Na série de livros "Fundação", do escritor americano Isaac Asimov (1920-1992), um matemático - Hari Seldon - desenvolve uma nova "ciência" - a "psico-história" - com a qual, supostamente, é capaz de prever a decadência e colapso do Império Galático que habitava, desenhando um intricado plano para encurtar ao máximo os 30 mil anos da "era de trevas" que atingiria a Humanidade a partir de então.
Saindo da ficção para um campo mais "terrestre", no mesmo 1992 da morte de Asimov, o cientista político americano Francis Fukuyama, diante da recente queda do Muro de Berlim e fim da União Soviética, decretou o "Fim da História", prevendo que a "universalização" da democracias liberais nos moldes ocidentais e do capitalismo de mercado marcaria o fim da evolução sociocultural e das lutas políticas e ideológicas da Humanidade, inevitavelmente tornando-se as formas ideais de governo e organização econômica do mundo.
Spoiler: em "Fundação", os planos de Seldon acabam perturbados pelo surgimento de um indivíduo inesperado, um mutante conhecido apenas como "O Mulo". Já com relação a Fukuyama, basta dar uma olhada nas notícias internacionais para ver que ele provavelmente foi vítima de um excesso de otimismo, deflagrado pelo ufanismo com a "vitória" dos EUA na Guerra Fria.
Ambos casos, porém, são ilustrativos de tentativas fracassadas de prever a evolução do pensamento e comportamento das massas, emulando uma visão determinista do futuro da Humanidade que levada ao extremo resultou nos regimes mais brutais de nossa História: o nazifascismo à direita, e o comunismo à esquerda. Em "Fundação", ignorando uma vulnerabilidade fundamental da fictícia psico-história: a força do acaso. Em "Fim da História", a força de elementos culturais - costumes e tradições, mas também religião e valores - na resistência ao avanço da democracia liberal.
E são as previsões em torno de um destes elementos que uma dupla de pesquisadores da Universidade de Chicago, EUA, se propõe investigar. Em estudo publicado recentemente na revista Nature Communications, Joshua Conrad Jackson e Danila Medvedev puseram à prova a hipótese das "teorias da modernização" convencionais acerca da convergência dos valores sociais entre culturas, pela qual "o fim da Guerra Fria e a ascensão da globalização catalisariam a disseminação global de uma 'civilização universal' com valores liberais e individualizantes que enfatizam a primazia dos direitos e liberdades pessoais".
Visão em xeque
Os conflitos do século 21, no entanto, colocaram em xeque esta visão. As críticas foram desde a necessidade de inclusão do desenvolvimento econômico na equação - partindo da ideia de que o aumento da riqueza e segurança encorajaria as pessoas a endossar valores emancipadores do indivíduo, o que, por sua vez, fomentaria a democracia participativa e a "ocidentalização" das sociedades - à sua rejeição, com previsões de que a globalização pós-Guerra Fria deflagraria tendências tribalistas e nacionalistas, levando à "ressurgência de divisões culturais baseadas em diferenças linguísticas e religiosas associadas a civilizações históricas".
Em busca de uma resposta, Jackson e Medvedev se debruçaram sobre as sete "ondas" da Pesquisa Mundial de Valores (World Values Survey, ou WVS na sigla em inglês). Este levantamento multitemático foi realizado pela primeira vez em 1981 e teve os últimos dados compilados em 2021 com a participação de mais de 400 mil pessoas representativas das populações de 76 países. Eles criaram um conjunto de três métricas que usaram para avaliar a convergência ou divergência de valores ao longo deste período tanto entre os participantes de diferentes países quanto entre os no mesmo país, o que permitiu a análise em vários níveis.
A primeira métrica, que chamaram de "Variação de Valores", normalizou as respostas dos participantes para cada um dos 40 itens de valores sociais incluídos em todas ondas da WVS em uma escala de 0 a 1 e depois computou o desvio padrão para a média dos países em cada onda pesquisa. Assim, desvios maiores indicam uma maior variação nos valores, em cálculos que podem ser feitos para cada item, conjuntos deles ou todos, com um aumento da variação, por sua vez, apontando um crescimento na divergência de valores.
