É comum ouvir que estudantes de ciências biológicas têm aversão à matemática, assim como o diabo evita a cruz. Embora isso contenha uma dose de verdade, não é algo exclusivo da biologia. No entanto, não dá para escapar: a matemática está presente nas ciências, incluindo a biologia. Se você deseja compreender a Biologia Evolutiva de forma mais profunda, é essencial mergulhar nos detalhes da genética de populações. E, para isso, é necessário dominar a matemática.
A genética de populações é um ramo da biologia que estuda a composição genética de populações biológicas e como ela muda ao longo do tempo, devido a diversos fatores, incluindo a seleção natural. Um marco importante foi a publicação, em 1930, de "A Teoria Genética da Seleção Natural", de Ronald A. Fisher. Este livro uniu a teoria da seleção natural, como proposta por Darwin e outros de maneira verbal, narrativa e argumentativa, com os princípios da Genética Mendeliana, expressando tudo em termos matemáticos e estatísticos.
Fisher fez várias contribuições à genética de populações, incluindo o que ficou conhecido como "O Teorema Fundamental da Seleção Natural de Fisher". Em termos simples, o teorema mostra que a velocidade com que a aptidão de uma população aumenta ao longo do tempo, devido à seleção natural, está diretamente ligada à diversidade genética presente nessa população. Esse teorema destaca a importância da variação genética na seleção natural e na evolução. O termo “aptidão” aqui, simplificadamente, refere-se à medida da capacidade de um organismo de sobreviver e reproduzir-se com sucesso em um determinado ambiente, contribuindo para a transmissão de seus genes para as gerações futuras.
A escolha da palavra “teorema” não foi aleatória. Ela lembra os teoremas fundamentais da matemática, como o Teorema Fundamental da Álgebra ou o Teorema Fundamental do Cálculo. Mas estamos falando de biologia, não é? Como podemos ter teoremas em uma área onde "depende" é uma palavra tão comum? É importante entender que, na ciência, e especialmente na biologia, criamos modelos da realidade. Não temos acesso direto e imediato ao que acontece na natureza, então precisamos criar modelos que nos ajudem a entender os fenômenos. Na biologia evolutiva, isso envolve criar modelos matemáticos da seleção natural, deriva genética e outros processos.
O Teorema Fundamental da Seleção Natural de Fisher é um teorema porque é derivado matematicamente, seguindo certas condições. É um construto que emerge da lógica e da matemática, bem como da nossa forma de descrever os processos biológicos nessa linguagem útil para a ciência.
Em 2018, Basener & Sanford publicaram um artigo criticando o Teorema Fundamental da Seleção Natural, argumentando que Fisher havia deixado de considerar alguns fatores, como as mutações, e tinha partido de premissas duvidosas. Eles sugeriram que, corrigindo o teorema para melhor refletir a realidade biológica, chegaríamos a uma conclusão oposta à prevista por Fisher: a aptidão dos organismos deveria diminuir continuamente. Pode não parecer, mas é um ataque velado à biologia evolutiva e uma tentativa de promover a ideia criacionista da "entropia genética" (ver abaixo).
O artigo de Basener & Sanford causou alvoroço entre os criacionistas, especialmente porque foi publicado em um periódico científico revisado por pares. Agora, escrevendo no mesmo periódico em que os criacionistas tiverem seu artigo publicado, o Journal of Mathematical Biology, os pesquisadores Zachary Hancock e Daniel Cardinale (ambos com canais ativos no Youtube, basta conferir aqui e aqui) responderam diretamente às alegações apresentadas em 2018.
O trabalho de Hancock e Cardinale é técnico, mas é essencial para esclarecer as falhas na lógica criacionista. Para compreender melhor o assunto, fiz algumas perguntas ao Dr. Hancock, que gentilmente concordou em respondê-las. Confira abaixo:
Primeiro, permita-me estender meus cumprimentos a você e ao Dr. Cardinale pelo seu novo artigo. Além disso, obrigado, Dr. Hancock, por tirar um tempo para responder às minhas perguntas.
