Em 19 de outubro de 2023, foi publicado um estudo que aponta uma associação positiva entre o consumo de carnes vermelhas – processadas ou não – e o risco de diabetes tipo 2 (DM2). Obviamente, o resultado gerou matérias levemente alarmistas, como no caso do Portal Terra: “Consumo de carne vermelha pode aumentar casos de diabetes tipo 2, diz estudo”.
A priori, acreditei que não passasse disso, material jornalístico sensacionalista santificando ou demonizando algum alimento. Entretanto, ao ler o estudo, percebi que se trata de um artigo muito bem executado e com resultados relevantes, o que, em parte, justifica as manchetes. Mas como o diabo mora nos detalhes, há pormenores que não foram explorados pelas matérias e que mudam – e muito – a maneira como devemos interpretar o que foi apresentado.
Para os apressados que não lerão até o fim, adianto que o estudo, por ser observacional, só pode estabelecer correlações, e não comprova relação de causa e efeito entre o consumo de carnes vermelhas e DM2. Contudo, recomendo que, caso deseje consumir picanha, alcatra ou outro pedaço de mamífero, use de moderação.
O estudo
Gu, X. et al. (2023) realizaram um estudo com o intuito de avaliar a relação entre o consumo total de carne vermelha, processada e não processada, com o risco de DM2 e estimar os efeitos de substituir a carne vermelha por outras fontes proteicas no risco de DM2.
O levantamento de dados durou 36 anos e contou com 216.695 participantes, dos quais 81% eram do sexo feminino. Os voluntários faziam parte dos estudos Nurses’ Health Study (NHS), NHS II e Health Professionals Follow-up Study (HPFS). Para avaliar o consumo de carne vermelha pelos voluntários, foram administrados questionários de frequência alimentar semiquantitativos – uma ferramenta que utiliza uma lista de alimentos em porções definidas para verificar a frequência que os voluntários os consomem – a cada 2 e 4 anos desde o início do estudo. Também foram utilizados modelos de riscos proporcionais e ajustados para diversas variáveis.
Como resultado, foram observados 22.761 casos de diabetes tipo 2. O consumo total de carne vermelha mostrou-se positivamente associado a um maior risco de DM2. Ao comparar os indivíduos presentes nos 20% de maior consumo de carne vermelha com aqueles nos 20% de menor consumo, foi observado que o consumo total de carne (independente do tipo de processamento) estava associado a um aumento de 62% no risco de DM2, enquanto para carne processada o aumento era de 51%, e para carne não processada, 40%.
Além disso, quando uma porção de carne vermelha é substituída por legumes ou oleaginosas, observa-se uma redução de 30% no risco de DM2. Essa diminuição também ocorreu quando uma porção de carne foi substituída por uma porção de laticínios, resultando em redução de 22%.
Como conclusão, os autores afirmam que o estudo corrobora as diretrizes alimentares atuais, que recomendam limitar o consumo de carne vermelha e buscar outras fontes proteicas para prevenção de diabetes tipo 2.
Basicamente é isso que vem sendo noticiado na maioria das matérias nacionais e internacionais – ênfase em maioria. Entretanto, o artigo publicado pela CNN Internacional traz algumas informações que merecem destaque:
De acordo com Alice Lichtenstein, diretora do Laboratório de Nutrição Cardiovascular da Universidade Tufts, “indivíduos que relataram consumir carne vermelha com maior frequência eram mais propensos a consumir menos peixes e frutas, além de ingerirem mais calorias. Além disso, elas apresentavam um maior peso corporal e eram menos ativos fisicamente”. E continua: “Isso sugere que esses participantes tinham uma qualidade de dieta mais pobre, e eram menos propensos a adotar hábitos de vida saudáveis” – tradução minha.
Para os leitores assíduos da RQC, essa declaração acende um sinal de alerta para algo que sempre destacamos ao abordar estudos observacionais. Por melhores que sejam – como nesse caso – esse tipo de desenho metodológico não consegue estabelecer causalidade e nem controlar completamente as variáveis de confusão, fatores que afetam o resultado do estudo, mas que não dizem respeito ao elemento estudado. Por exemplo: no caso das pessoas que consomem muita carne vermelha e não praticam atividade física, será que parte do risco elevado de DM2 não pode ser atribuída à vida sedentária?
Nuances (im)perceptíveis
Felizmente, para nos auxiliar nessa questão, Steven Novella, fundador e editor executivo do Science-Based Medicine, em seu texto “Study Correlates Red Meat Consumption and Type II Diabetes” trouxe diversos apontamentos pertinentes que compartilharei com vocês – e saliento que o artigo de Novella merece ser lido na íntegra.
A primeira ressalva é direcionada à maneira como a porcentagem de 62% foi divulgada. Esse resultado decorreu da comparação entre indivíduos que consumiam carne vermelha diariamente e aqueles que não a consumiam. O risco diminuía à medida que o consumo caía, tornando-se pequeno e incerto quando os participantes ingeriam apenas duas porções por semana, e desaparecendo quando consumiam uma porção por semana.