Já a segunda métrica, "Distinção de Valores", parte de normalização e cálculos similares à primeira para observar como a média dos valores da população de cada país se diferencia da média global e dos outros, de modo que países com maior "Distinção de Valores" são mais diferentes nestes pontos do que o resto do mundo. Desta forma, se a "Distinção de Valores" de um país aumenta com o tempo, isto também indica que os valores de sua população estão divergindo dos de outras no planeta, e se a "Distinção de Valores" estiver aumentando de forma geral entre os países, isso sugere uma divergência global nos valores.
Por fim, a terceira métrica, "Heterogeneidade no País", leva a investigação da variação e distinção de valores para o âmbito interno de cada país, medindo o quanto indivíduos da mesma população divergem nos seus valores, e como isso mudou ao longo do tempo. Com isso, os pesquisadores esperam observar fenômenos como um aumento da heterogeneidade nos valores em um país devido ao crescimento da polarização política, por exemplo.
Mas nem todos valores obedecem a princípios iguais. Alguns estão mais ligados a questões religiosas, enquanto outros associados a características mais individualistas ou coletivistas das sociedades. Diante disso, os pesquisadores também calcularam como cada item se relaciona às dimensões de "sagrado x secular" e "emancipativo x obediência" propostas pelo cientista político alemão Christian Welzel em seu livro "Freedom Rising: Human Empowerment and the Quest for Emancipation" ("A Ascensão da Liberdade: Empoderamento Humano e a Busca pela Emancipação", em tradução livre), de 2013.
Welzel desenvolveu estas dimensões para diferenciar a ascensão de valores "seculares", que rejeitam o controle externo dos indivíduos, seja via tradição, instituições ou religião, daqueles que chamou de "emancipativos" e reivindicam liberdades individuais, isto é, a autonomia, a escolha, a igualdade e a participação na sociedade. Estas dimensões, no entanto, não são mutuamente excludentes: uma questão pode ter um forte componente religioso ao mesmo tempo que envolve diretamente a liberdade individual, como a tolerância à homossexualidade, ou a aceitação do aborto e do divórcio.
Divergência em expansão
Os pesquisadores então avaliaram as tendências de convergência ou divergência de valores no mundo com base na primeira métrica, a "Variação de Valores", no nível dos itens específicos dos levantamentos do WVS. A análise mostrou um movimento geral de divergência de valores no mundo, mas também revelou que alguns valores divergiram mais que outros, especialmente os com alta carga emancipativa.
Segundo eles, os sete itens com maior aumento da divergência têm alta pontuação nesta dimensão: (1) justificabilidade da homossexualidade; (2) justificabilidade da eutanásia; (3) importância da obediência das crianças; (4) justificabilidade do divórcio; (5) justificabilidade da prostituição; (6) justificabilidade do suicídio; e (7) justificabilidade do aborto. À exceção da obediência infantil, todos também apresentaram correlação média ou alta com o confronto entre valores religiosos e seculares, mas os pesquisadores não encontraram uma associação destas dimensões com uma maior taxa de divergência nos valores.
Diante disso, Jackson e Medvedev focaram em como estes valores variaram entre as diferentes ondas da WVS. Eles observaram que da primeira à última, a variação de valores entre os diferentes países aumentou em 141% para a justificabilidade da homossexualidade, 94% para a justificabilidade da prostituição, 61% para a justificabilidade da eutanásia e 42% para a importância da obediência das crianças.
"As culturas nacionais estão divergindo mais na sua tolerância da expressão individual contra a ênfase na obediência ao grupo", comentam. "A divergência em valores emancipativos está aumentando a distinção entre os países ocidentais dos não ocidentais".
A dupla ilustra isso com o caso de Paquistão e Austrália. Na primeira vez que os australianos participaram da WVS, 39% dos ouvidos citaram a obediência como uma qualidade importante para as crianças, e mais australianos achavam o divórcio injustificável do que justificável. Quando os paquistaneses responderam as mesmas perguntas pela primeira vez, os números eram similares: 32% consideravam a obediência uma qualidade importante das crianças, e o divórcio também era visto mais como injustificável.
Décadas depois, porém, estas visões divergiram. Na última vez que participaram da pesquisa, só 18% dos australianos ainda apontavam a obediência como uma qualidade importante nas crianças, contra 49% dos paquistaneses, e o divórcio passou a ser visto como altamente justificável na Austrália, enquanto permaneceu majoritariamente injustificável para os paquistaneses.
"Dos anos 1980 aos anos 2020, lacunas similares emergiram entre países ocidentais e não ocidentais", apontam.
