Desde que Charles Darwin (cujo retrato ilustra este artigo) publicou, em 1859, aquela que sem dúvida é tida como a sua maior obra, A Origem das Espécies, uma passagem é muito citada por nossos amigos criacionistas. Na busca por “refutar” a evolução (aqui compreendida, de maneira geral, como a ideia de que a vida sofreu mudanças ao longo do tempo geológico), eles frequentemente relembram as seguintes palavras que constam no sexto capítulo da obra, cautelosamente intitulado “Dificuldades da Teoria”:
“Se pudesse ser demonstrado que existe qualquer órgão complexo, e que não poderia ter sido formado por numerosas, sucessivas, pequenas modificações, minha teoria absolutamente desmoronaria”.
Para quem está a par dos comprometimentos metodológicos e teóricos de Darwin, bem como suas influências intelectuais, esse trecho reafirma o compromisso do bom velhinho vitoriano com o gradualismo, nos moldes do esposado pelo seu mentor geológico, Charles Lyell. Para os criacionistas, contudo, aqui Darwin confessa onde devemos buscar a fraqueza do construto teórico defendido pela ciência da biologia evolutiva, vigente desde o século 19 pelo menos.
E para os criacionistas, a teoria desmoronou, pois haveria exemplos de tais órgãos ou estruturas (moleculares ou não) que são irredutivelmente complexas, ou seja, não podem ser formadas passo a passo, uma vez que, em algum momento, supostamente, haveria um estágio intermediário que não serviria nem para a função antiga, nem para a nova função. Nesse ponto, a nova modificação não teria valor adaptativo e, portanto, não poderia evoluir por seleção natural, o mecanismo fundamental darwiniano. Há muitas maneiras de refutar esse argumento, mas aqui irei ater-me a uma delas.
Antes de prosseguir, porém, vamos conhecer um pouco de anatomia, para que possamos entender um desafio que os cientistas tiveram de enfrentar e resolver ao longo de séculos de estudo. Afinal, quando confrontados com um desafio de natureza científica, é isso que devemos fazer enquanto cientistas: tomar o desafio e tentar resolvê-lo, não entregar os pontos e buscar respostas em causas finais fora do reino científico. O capítulo mais recente dessa saga, aliás, acaba de ser publicado no prestigiado periódico científico Nature. Voltaremos a ele, mas antes… um pouco de anatomia!
Pode ser que você não tenha reparado, mas a sua mandíbula é composta por apenas um osso (a “queixada” ou, cientificamente, o dentário), que se articula com um osso presente no crânio (tecnicamente chamado de esquamosal). Essa articulação, quando consideramos apenas animais viventes, é bastante marcante e típica dos mamíferos. Ao olhar para o registro fóssil, porém, observamos que parentes distantes dos mamíferos não eram assim construídos. Por exemplo, na mandíbula desses animais havia vários ossos, além do tal dentário. E a articulação da mandíbula com o crânio não se dava por intermédio do dentário fazendo contato com o esquamosal, mas do contato entre os ossos quadrado (no crânio) e articular (na mandíbula); esse último arranjo é encontrado nos répteis, por exemplo. Onde foram parar esses ossos nos mamíferos? Como é possível a articulação ter mudado de maneira tão radical?
A ideia principal, apoiada por evidência paleontológica e embriológica, é que, com o passar do tempo, esses ossos foram se modificando e se deslocando gradualmente para a região da orelha média, que reside em uma cavidade no osso temporal (e que, como o nome diz, fica na altura da têmpora). O processo inclui a redução e modificação dos ossos extras da mandíbula, que no fim se tornam os ossículos auditivos dos mamíferos, como o martelo, a bigorna e o estribo. Essas mudanças foram, então, acompanhadas por adaptações na musculatura e na estrutura do crânio para acomodar as novas funções auditivas dos ossículos.