Além disso, ao controlar a variável do IMC, os autores “descobriram” a explicação para metade das associações entre consumo de carne vermelha e DM2. A outra metade, por sua vez, pode ser explicada por conta de outras variáveis de confusão, como consumir menos frutas e peixes e ser menos ativo fisicamente. O IMC, nesse caso, refere-se àqueles indivíduos que se encontram no cenário de obesidade grau I ou superior, um fator de risco para o desenvolvimento da DM2.
Novella também menciona as limitações inerentes aos estudos observacionais e destaca a necessidade de evidências a respeito de um possível mecanismo de ação que explique o que está sendo observado. Talvez o consumo de carnes vermelhas esteja, de fato, aumentando o risco de DM2, mas para termos essa certeza será necessário compreender especificamente como isso acontece, no nível fisiológico.
Muitas hipóteses, poucas certezas
Sanders, L. Wilcox, M. e Maki, K. (2022) realizaram uma revisão sistemática com metanálise englobando somente ensaios clínicos randomizados e controlados que investigaram o consumo de carne vermelha e os principais marcadores bioquímicos relacionados ao risco do diabetes tipo 2.
Como critérios de inclusão, os autores só aceitaram ensaios clínicos realizados em humanos adultos (idade superior a 18 anos), publicados na língua inglesa, e que utilizaram carnes frescas ou processadas como intervenção para comparar com o grupo controle, que ou não recebeu carne vermelha ou consumia uma menor quantidade. Além disso, esses mesmos trabalhos precisavam apresentar medições pré e pós-intervenção para marcadores bioquímicos relacionados ao diabetes e à função do pâncreas.
Ao todo, foram incluídos 21 estudos. Como resultado, os autores afirmam que dietas que incluem o consumo de carne vermelha, quando comparadas a dietas sem carne ou com uma redução no consumo, não apresentam impactos significativos na sensibilidade à insulina, na resistência insulínica, na glicemia de jejum, insulina de jejum, funcionamento das células beta pancreáticas, hemoglobina glicada e outros marcadores. Entretanto, ressaltam que a qualidade das evidências revisadas foi classificada como baixa a moderada para a maioria dos desfechos.
Os autores concluem que os resultados da metanálise sugerem que o consumo de carne vermelha não afeta a maioria dos marcadores bioquímicos relacionados a DM2 e reforçam a necessidade de mais pesquisas para obter um entendimento mais aprofundado da questão.
Como possível conflito de interesse, destaco que o estudo foi financiado pelo Beef Checkoff, um programa nacional de marketing e pesquisa com o intuito de aumentar a demanda por bife, e o patrocinador fez comentários sobre os primeiros aspectos do desenho metodológico. Além disso, o relatório foi compartilhado com o patrocinador antes da publicação. Entretanto, a decisão final sobre todos os aspectos da condução do estudo e seu conteúdo ficou exclusivamente a cargo dos autores.
Comer ou não comer, eis a questão
Voltando para o artigo de Novella, o autor afirma que, embora os dados estejam longe de ser conclusivos e que as variáveis de confusão relacionadas aos hábitos de vida desempenhem, provavelmente, um papel muito mais fundamental do que o consumo isolado do alimento, a ideia de limitar o consumo de carne vermelha e, especificamente, de carne processada é razoável. Consumir uma porção por semana de carne vermelha parece ser inofensivo. Agora, consumi-la todos os dias – especialmente se for carne processada – talvez não seja.
Por fim, transcrevo – em tradução livre – a conclusão magistral:
“Concordo que há um risco de superestimar a associação entre carne vermelha e diabetes tipo 2, uma vez que algumas pessoas podem focar excessivamente nisso e acabar negligenciando outros fatores de risco muito mais relevantes. Além disso, o excesso de ênfase no papel da carne vermelha no risco de diabetes também pode levar a um cenário em que as pessoas façam substituições dietéticas não saudáveis, trocando a carne vermelha por alimentos de alto índice glicêmico, como os carboidratos refinados. Demonizar alimentos específicos, ao invés de enfatizar o consumo equilibrado e moderado, pode, no fim, ter efeitos contraproducentes”.
Talvez esse seja o único conselho nutricional válido para todas as situações.
Mauro Proença é nutricionista
REFERÊNCIAS
FREITAS, P. Consumo de carne vermelha aumentar casos de diabetes tipo 2, diz estudo. 2023. Disponível em: https://www.terra.com.br/vida-e-estilo/saude/consumo-de-carne-vermelha-pode-aumentar-casos-de-diabetes-tipo-2-diz-estudo,b4b98809681f31e534af44583ce12027ieajpv5i.html.
GU, X. et al. Red meat intake and risk of type 2 diabetes in a prospective cohort study of United States females and males.The American Journal of Clinical Nutrition. 2023. Disponível em: https://ajcn.nutrition.org/article/S0002-9165(23)66169-6/fulltext.
NOVELLA, S. Study Correlates Red Meat Consumption and Type II Diabetes. 2023. Disponível em: https://sciencebasedmedicine.org/study-correlates-red-meat-consumption-and-type-ii-diabetes/.
SANDERS, L.; WILCOX, M. e MAKI, K. Red meat consumption and risk factors for type 2 diabetes: a systematic review and meta-analysis of randomized controlled trials. European Journal of Clinical Nutrition 77, 156-165 (2023). Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41430-022-01150-1.