Não há ritual satânico marcado para o próximo eclipse

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2 abr 2024
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Baphomet

 

No próximo dia 8, ocorre um eclipse solar total que será visível em boa parte das Américas do Norte e Central. E, caso você não saiba, há mais coisas curiosas que ocorrem durante um evento como esse, que vão muito além do obscurecimento do ambiente decorrente do bloqueio da luz solar pela passagem da Lua à sua frente: um exemplo é o chamado “turismo de eclipse”, formado por um grande fluxo de pessoas que se deslocam para as cidades onde o eclipse será total, que são apenas aquelas dentro de uma “faixa” restrita da superfície terrestre, e que muda de lugar de um eclipse para o outro. Fora daí, há, ainda, uma região mais abrangente onde o eclipse também é visível, mas apenas na forma “parcial”, quando a Lua bloqueia só uma parte do disco solar.

Intuitivamente, você pode imaginar que a administração pública das cidades pequenas que tenham a sorte de “cair” dentro da faixa de totalidade comemore o fato. Mas não é bem assim: algumas cidades simplesmente não dispõem de estrutura adequada para atender à demanda turística. Para o próximo eclipse, por exemplo, autoridades do Condado de Lorain – em Ohio, nos Estados Unidos – já alertaram a população local sobre o risco iminente de desabastecimento de combustível, de água e de alimentos.

Ainda que essa movimentação turística inesperada (mas que poderia muito bem ser “esperada”, desde que os gestores locais consultassem as calculadoras online que indicam as ocorrências futuras de eclipses) possa causar algum transtorno passageiro, ela é inevitável, já que muita gente que deseja acompanhar um eclipse solar total simplesmente não tem como ficar esperando no quintal de casa. Considere meu próprio exemplo: em Florianópolis, onde moro, já observei diversos eclipse solares parciais. O de maior magnitude ocorreu em 1994, quando a Lua cobriu mais de 98% do disco do Sol. Se eu quiser ver um eclipse total aqui, tenho que esperar até 2103 (além de ter que torcer para estar vivo até lá e para a meteorologia não atrapalhar). Nada animador. Não à toa, já estou me planejando para, no futuro próximo, entrar para o grupo dos turistas de eclipse.

Mas não é apenas o fluxo turístico de última hora que vem gerando preocupação: a desinformação também marca terreno. Este próximo eclipse está servindo de contexto para a disseminação de informações falsas e conspiratórias na internet: grupos paranoicos (ou apenas mal-intencionados) vêm espalhando, como “fato”, narrativas sobre a Nasa (Agência Espacial Norte-Americana) e o CERN (Centro Europeu de Pesquisas Nucleares) que mais parecem roteiros de filme de terror dos anos 1980.

 

As atividades sob “suspeita”

Durante o próximo eclipse, a Nasa dará sequência à sua missão APEP (voltaremos ao nome mais à frente), que fez sua primeira coleta de dados durante o eclipse anular do Sol de outubro do ano passado. A atmosfera terrestre tem uma camada chamada “ionosfera”, repleta de uma “sopa” de partículas eletricamente carregadas, cujas características mudam, literalmente, da noite para o dia, por conta da presença ou ausência de luz solar.

Nos eclipses solares, especialmente os totais e os anulares, também ocorre uma redução abrupta e breve da incidência da luz do Sol sobre uma faixa estreita da Terra. Então, como isso interfere nas propriedades locais da ionosfera? E será que há consequências mensuráveis mesmo fora da faixa ideal do eclipse? Essas são as perguntas que a Nasa está buscando responder com os lançamentos da APEP.

Durante este próximo eclipse, tal como ocorreu no do ano passado, estão previstos três lançamentos de foguetes que carregarão instrumentos para sondar as propriedades da ionosfera, chegando a cerca de 350 km de altitude. A título de comparação, aviões voam a apenas cerca de 10 km de altitude.