Então... Basener & Sanford publicaram um artigo em 2018 (doravante, B&S ) que trouxe satisfação aos criacionistas. Lembro-me de que comemoraram o que viram como declínio de uma teoria fundamental na genética populacional e na biologia evolutiva. Você poderia resumir as principais afirmações de B&S?
Hancock. Primeiramente, obrigado pelas palavras gentis, Dan e eu estamos muito entusiasmados por este artigo estar agora disponível para todos lerem. Sim, em 2018, Bill Basener e John Sanford publicaram o que viram como uma refutação do que é chamado de "teorema fundamental da seleção natural", proposto pela primeira vez por R. A. Fisher em 1930. Eles argumentam que, ao incorporar uma distribuição "realista" de efeitos de mutações, a aptidão está destinada a diminuir e, portanto, todas as populações estão espiralando em direção à extinção. No mundo criacionista, isso é conhecido como "entropia genética". Assim, Basener & Sanford viram seu artigo como um apoio a essa ideia.
É digno de nota que os criacionistas ocasionalmente publicam em revistas revisadas por pares. Enquanto os cientistas muitas vezes respondem às reivindicações criacionistas informalmente, através de postagens em blogs e mídias sociais, os criacionistas muitas vezes desconsideram tais respostas, dadas como insuficientes. Você poderia elaborar sobre sua decisão de oferecer uma refutação formal a B&S, e por que isso é significativo?
Hancock. Certamente. Como você disse, muitos criacionistas reclamam que nós (cientistas) não estamos dedicando tempo para respondê-los na literatura revisada por pares, e há algumas razões pelas quais não fazemos isso. Primeiro, costumam publicar em revistas de baixo impacto, que não se especializam em evolução, então muitos biólogos evolutivos nunca veem esse material. Além disso, não há incentivo para responder — como essas revistas têm baixo impacto, elas não trazem peso ao currículo. Por fim, muitos na comunidade científica ignoram os criacionistas completamente, e acreditam que responder a eles é perda de tempo. No entanto, achamos que essas visões são míopes. Em meu país (Estados Unidos), o atual presidente da Câmara dos Deputados, Mike Johnson, que representa um dos Poderes da República, é um criacionista que já escreveu artigos para agências como Answers in Genesis (AiG). Os criacionistas muitas vezes exercem considerável poder político. Além disso, Basener & Sanford têm credenciais acadêmicas reais, o que ajuda a reforçar sua credibilidade aos olhos dos criacionistas. Para nós, era muito importante despojá-los dessa credibilidade, apontando seus muitos erros. Então, para responder à sua pergunta, acreditamos que é incrivelmente importante responder aos criacionistas porque eles não são apenas uma parte marginal da sociedade, mas podem exercer, e exercem, verdadeiro poder social e político.
Retornando ao Teorema Fundamental da Seleção Natural de Fisher, você poderia explicar, em termos leigos, a essência dele?
Hancock. O teorema de Fisher é algo de que poucas pessoas já ouviram falar, tenho certeza, mas a ideia básica remonta a Darwin. Em A Origem das Espécies, Darwin ressaltou que, para a seleção natural funcionar, deve haver variação entre os indivíduos. Se alguma dessa variação for benéfica, então será "selecionada" por meio da sobrevivência e reprodução diferenciadas. Fisher pegou essa ideia e a derivou matematicamente. Ao fazer isso, mostrou que a velocidade que uma população se adapta é igual à quantidade de variação que essa população tem. Quanto mais variada uma população, mais rapidamente ela pode se adaptar — quanto menos variada, mais devagar. Uma população carente de variação não pode se adaptar. Isso é muito importante se pensarmos em conservação — muitas espécies ameaçadas têm pequenas populações e, portanto, muito pouca variação genética; o teorema de Fisher nos mostra que essas espécies provavelmente falharão em se adaptar a um ambiente em mudança.
Quais são os principais pontos de discordância entre sua interpretação do teorema de Fisher e a apresentada por Basener & Sanford?
Hancock. Basener & Sanford argumentaram em seu artigo que o teorema de Fisher tinha três grandes problemas: 1) foi derivado sob muitas simplificações; 2) não levou em conta as mutações; e 3) que, na ausência de novas mutações, o teorema de Fisher prevê a estase da aptidão. Os segundo e terceiro pontos servem como trampolim para o artigo deles. No entanto, argumentamos que os pontos (1) e (2) são falsos, e o ponto (3) é, na verdade, uma previsão do teorema de Fisher, e não um componente ausente. Mostramos em nosso artigo que o teorema de Fisher pode ser derivado sem fazer nenhuma simplificação e, portanto, é um teorema geral da natureza, que se aplica a qualquer população que esteja evoluindo. Também apontamos, em nossas derivações, que o teorema de Fisher de fato inclui um termo para mutação, contrariamente a Basener & Sanford.
Se entendi corretamente, seu artigo sugere que B&S não compreenderam corretamente o Teorema Fundamental da Seleção Natural de Fisher. O que, a seu ver, são os principais desafios ou mal-entendidos que as pessoas enfrentam ao tentar compreender o teorema de Fisher e sua relevância na biologia evolutiva? Existem aspectos particulares do teorema que costumam ser mal compreendidos ou subestimados na comunidade científica?
Hancock. O teorema de Fisher tem uma longa história de debate e confusão no campo da biologia evolutiva. Isso se deve principalmente ao próprio Fisher. Em seu livro de 1930, A Teoria Genética da Seleção Natural, ele optou por não fazer derivações detalhadas, como forma de tornar o livro mais legível para biólogos com pouco treinamento matemático. Mas isso fez com que muitos se perguntassem como ele chegou ao teorema, em primeiro lugar. Demorou até a década de 1970 para que um homem chamado George Price esclarecesse o que Fisher realmente quis dizer, e derivasse o teorema de Fisher de uma maneira clara, que demonstrava a generalidade que Fisher afirmava ter. O equívoco mais comum sobre o teorema de Fisher é que ele presume que as características são simples e aditivas — isto é, se você tem algum número de genes contribuindo para a variação em uma característica, eles o fazem como uma soma. Basener & Sanford fazem essa afirmação em seu artigo, que o teorema de Fisher presume que não há dominância ou epistasia [1]. Isso é falso. Na verdade, Fisher estava profundamente interessado em como os genes interagem, e especialmente como a dominância em si evolui (ele dedica um capítulo inteiro a isso em A Teoria Genética). Também há confusão quanto ao fato de que o teorema fundamental prevê que a aptidão nunca pode diminuir, enquanto populações claramente podem ser extintas. Mas isso ignora o fato de que Fisher estava focado no componente de aptidão devido à seleção natural — o teorema mostra que a seleção age para aumentar a aptidão, mas isso não significa que outros aspectos do ambiente ou dos próprios organismos (por exemplo, mutações) não possam contrariar os efeitos da seleção natural, e Fisher discute explicitamente isso em seu livro.
[A epistasia é um tipo de interação genética em que um gene modifica ou mascara o efeito de outro gene em um organismo. Isso pode resultar em certos fenótipos serem expressos ou suprimidos, independentemente da presença de outros genes. Em outras palavras, é quando um gene interfere na expressão fenotípica de outro gene. J.L.]
Como você percebe o teorema de Fisher dentro do escopo mais amplo da teoria evolutiva e da genética populacional? Suponhamos que B&S de fato invalidaram o teorema de Fisher, conforme entendido pelos biólogos evolutivos. Que implicações isso teria para o conceito de Descendência Comum Universal, que vocês afirmam ser o principal alvo de B&S?
Hancock. Embora o teorema de Fisher seja um verdadeiro teorema geral da natureza e eu acredite que isso lhe confere um lugar importante na teoria evolutiva, é uma ideia bastante obscura, com a qual a maioria dos biólogos — mesmo os biólogos evolutivos — realmente não se envolve no dia a dia. Portanto, se Basener & Sanford tivessem invalidado o teorema de Fisher, isso não mudaria nada a respeito da Descendência Comum Universal. Na verdade, nem mesmo invalidaria o argumento básico de Darwin, de que a seleção natural requer variação para funcionar. É por isso que muitas das respostas ao artigo de Basener & Sanford no passado — blogs e vídeos — optaram por ignorar o ataque ao teorema de Fisher, porque é fundamentalmente irrelevante para saber se a Descendência Comum Universal é verdadeira. Focamos nisso simplesmente porque sentimos que eles representaram de forma incorreta um conceito importante (embora difícil!) na teoria evolutiva.
