Não é novidade que o ambiente acadêmico, tal como estruturado hoje em muitos países - Brasil inclusive -, estimula práticas questionáveis de pesquisa. Aqui mesmo na Revista Questão de Ciência já publicamos diversos textos que criticam e alertam para problemas como o foco mais na quantidade que na qualidade dos trabalhos - o chamado "produtivismo" -, a tendência de cientistas e periódicos de só reportarem e publicarem resultados positivos - o "viés de publicação" -, e as metodologias enviesadas e manipulações estatísticas adotadas em resposta a isso - como o p-hacking. Também frequentemente vemos - e reportamos aqui na RQC - transgressões mais graves, casos de fraude como fabricação e falsificação de dados e plágio que, quando descobertos, frequentemente levam à retratação de artigos e destruição da reputação dos envolvidos, e corroem a confiança entre cientistas e do público na ciência, além de deixar para trás exemplos de "ciência zumbi".
Mas qual o verdadeiro tamanho destes problemas? Foi pensando nisso que ainda em 2016 um grupo de pesquisadores procurou montar uma primeira lista dos grandes e pequenos "pecados" da academia, que também usou num levantamento para identificar a prevalência dessas práticas e seus impactos na comunidade científica. A pesquisa mostrou que infrações consideradas "menores" eram largamente usadas e toleradas, gerando um efeito agregado mais prejudicial para o ambiente acadêmico do que faltas mais graves, porém bem mais raras.
O trabalho do grupo liderado por Lex M. Bouter, da Vrije Universiteit, em Amsterdã, Holanda, começou com uma compilação de mais de cem tipos de desvios de conduta encontrados pelos autores na literatura científica, em códigos de conduta, em diretrizes ou que eles conseguiram imaginar. Eliminando redundâncias, combinando e reformulando itens, chegaram a um conjunto de 60 infrações, que foi apresentado e refinado com a ajuda de palestrantes e presidentes de sessões da 4ª Conferência Mundial sobre Integridade em Pesquisas, realizada no Rio de Janeiro entre maio e junho de 2015, em uma série de workshops e reuniões ainda durante o evento.
Daí os pesquisadores saíram com uma lista ainda de 60 itens, agora divididos em quatro grandes tópicos: desenho de estudo, abrangendo as faltas cometidas antes da do início da coleta de dados; exemplos de má conduta envolvendo a coleta de dados em si; relato, que inclui itens relacionados à análise dos dados e à comunicação dos resultados; e colaboração, com itens relativos à autoria dos artigos, supervisão de colaboradores e obrigações frente à ciência em geral.
Segundo eles, diante do fato de que na época a maioria dos códigos de conduta não passava de grandes cartas de intenções, focando mais nas virtudes e valores que os cientistas devem buscar do que em normas ou em ações concretas que deveriam ser adotadas ou evitadas, só a compilação da lista já se mostrou útil para instruir tanto jovens pesquisadores quanto cientistas experientes sobre maneiras de melhorar a integridade de seus estudos, em linha com pesquisas que recomendam combater fraudes deixando pouco espaço para a racionalização da desonestidade.
Prevalência e impacto
Mas o grupo não parou por aí. Com a lista em mãos, eles convidaram mais de mil participantes das quatro conferências mundiais sobre integridade científica realizadas até então para classificar as infrações em escalas de 1 a 5 sob quatro aspectos: frequência observada; impacto na verdade, isto é, na busca por conhecimento e descobertas legítimas; impacto na confiança entre cientistas nos trabalhos apresentados; e "preventabilidade", isto é, a existência ou possibilidade de implantação de medidas de prevenção da sua prática.
Apesar de apenas 227 dos cientistas procurados terem completado o questionário, os pesquisadores consideraram ter uma amostra elucidativa sobre a prevalência e consequências destas práticas na academia e na ciência. Com isso, elaboraram rankings das más condutas, resultantes dos produtos entre a frequência e os impactos percebidos, bem como a facilidade na sua prevenção. Desta forma, "pequenos pecados" como supervisão e orientação inadequadas de colaboradores, informações insuficientes sobre falhas e limitações dos estudos, falta de acompanhamento e registro do processo da pesquisa, ignorância de princípios básicos de controle de qualidade e tolerância e leniência com desvios de conduta de colegas se mostraram um problema maior do que faltas graves como falsificação, manipulação e seleção de dados, modificação de resultados para atender a interesses de patrocinadores ou uso de metodologias ou instrumentos inadequados para os estudos.
Isto porque apesar de, como esperado, transgressões deste tipo encabeçarem os rankings de impactos na verdade e na confiança, elas foram percebidas como muito raras. A fabricação de dados, por exemplo, ficou em primeiro lugar entre as consideradas mais prejudiciais à ciência, mas em penúltimo na frequência, resultando num produto agregado que deixou esse "pecado" em apenas 34º lugar no ranking geral. Das formas de manipulação, a mais nociva foi a eliminação de dados antes da análise sem justificativa, na 19ª posição no ranking que levou em conta frequência (45ª) e impacto na verdade (6ª).