Uma vez que as características da ionosfera podem influenciar a propagação de sinais de rádio, torna-se óbvia a importância de uma missão com o intuito de compreender tudo que pode afetá-la. Sistemas de telecomunicações, e até de navegação por GPS (o Sistema de Posicionamento Global), podem ser aperfeiçoados a partir dos dados coletados pelos instrumentos a bordo dos foguetes da APEP.

Passando para o outro lado do Atlântico, na Europa, encontramos o CERN, que acomoda e opera o maior acelerador de partículas do mundo, o LHC (em português, a sigla remete a “Grande Colisor de Hádrons”), que é apenas um dos aceleradores do complexo. Existem aceleradores de partículas com diversas finalidades, como você pode ler com mais detalhes em outro artigo onde explorei o assunto para a Revista Questão de Ciência. No LHC, é possível colocar conjuntos de prótons (aquelas partículas que você aprende na escola que constituem o núcleo dos átomos) em rota de colisão a velocidades bem próximas à da luz.

Existem vários experimentos associados às colisões que ocorrem no LHC, com diferentes objetivos, relacionados à investigação de aspectos da natureza que vão desde o mundo muito pequeno das partículas elementares que constituem os objetos ao nosso redor até o problema da composição geral do Universo. Uma máquina que explora, portanto, questões importantes que permanecem sem solução na ciência moderna.

Dentro das atividades do LHC, estão previstas paradas programadas no acelerador para reparos, manutenção e melhorias. Elas acontecem durante os meses de inverno do Hemisfério Norte, o que corresponde ao verão aqui no Sul, especialmente entre dezembro e março. Essa estratégia é também uma forma de diminuir o impacto do equipamento sobre a rede de energia local justamente nos meses mais frios, quando a demanda por lá aumenta.

 

Um ritual satânico no dia do eclipse?

Em diversas postagens recentes nas redes sociais – identificadas pelo editor-chefe da Revista Questão de Ciência – encontram-se relatos de que os dois eventos citados (os lançamentos da missão APEP e a retomada dos experimentos com colisões de partículas no LHC) seriam parte de um “ritual satânico”. Por quê? Exploremos os argumentos.

Primeiro porque “APEP”, além de ser o acrônimo de “Atmospheric Perturbations around the Eclipse Path”, que, em português, se traduz como “Perturbações Atmosféricas no entorno do Trajeto do Eclipse”, é o nome de uma divindade egípcia que tem a forma de uma serpente e que antagoniza Rá, o deus Sol. Assim, Apep costuma estar associado a desordem, caos e destruição.

No que se refere ao acelerador do CERN, as alegações giram em torno de três fatores principais: o de que um de seus símbolos oficiais é o deus indiano Shiva, que é mitologicamente vinculado à criação e à destruição do Universo; o de que o logotipo atual da instituição supostamente esconde o famoso “número da Besta” da tradição cristã, 666; e o de que o reinício das colisões de partículas no LHC está marcado justamente para o dia do eclipse solar que se aproxima.

Não seriam essas indicações da iminente realização de um ritual satânico durante o eclipse do dia 8? Claro que não.

 

Passando a limpo

1. Sobre a coincidência de datas entre o eclipse, os lançamentos da Nasa e o retorno do LHC:

Caso você nunca tenha reparado, coincidências de datas acontecem aos montes, diariamente. Gosto de uma em particular: Isaac Newton nasceu no Natal, em 25 de dezembro de 1642 (de acordo com o Calendário Juliano, que vigia na época; e que corresponde a 4 de janeiro de 1643, pelo Calendário Gregoriano que usamos atualmente). Isso mesmo, o “pai” de uma das grandes teorias da Física, a Mecânica Clássica, nasceu em uma data de relevância religiosa mundial. Por conta disso, ateus, céticos e não religiosos, em tom de brincadeira, costumam afirmar que é essa feliz coincidência que os fazem “celebrar” o feriado da mesma forma que um cristão, mas substituindo a figura de Jesus por um dos “deuses” da ciência contemporânea.