Sanford é conhecido por advogar o conceito de "entropia genética", que ele introduziu, salvo engano, em seu livro de 2005 "Genetic Entropy and the Mystery of the Genome". O que exatamente é entropia genética? Está, de alguma forma, conectada ao Teorema Fundamental de Fisher? É um conceito científico válido, ou não?
Hancock. A entropia genética é a ideia de que os genomas (e os organismos) foram criados perfeitos, e que desde a criação ocorreram mutações que estão degradando a "informação" no genoma. No fim, haverá tantas mutações acumuladas que toda a vida será extinta. Essa afirmação é usada como uma forma de invalidar a evolução, apelando para o fato de que, uma vez que as mutações estão degradando os genomas, a vida não pode ter 3,5 bilhões de anos — já teríamos sido extintos. Basener & Sanford tentam conectar a ideia ao teorema de Fisher, porque o teorema de Fisher propõe que a seleção natural deve levar ao aumento da aptidão, não à redução e extinção inevitável. Para eles, as mutações sobrepujam a seleção natural e, portanto, o teorema de Fisher está errado. Mas eles estão apenas ajustando os parâmetros da equação de maneira enganosa. Você pode pensar no teorema de Fisher como tendo dois termos que afetam a aptidão: seleção natural e mutação. O primeiro jamais cai abaixo de 0, mas o outro pode ser negativo, zero ou positivo. Fisher assumiu que o termo de mutação era pequeno em relação ao termo de seleção natural. Já Basener & Sanford querem reduzir o parâmetro de seleção natural para perto de zero, enquanto aumentam o aspecto negativo da mutação até o máximo. Mas quando olhamos para os efeitos das mutações em organismos reais, eles não se parecem em nada com a maneira como Basener & Sanford os representaram. Embora certamente existam mutações ruins, a seleção natural elimina a grande maioria delas, e as que ela não consegue eliminar são consistentemente compensadas por "boas" mutações de pequeno efeito. Então, não, entropia genética não é um conceito válido.
Você poderia oferecer alguma orientação sobre como lidar com críticas criacionistas? É um esforço fútil, como alguns sugerem, ou realmente vale a pena se envolver com isso?
Hancock. Acho que a resposta a essa pergunta difere de pessoa para pessoa. Para mim, realmente só me envolvo com alegações criacionistas que digam diretamente respeito ao meu campo de estudo — genética evolutiva. Não abordo a geologia do Dilúvio, a idade da Terra, o registro fóssil, ou qualquer uma dessas coisas, porque estão fora da minha área de especialização. Diria para escolher os tópicos que você tem mais interesse, aprender tudo o que puder sobre eles e lidar com eles nesses contextos. Conheço algumas pessoas que realmente lidam com os criacionistas em todos os níveis, mas elas têm uma base de conhecimento muito mais profunda do que eu! Acho que vale a pena tratar do assunto, mas é importante manter o objetivo em mente — promover a educação e a compreensão científica acima de tudo. É tentador deixar a conversa azedar e virar uma competição de insultos. Mas uma vez que fica claro que eles não estão dispostos a aprender, você tem que se afastar, caso contrário, estará apenas desperdiçando seu tempo.
Muito obrigado por responder às minhas perguntas, Dr. Hancock!
Hancock. Muito obrigado por entrar em contato, cuide-se!
João Lucas da Silva é bacharel e mestre em Ciências Biológicas. Doutorando em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa
PARA SABER MAIS
Hancock, Z. B., & Cardinale, D. S. (2024). Back to the fundamentals: a reply to Basener and Sanford 2018. Journal of Mathematical Biology, 88(5), 1-20. https://link.springer.com/article/10.1007/s00285-024-02077-w
Deriving Fisher’s Theorem (vídeo no canal do Dr. Hancock): https://www.youtube.com/watch?v=8zIWf-dd398