"Os resultados de nosso ranking parecem sugerir que a seleção de relatos e citações, falhas no controle de qualidade e na mentoria são os grandes males da pesquisa moderna", resumem os pesquisadores em artigo sobre o estudo, publicado no periódico Research Integrity and Peer Review. "Um retrato emerge não de preocupação com fraudes no atacado, mas de profunda preocupação de que muitos cientistas estão pegando atalhos e se engajando numa ciência desleixada, possivelmente tendo em vista obter mais resultados positivos e espetaculares que serão mais fáceis de publicar em um periódico de alto impacto, e atrair mais citações. Para fomentar a conduta responsável nas pesquisas, recomendamos o desenvolvimento de intervenções que ativamente desencorajem os maus comportamentos de ranking mais alto no nosso estudo".
Escândalos em série
Apelo que aparentemente foi pelo menos em parte ouvido. De lá para cá, por exemplo, os códigos de conduta se tornaram mais explícitos, especificando boas e más práticas e até fornecendo listas de verificação, como a nova versão do adotado pelo Escritório de Integridade em Pesquisas do Reino Unido, publicado em junho deste ano.
Já os efeitos disso na prevalência de práticas questionáveis de pesquisa na academia ainda estão em aberto. Se o aumento nos casos de retratação pode ser em parte creditado ao crescimento do escrutínio e da vigilância contra más práticas pela comunidade científica, com iniciativas como o Retraction Warch e o trabalho voluntário de pessoas como a microbiologista holandesa Elisabeth Bik ou um grupo de pesquisadores do estado americano de Michigan que desvendou uma chamada "fábrica de artigos" (conhecidas como paper mills em inglês), por outro lado os mecanismos de incentivo à fraude acadêmica permanecem.
Em um duro texto publicado recentemente no site do The James G. Martin Center for Academic Renewal, EUA, instituição dedicada a promover a melhoria do ensino superior no país, o educador americano Walt Gardner argumenta que a histórica tolerância aos "pequenos pecados" e a manutenção de sistemas que premiam a quantidade sobre a qualidade dos estudos publicados abrem caminho para transgressões mais graves, cujo número parece aumentar e atingir algumas das principais e mais prestigiosas universidades americanas.
Para tanto, Gardner lista escândalos recentes como o envolvendo Francesca Gino, professora afastada da Escola de Negócios de Harvard acusada de fraudar dados em pelo menos quatro estudos e que ironicamente é conhecida por seu trabalho sobre desonestidade, o do ex-reitor da Universidade de Stanford Marc Tessier-Lavigne, que renunciou depois que uma série de investigações que ele "falhou em seguir os padrões de rigor e processo científico", não corrigindo seus erros mesmo depois de alertado, ou de Eric Stewart, professor demitido da Universidade do Estado da Flórida por "incompetência e negligência" após a retratação de diversos artigos de sua autoria que juntos ainda acumulam mais de 3 mil citações na literatura científica - situação típica da "ciência zumbi" -, além de casos mais antigos nas universidades Duke e de Cornell.
"Com um sujeito certa vez disse, a chave para continuar a ser publicado em um periódico acadêmico envolve cinco passos: não escolha um problema importante; não desafie as crenças existentes; não obtenha resultados surpreendentes; não use métodos simples; e não escreva claramente", ironiza. "Uma olhada séria na literatura científica revela que muito dela é cientificamente sem sentido. Mas enquanto pesquisadores forem aclamados principalmente pela frequência de publicação, no lugar da qualidade de suas publicações, pouco vai mudar".
Segundo Gardner, uma maneira de fazer isso é dar mais poder de supervisão aos financiadores dos projetos e impor sanções mais severas nos casos de más condutas, principalmente quando os recursos são públicos.
"A verdade é que a pesquisa está numa encruzilhada neste país. O modelo presente claramente deu frutos no número de pesquisadores premiados aqui. Desde 1901, americanos receberam muito mais prêmios Nobel de Medicina, Química e Física do que pesquisadores de qualquer outra nação. Mas isto veio ao preço de incentivos para cometer fraudes", continua. "A questão é o quanto de escândalos estamos dispostos a tolerar. Como Edward Archer explicou ao leitores do Martin Center há três anos, 'a incansável perseguição ao financiamento dos contribuintes eliminou a curiosidade, a competência básica e a integridade científica em muitos campos'. E, como resultado, 'pesquisas cientificamente sem sentido colocam em risco o público, atrapalham as políticas públicas e reduzem a capacidade da nação de enfrentar desafios futuros".
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência