agudos tratados com medicamentos, vitaminas, suplementos minerais, estimulantes do apetite ou tônicos nos últimos 15 dias; utilização de contraceptivos; serviços de farmácia utilizados para obtenção de medicamentos; comportamentos que podem afetar o uso de medicamentos, como fontes de indicação de medicamentos, automedicação ou não adesão; hábitos de leitura de bulas e embalagens; estilo de vida; características do domicílio, renda familiar e outras informações sociodemográficas. Ao todo, foram entrevistadas 41.433 pessoas.
Para estimar a prevalência do uso de vitaminas, os autores realizaram um recorte no banco de dados da PNAUM, excluindo gestantes e estabelecendo como critério de inclusão participantes com 20 anos ou mais, o que resultou em uma amostra de 32.057 pessoas.
Desses 32.057 participantes, 1.679 responderam fazer uso de produtos contendo vitaminas e/ou minerais.
Com base nos dados encontrados, os autores concluem que a prevalência de uso de vitaminas e/ou minerais é maior no sexo feminino, em pessoas com maior poder aquisitivo, e aumenta com o avanço da faixa etária. Os multivitamínicos e multiminerais foram os suplementos mais frequentemente relatados entre os usuários.
É extremamente difícil estimar com precisão quantas pessoas utilizam suplementos alimentares. No entanto, considerando a projeção feita pelo Statista, uma plataforma global de dados e inteligência de negócios, o mercado nacional de vitaminas e minerais alcançou uma receita de US$ 1,27 bilhão em 2024, com uma taxa de crescimento anual estimada de 6,7%. Isso sugere que há um aumento no consumo - ou pelo menos uma maior busca - pela população brasileira.
O novo estudo
Loftfield, E. e colegas conduziram um estudo agregando dados de três grandes pesquisas de coorte norte-americanas. Nesse tipo de pesquisa, dados de populações selecionadas são coletados ao longo do tempo, em busca de correlações entre fatores de interesse – por exemplo, dieta e pressão sanguínea. No caso, as pesquisas incluíram avaliações repetidas do uso de multivitamínicos e o acompanhamento para desfechos de mortalidade.
Somando as populações das três pesquisas, a análise final utilizada pelos autores incluiu 390.124 participantes, com média de idade de 61,5 anos e uma leve predominância masculina (55,4%). Durante o estudo, ocorreram 164.742 óbitos, sendo 49.836 atribuídos ao câncer, 35.060 a doenças cardíacas e 9.275 a doenças cerebrovasculares.
Para avaliar o uso de multivitamínicos, os três estudos questionaram os participantes sobre o uso anterior de suplementos nos questionários iniciais e de acompanhamento. Aqueles que relataram o uso foram questionados sobre a frequência, variando de nunca a todos os dias. As categorias de uso de multivitamínicos foram harmonizadas entre as três coortes, classificando os participantes como não usuários, usuários não diários ou usuários diários.
Entre as potenciais variáveis de confusão, os autores procuraram harmonizar idade, sexo, raça, nível educacional, tabagismo, IMC, estado civil, atividade física, consumo de álcool, consumo de café, uso de outros suplementos, qualidade da dieta e histórico familiar de câncer entre os estudos.
Como resultado, observou-se que os usuários diários de multivitamínicos apresentaram as seguintes características: 49,3% eram mulheres; 42% tinham formação universitária; apresentavam menor propensão de serem tabagistas (11% em comparação com não usuários de MV, que eram 13%); utilizavam outros suplementos; tinham um IMC mais baixo; e apresentavam uma melhor qualidade de dieta.
Apesar de algumas características favoráveis, a análise composta revelou que os usuários diários de multivitamínicos apresentaram risco de mortalidade 4% maior em comparação com os não usuários.
Ressalta-se que algumas covariávies aparentemente modificam esse efeito, como o tabagismo, idade, e IMC. Por exemplo, em uma das análises, verificou-se que a associação entre o uso diário de multivitamínicos e o risco de mortalidade era mais elevada em indivíduos mais jovens (abaixo dos 55 anos), chegando a quase 15% a mais.
Como conclusão, os autores afirmam que, nos dados de 390.194 adultos, sem prevalência importante de doenças crônicas, não foi possível encontrar evidências que apoiem a ideia de que o uso diário de multivitamínicos aumenta a longevidade.
Cabe salientar que o estudo apresentou algumas limitações importantes. A mais significativa é o fato de ser um estudo observacional, o que implica que, apesar dos cuidados tomados pelos autores, não é possível eliminar completamente as variáveis de confusão, o que pode enviesar as estimativas de risco.
Além disso, os autores reconhecem que pode haver erros introduzidos por falha na memória dos participantes ao relatar a frequência de uso dos multivitamínicos, entre outros problemas, incluindo participantes cujos dados, por estarem incompletos, não foram levados em conta.
Encerro este artigo com as palavras de Scott Gavura, sobre este mesmo tema - em tradução livre:
"A indústria de suplementos conseguiu enganar os consumidores ao promover a ideia de que suplementos de vitaminas e minerais são benéficos à saúde e que quanto maior a ingestão, melhor. Nada disso foi comprovado como verdadeiro quando se trata de longevidade. O que temos de evidências, até o momento, é que a utilização de multivitamínicos, como uma espécie de 'seguro' dietético, é uma estratégia que, na melhor das hipóteses, é inútil e, na pior, pode reduzir a expectativa de vida".
Mauro Proença é nutricionista
REFERÊNCIAS
LOFTFIELD, E. et al. Multivitamin Use and Mortality Risk in 3 Prospective US Cohorts. JAMA Netw Open. 2024;7(6):e2418729. Disponível em: https://jamanetwork.com/journals/jamanetworkopen/fullarticle/2820369.
ABIAD. Hábitos de Consumo de Suplementos Alimentares – 2020. Disponível em: https://abiad.org.br/2021/wp-content/uploads/2020/09/Infografico-1-Pesquisa-Suplementos-Alimentares-2020.pdf.
ABIAD. Desafios Nutricionais para Envelhecer com Qualidade de Vida. Disponível em: https://abiad.org.br/2021/wp-content/uploads/2023/03/Infografico_Nutricao-Idoso_V7-2-3.pdf.
PAVLAK, C. e MENGUE, S. Uso de vitaminas e/ou minerais entre adultos e idosos em áreas urbanas no Brasil: prevalência e fatores associados. Ciênc. saúde coletiva 28 (09): 2625-26-36, 2023. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/Q8WrrZgVfQpDrtgdfrYgwJm/?format=pdf&lang=pt.
MENGUE, S. et al. Pesquisa Nacional sobre Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos (PNAUM): Métodos do Inquérito Domiciliar. Ver. Saúde Pública 2016;50(Supl 2):4s. Disponível em: http://www.rsp.fsp.usp.br/wp-content/uploads/articles_xml/0034-8910-rsp-s2-S01518-87872016050006156/0034-8910-rsp-s2-S01518-87872016050006156-pt.x63890.pdf.
STATISTA. Vitamins & Minerals – Brazil. 2024. Disponível em: https://www.statista.com/outlook/hmo/otc-pharmaceuticals/vitamins-minerals/brazil.
GAVURA, S. No Benefit to Daily Multivitamin Use. 2024. Disponível em: https://sciencebasedmedicine.org/no-benefit-to-daily-multivitamin-use/.