Agora, com um olhar mais atento, é possível perceber que essa “coincidência” tripla nem mesmo é fortuita, mas esperada! Se a missão APEP visa a investigar efeitos do eclipse na ionosfera, é evidente que vai ocorrer em consonância com ele; e se a parada programada anual do LHC ocorre de dezembro a março, então é bem provável que o reinício dos trabalhos ocorra entre março e abril, como já aconteceu em anos anteriores (veja aqui e aqui, por exemplo).

 

2. Sobre o nome da missão APEP:

Acrônimos de instituições, missões, operações e softwares podem, de maneira intencional ou não, ser similares a outras expressões, nomes, objetos ou conceitos conhecidos. Por exemplo, um dos experimentos do LHC é o ALICE, que também é um nome próprio bem comum no Brasil e nos Estados Unidos (e da protagonista de um par de famosos livros de fantasia). Agora, qualquer afirmação feita no sentido de que esse é um experimento que pretende investigar as leis da física vigentes no “País das Maravilhas” não passa de ilusão. Defender que a missão APEP está conectada ao satanismo é tão apropriado quanto dizer que a água tônica é uma bebida que esconde uma sequência musical a ser desvendada; e que a Coca-Cola é um refrigerante que mistura cocaína e pasta adesiva.

 

3. Sobre Shiva ser um símbolo oficial do CERN:

O deus indiano não faz parte dos símbolos oficiais do CERN, e basta acompanhar a história da instituição para saber que uma estátua da divindade mitológica foi exposta no jardim em 2004, depois de recebida como um presente oferecido pela Índia para celebrar uma parceria com o CERN. É possível, no entanto, estabelecer relações metafóricas entre o deus e os experimentos nos aceleradores do complexo: enquanto Shiva pode usar sua dança para criar e destruir o Universo, a “dança” das partículas interagindo nas colisões também guardam segredos importantes sobre como o Universo funciona. Mas, se analogias poéticas fossem evidência científica de algo, precisaríamos admitir que uma pessoa que relata ter passado o dia todo “no mundo da Lua” deve ter feito uma bela viagem espacial.

 

4. Sobre o número 666 “escondido” no logotipo do CERN:

Não é uma grande novidade que referências diabólicas sejam frequentemente apontadas como “grandes revelações” nos mais variados contextos à nossa volta, indo desde as músicas da Xuxa ouvidas ao contrário até fatores ocultos no código de barras dos produtos do mercado. Portanto, o logotipo do CERN é apenas mais um exemplo de como a capacidade humana de ver fantasia onde não existe nada é mesmo impressionante. O desenho em volta da sigla “CERN” não é nada além do traçado esquemático de uma estrutura comum no design de aceleradores de partículas, contendo um anel principal e alguns “braços”. O Sirius, um acelerador de partículas brasileiro, por exemplo, exibe a mesma forma geral.

Resumo da ópera: tomando por base a análise do conteúdo das postagens "reveladoras" da união satânica entre a Nasa e o CERN, girando ao redor de um eclipse que nem mesmo poderá ser observado na Europa, a conclusão é que tudo não passa de jogo de palavras misturado a teoria da conspiração. Se você prestou atenção nas estratégias, e tiver tempo e criatividade, pode começar a criar suas próprias supostas “mensagens ocultas”, como a partir de objetos “revelados” na forma das nuvens e as informações matemáticas “incríveis” contidas na geometria das pirâmides. Mas, cuidado! Não é bom começar a falar demais sobre isso para as pessoas, mesmo que seja só de brincadeira. Sempre vai ter alguém que vai levar o absurdo a sério.

Correção (3/4/2024, 17h05): Originalmente, este artigo mencionava erroneamente Shiva como uma deusa indiana, não um deus.

Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia. É autor de livros de física para o Ensino Superior e de divulgação científica, como o “Armadilhas Camufladas de Ciências: mitos e pseudociências em nossas vidas” (Ed. Autografia)

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