Processo que se deu principalmente entre a primeira e a quinta onda da WVS, acrescentam os pesquisadores, com as populações dos países da Oceania, Europa e Américas do Norte e do Sul endossando cada vez mais valores emancipativos, enquanto as nações da Ásia e África se mantiveram estáveis neste sentido.
Tendência que fica clara na segunda análise com a métrica da "Distinção de Valores". Segundo os pesquisadores, esta distinção aumentou no mundo ao longo das ondas da WVS, indicando um aumento da divergência de valores entre as populações do planeta. E continuou mesmo controlando para possíveis vieses, como a inclusão de mais países na pesquisa - e, assim, populações mais diversas e com diferentes culturas.
Esta análise também permitiu aos pesquisadores avaliar em quais países os valores mais se distinguem da média global. E novamente eles observaram um movimento distinto entre as culturas ocidentais e o resto do mundo, especialmente nos países mais ricos. Isto porque embora o PIB per capita ter sido a única variável que encontraram capaz de prever um aumento na Distinção de Valores, sua influência e tamanho de efeito foi diferente entre países ocidentais e não ocidentais.
Eles citam como exemplo disso os casos de Canadá e Hong Kong, que entre 2000 e 2020 viram seus PIB per capita crescerem em níveis e ritmos semelhantes, passando de US$ 25 mil para cerca de US$ 50 mil. Neste mesmo período, a tolerância à homossexualidade foi de um índice de 0,49 para 0,74 no Canadá, mas apenas de 0,29 para 0,44 em Hong Kong, o que "significa que a distância entre as médias de Hong Kong e Canadá aumentou em 50%" nestas duas décadas.
"Estes achados sugerem uma possibilidade provocativa: o aumento na riqueza global pode ser responsável pela divergência global de valores", comentam. "Muitos países ficaram mais ricos ao longo do tempo - países ocidentais, mas também não ocidentais, como Cingapura, Hong Kong e Coreia do Sul. Isso significa que muitos países eram mais pobres nas ondas iniciais (vs. as mais recentes) da WVS. As nações ocidentais já endossavam valores mais emancipativos nestas ondas iniciais do que as nações não ocidentais, mas não por um grau muito grande. À medida que o tempo passou, o aumento na riqueza levou os países ocidentais a adotarem mais valores emancipativos, mas isso não teve o mesmo efeito na maioria dos países não ocidentais. E esta tendência alimentou o crescente distanciamento (de valores) dos países ocidentais ricos do resto do mundo".
Segundo os pesquisadores, seus resultados são condizentes com teorias como a das "múltiplas modernidades" do sociólogo israelense Shmuel Noah (S.N.) Eisenstadt (1923-2010), em que cada país segue uma trajetória única de modernização, ou com as observações do cientista político americano Samuel Huntington (1927-2008) em seu livro "Choque de Civilizações" (1996) de que o aumento da riqueza e influência dos países asiáticos poderia levar a uma reafirmação de valores tradicionais confucianos.
Em seguida, os pesquisadores avaliaram se esta Distinção de Valores entre os países era impactada por uma heterogeneidade nos valores endossados pelas populações dentro de cada país. Embora não tenham encontrado uma tendência geral na heterogeneidade de valores entre as ondas da WVS, com ela aumentando em alguns países e diminuindo em outros, eles encontraram uma correlação desta métrica com o crescimento da Distinção de Valores tanto em países ricos quanto mais pobres.
"Estes resultados sugerem que à medida que os países desenvolvem valores mais homogêneos, eles podem se separar cada vez mais de pontos de vista compartilhados com o resto do mundo", avaliam. "Isto aconteceu em nações ocidentais de alta renda como Suécia e Noruega, onde há um maior consenso em torno de valores emancipativos como a justificabilidade do divórcio e do aborto. Mas também aconteceu em países mais pobres como China e Gana, onde o consenso se formou em torno de diferentes valores. Por outro lado, países como valores muito heterogêneos, como a África do Sul e a Índia, podem lutar com divisões internas, mas quando tirada a média de suas subpopulações, os valores do país como um todo se assemelham mais com os de outros países".
