No último 8 de dezembro, a Universidade de Sorbonne anunciou que em 2024 vai deixar de assinar o serviço Web of Science, uma plataforma que agrega dados e artigos de várias revistas científicas, e também interromperá o contrato com os demais produtos da Clarivate, uma empresa de serviços relacionados à publicação científica e propriedade intelectual, com produtos voltados principalmente para o meio acadêmico, entre eles a Web of Science.
Com um faturamento anual na casa dos bilhões de dólares, editoras de periódicos científicos são pagas por agências públicas, instituições de ensino e pesquisa e governos para disponibilizar o acesso a artigos científicos, muitos deles financiados pelos próprios clientes: as agências de fomento financiam a pesquisa, pagam às editoras para publicar o artigo (caso a publicação se dê na modalidade de acesso aberto) ou pagam para acessá-lo (no caso de acesso restrito). Se isto parece estranho para alguém não acostumado com os trâmites da pesquisa universitária, é simplesmente porque é mesmo esquisito.
Apesar desses serviços serem importantíssimos para a maioria dos pesquisadores, o custo é elevado. Para se ter uma ideia, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) paga perto de R$ 48 milhões por ano para que pesquisadores de diversas universidades possam acessar revistas científicas. É, portanto, inevitável refletir sobre a conveniência de manter essa espiral de dependência voluntária em que a própria comunidade científica se colocou.
Em outro contexto mais abrangente, já que neste caso a interrupção dos serviços traria um problema generalizado, atingindo setores além da pesquisa científica, o Google começou a cobrar caro para manter dados na nuvem. Isto requer decisões complicadas por parte dos gestores, com restrições rigorosas de disponibilização de espaço, principalmente por não haver uma alternativa que dê conta dos arquivos que estão sob a guarda de empresas que estão no seu direito de estabelecer políticas de uso e preços para seus produtos.
Deve haver, é claro, um ponto intermediário entre a dependência plena e a desconexão total. No caso das publicações científicas, porém, é preciso que haja algum movimento, principalmente das agências de fomento, no sentido de mostrar para a comunidade científica que existe vontade de mudar o cenário de subserviência.
A necessidade que se impõe aos pesquisadores, em boa parte pelas exigências das políticas de concessão de auxílios à pesquisa, acaba criando um preocupante vínculo entre riqueza e pesquisa. Paga-se caro não somente para consultar os artigos, mas também para publicá-los nas revistas que são consideradas “boas” – valores que muitas vezes são abusivos e não se justificam: os pareceristas não são remunerados e o artigo não passa de umas poucas páginas em formato digital.
Movimentos drásticos vindos de universidades, similares ao da Sorbonne, podem dificultar a vida dos pesquisadores se as agências que estabelecem o destino do dinheiro continuarem a valorizar somente revistas onde se paga R$ 60 mil para publicar um artigo em acesso aberto. Nesses casos, por exemplo, o discurso retoricamente bonito de valorização da qualidade do trabalho torna-se vazio no momento em que os editais descartam deliberadamente, sem análise prévia, artigos com base no fator de impacto da revista.
A política de acesso aberto, uma importante iniciativa no sentido da democratização da ciência, teve início nos anos 1970, com o Projeto Gutenberg. Na prática, algumas áreas do conhecimento já teriam condições de adotar esta política desde 1991, quando foi criado o repositório de preprints (artigos preliminares, antes de serem avaliados por especialistas) arXiv pelo físico Paul Ginsparg. Nessa plataforma qualquer artigo pode ser acessado sem a necessidade de senhas em paywalls. Diferentemente dos artigos publicados em revistas, onde um escrutínio prévio já foi feito por outros pesquisadores, esses repositórios demandam que cada artigo seja analisado com um pouco mais de cuidado pelo autor que pretende considerá-lo.
Na área de física, a grande maioria dos artigos publicados tem uma versão gratuita em preprint. Ou seja, nesta situação, não existe a impossibilidade de acessar os resultados da pesquisa de outros grupos, mas o prestígio vem do processo de convencer os pares de que o seu estudo é bom o suficiente para estar em algum periódico revisado – já escrevi em outro artigo sobre o equívoco que se comete ao associar qualidade a um artigo ao fator de impacto do veículo onde é publicado.
Embora seja animador vislumbrar ações objetivas na direção de tornar o conhecimento mais acessível, é sempre bom lembrar que, como se diz por aí, não existe almoço grátis. Neste contexto, há estratégias de acesso aberto em que o lucro das grandes empresas editoriais é mantido (ou aumentado) mudando-se apenas a fonte pagadora: em vez de vender assinaturas para bibliotecas, vendem-se cotas de publicação para universidades, agências de fomento ou outras entidades, como ministérios de Ciência, por exemplo – o dinheiro, diga-se de passagem, é proveniente da população.
Esse deslocamento do ônus financeiro tem o efeito colateral de deslocar, também, a estrutura de incentivos da publicação: se no modelo de assinaturas o “cliente” é o leitor, no de cotas de publicação é o autor – com possível impacto sobre o rigor dos critérios de aceitação de artigos.
Existem movimentos organizados, como a cOAlition S, para tornar todas as publicações científicas imediatamente em acesso aberto. O grupo foi formado em 2018 e recentemente lançou uma proposta com valores diferenciados para alguns países com base em indicadores do Banco Mundial – dar-se-iam descontos das taxas de publicação de acordo com as rendas dos países. A despeito da pertinência desses indicadores para a classificação dos países, estabelecer um compromisso de descontos com empresas que não estão submetidas a um teto de preços segue a mesma lógica ingênua da lei de meia-entrada brasileira: paga-se a metade do dobro.
É desejável que se caminhe para um modelo de política universitária que seja conectada com o mundo, mas não excessivamente dependente – estabelecer um bom equilíbrio para os pratos dessa balança não é simples. Mas qualquer solução deve pressupor uma análise mais qualitativa dos critérios de avaliação das agências que fornecem os financiamentos para as pesquisas. Afinal, não é sempre que, a exemplo de Grisha Perelman – matemático que resolveu a conjectura de Poincaré, um problema formulado no ano 1900 –, encontramos pessoas dispostas a publicar um artigo importantíssimo em uma plataforma de preprint e, com isso, “perder pontos” na corrida do fator de impacto, correndo o risco de ficar sem recursos para desenvolver a sua pesquisa.
Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência