O ano de 2023 assistiu à condenação, por um tribunal americano, do canadense Patrice Runner, acusado de fraudar cidadãos dos Estados Unidos em mais de US$ 175 milhões por meio da oferta de serviços astrológicos, paranormais e esotéricos via correio, entre 1994 e 2014. Runner era o administrador para a América do Norte do esquema internacional de fraude astrológica “Maria Duval”, originado na Europa. Runner foi condenado em junho por 14 acusações separadas de fraude, e as sentenças acumuladas podem chegar a 280 anos.
Em 2019, publiquei aqui na Revista Questão de Ciência uma resenha do livro “A Deal With the Devil”, de autoria das jornalistas Blake Ellis e Melaine Hicken, da rede CNN, que buscava desenrolar a complicada trama de fraudes “esotéricas” ou “paranormais” cometidas sob o nome de Duval – supostamente, uma astróloga e vidente francesa que oferecia seus serviços pelo correio, mas talvez apenas um nome de fachada usado pelos verdadeiros responsáveis pelo esquema.
Ellis e Hicken finalmente rastrearam Duval até uma casa no sul da França. Ela é na verdade a italiana Maria Carolina Gamba, nascida em 1937, e que há pelo menos uma década sofre de Alzheimer. Gamba provavelmente desconhece tudo que é feito em seu nome. Com o pseudônimo de Maria Duval, a italiana teve um período de fama internacional no fim da década de 1970, e no início dos anos 1990 decidiu licenciar a “marca” Maria Duval para um serviço de atendimento astrológico por correspondência, capitaneado por empresários suíços.
Nos anos seguintes, cartas assinadas por Duval, algumas impressas de forma a imitar letra cursiva, foram enviadas a milhões de pessoas em todo o mundo, muitas delas, idosas, solitárias e vulneráveis. O tom das cartas era pessoal e insinuava amizade e intimidade. As cartas alegavam ser comunicações pessoais individualizadas, e prometiam que o destinatário teria a oportunidade de conquistar riqueza e felicidade com a assistência da vidente – mediante o pagamento de uma colaboração financeira ou da compra de um cristal ou amuleto.
Assim que a vítima fazia o primeiro pagamento em resposta a uma das cartas, passava a ser bombardeada com mais e mais correspondência, sob a forma de novas “comunicações personalizadas” de Duval, oferecendo mais serviços e objetos mágicos, e solicitando mais dinheiro. Algumas das vítimas sentiam uma conexão pessoal tão profunda com Duval que lhe enviavam fotos, cachos de cabelo e confidências. Todo esse material era jogado no lixo depois que o dinheiro era removido dos envelopes.
A defesa de Runner tentou argumentar que seu cliente não cometia fraude, mas apenas praticava “enganação” como uma forma de fornecer entretenimento, tal como um mágico de palco, e que o tratamento desrespeitoso dado às cartas das vítimas não era diferente do que os correios fazem com cartas enviadas a Papai Noel. O júri não acatou o raciocínio.
Segundo a acusação feita pelo Departamento de Justiça dos EUA, Runner dirigiu o esquema norte-americano da marca “Maria Duval” por 20 anos, dando ordens aos conspiradores que dirigiam as operações cotidianas de sua empresa canadense. Runner usou diversas empresas de fachada registradas no Canadá e em Hong Kong para esconder seu envolvimento no esquema enquanto vivia em vários países estrangeiros, incluindo Suíça, França, Holanda, Costa Rica e Espanha. Runner foi extraditado da Espanha para os Estados Unidos em dezembro de 2020. Não está claro se sua prisão vai afetar o esquema global de fraudes em nome de “Maria Duval”, que tem ramificações em diversas outras partes do mundo.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)