Espera um pouco… Quer dizer, então, que os cientistas esperam nos fazer crer que os refinados ossículos da orelha média foram derivados de ossos que antes faziam parte da mandíbula? “Como é possível”, perguntaria um criacionista, “se em algum momento esses ossos não eram bons nem pra ouvir, nem pra mastigar? Que benefício haveria? Como a seleção natural poderia favorecer a acumulação dessas mudanças?”
A resposta está na redundância e posterior modificação para outras funções. Como assim?
Já sabemos, há algum tempo, que em alguns parentes dos mamíferos, como Morganucodon, havia não uma, mas duas articulações na mandíbula! O cenário que temos, então, é tal que uma das articulações poderia assumir a função ancestral, de conectar a mandíbula ao crânio, enquanto a outra estaria mais livre para evoluir e adquirir novas funções, embora pudesse desempenhar, inicialmente, função similar à articulação ancestral.
O novo estudo publicado na Nature corrobora essa ideia. Graças à análise de dois fósseis encontrados na China, um deles de uma espécie nova, pesquisadores chineses, dos Estados Unidos e australianos puderam detalhar ainda mais essa transição evolutiva da formação do aparato auditivo dos mamíferos. Criacionistas insistem em dizer que não existem “formas de transição”, como se o registro fóssil tivesse apenas animais com mandíbula complexa e sem os ossos delicados do ouvido, e animais de mandíbula simples e com os ossículos. A verdade é que há inúmeros fósseis de transição, como os descritos agora na Nature.
Estudando o que se conhece tecnicamente por “orelha média mandibular” de espécimes atribuídos a Dianoconodon youngi (espécie nova) e Feredocodon, parentes relativamente mais próximos dos mamíferos, os autores puderam entender mudanças cruciais.
Uma mudança importante nesse processo é quando o osso chamado quadrado (no crânio) se move para uma posição mais central em relação a outro osso chamado articular (na mandíbula). Isso faz com que o quadrado deixe de estar ligado à articulação da mandíbula que suporta o esforço durante a mastigação, passando a ter apenas a função de transmitir as vibrações do ar, da membrana do ouvido para outro osso chamado estribo. Além disso, durante essa mudança, outros aspectos do sistema também são afetados, como a redução do tamanho dos ossos posteriores ao dentário, indicando que eles não são mais necessários como parte da mandíbula, e a diminuição, e eventual perda, de um outro osso mandibular, chamado quadratojugal, o que torna o quadrado mais flexível.
Tudo bem, o último parágrafo pode ter sido técnico demais, porém por vezes é ideal que sejamos confrontados com a complexidade, para que possamos, como Darwin fez, ao dedicar anos à redação de “A Origem”, avaliar bem as mais diversas possibilidades e sopesar a evidência a favor deste ou daquele cenário. Me parece claro que, longe de ser um sistema irredutivelmente complexo, o aparato auditivo dos mamíferos modernos, segundo as ciências da paleontologia e embriologia têm demonstrado, evoluiu gradualmente ao longo do tempo. Quando os criacionistas citam aquela referida passagem de “A Origem”, eles deveriam não esquecer de citar o que Darwin acrescenta logo em seguida: “Mas eu não consigo encontrar nenhum caso assim”.
Nós também não, Darwin! Sem grandes saltos, sem interferências de desígnio divino algum.
João Lucas da Silva é mestre e doutorando em Ciências Biológicas, com ênfase em Paleontologia, pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Biológicas da Universidade Federal do Pampa
PARA SABER MAIS
Angielczyk, K. D., & Kammerer, C. F. (2018). Non-mammalian synapsids: the deep roots of the mammalian family tree. Mammalian evolution, diversity and systematics, 117-198.
Mao, F., Zhang, C., Ren, J., Wang, T., Wang, G., Zhang, F., Rich, T., Vickers-Rich, P., & Meng, J. (2024). Fossils document evolutionary changes of jaw joint to mammalian middle ear. Nature.