Fechando as análises, os pesquisadores avaliaram o quanto os diferentes países se reuniam em torno de valores similares. Novamente, a riqueza foi a melhor preditora deste processo, com as populações de países de maior renda tendo valores mais semelhantes às de outros países de maior renda, e as de países mais pobres endossando valores similares às de outros países pobres. Eles também encontraram uma correlação de similaridade de valores e proximidade geográfica. Assim, países asiáticos de alta renda como Coreia do Sul e Cingapura tinham valores mais alinhados entre si do que a países ricos de cultura ocidental como Nova Zelândia ou Holanda. Aqui, a religião foi outro preditor robusto de similaridade de valores, mesmo controlando para outros fatores como renda, posição geográfica e outras variáveis geopolíticas.
"O fato de os valores estarem se segregando ao longo de fronteiras geográficas e religiosas apoia ainda mais a tese de Huntington de que o século 21 veria a ascensão de uma divisão ancestral nos valores", consideram. "No ponto final de dados da WVS, a similaridade religiosa e a proximidade geográfica foram correlatos mais fortes da similaridade de valores do que níveis semelhantes de desigualdade ou direitos políticos".
Impactos teóricos e práticos
Segundo os pesquisadores, estes resultados têm impactos tanto nas teorias da modernização quanto do ponto de vista prático. Teoricamente, eles argumentam que a globalização e o contato intergrupos não são suficientes para produzir uma convergência de valores, e sugerem que a hipótese pós-materialista de que a riqueza alimenta valores emancipativos e tolerância pode ter uma influência maior em algumas regiões do mundo do que em outras.
"Nossos achados também apoiam partes de outras teorias, mas não se alinham com nenhuma única teoria sobre cultura e valores", acrescentam. "Observamos uma divergência global de valores acompanhada por um realinhamento de valores sobre linhas regionais e religiosas, o que é condizente com a tese sobre as civilizações de Huntington e trabalhos mais recentes sobre a ascensão do regionalismo sociopolítico a partir da macroeconomia. Também vimos que os efeitos da riqueza variam entre países ocidentais e não ocidentais, condizentes com a teoria das múltiplas modernidades de Eisenstadt e outros estudos que destacam a trajetória única de modernização da Ásia. Pode ser que nossos achados sejam específicos de um período de tempo que se seguiu à descolonização e ao fim da Guerra Fria (1981–2022) e que teríamos encontrado resultados diferentes em outros períodos. Só o tempo vai dizes se nossos achados representam uma tendência cultural geral ou um fenômeno histórico isolado".
Já do ponto de vista prático, Jackson e Medvedev argumentam que a divergência de valores tem implicações na crescente polarização política e eclosão de conflitos mundo afora. Eles lembram, por exemplo, que a Rússia enquadrou a guerra contra a Ucrânia como uma "guerra contra os valores ocidentais", enquanto políticos chineses frequentemente criticam países que buscam "forçosamente promover o conceito e o sistema de democracia ocidental e os direitos humanos".
"Organizações não governamentais ocidentais também têm enfrentado acusações de semear imoralidade e propagar o imperialismo ocidental, e pesquisas de opinião pública mostram uma atitude crescentemente hostil contra países ocidentais no Oriente Médio, Ásia e África", continuam. "Nossos achados não jogam luz sobre a extensão deste sentimento antiocidental, ou a exata natureza de seus antecedentes e consequências. Não sabemos o quanto os governos propagandeiam certos valores para reforçar identidades nacionais, como sugeriria (John) Tomlinson (autor de 'Globalização e Cultura' - 1999). Um dos objetivos de futuras pesquisas pode ser tentar entender o quanto as elites políticas encorajam a divergência de valores entre os cidadãos ordinários".
Por fim, eles também ressaltam como os resultados destacam as limitações de estudos sobre a psicologia humana cujos participantes costumam ser apenas ou majoritariamente pessoas provenientes do que chamaram de "países WEIRD" (Western, Educated, Industrialized, Rich and Democratic - Ocidentais, Educados, Industrializados, Ricos e Democráticos, em tradução livre - numa sigla que faz trocadilho com a palavra inglesa para "estranho").
"Esta peculiaridade representa um problema da validação externa para os estudos que recrutam majoritariamente sujeitos WEIRD, e também um problema intelectual para os evolucionistas culturais que esperam explicar a variação regional (de valores). Mostramos que este problema ficou mais agudo nos últimos 40 anos, como os sujeitos WEIRD se tornando ainda mais peculiares, pelo menos nos seus valores sociais e morais. Esta mudança torna ainda mais essencial que os cientistas comportamentais desenvolvam teorias usando dados de amostras mais representativas globalmente".
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência