Astrólogos transformam tragédia do terrorismo em “clickbait”

Artigo
12 out 2023
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astrologia

 

Toda vez que o fim do ano se aproxima, já é lugar comum esperar que astrólogos entrem em cena para divagar sobre o que os astros supostamente dizem sobre o ano novo. Consequentemente, o mesmo assunto reverbera aqui mesmo na Revista Questão de Ciência. Veja, por exemplo, artigos dos períodos das “viradas” 2018-19, 2019-20, 2020-21 e 2021-22.

O fato, porém, é que a astrologia está na mídia o tempo todo, não só nas vésperas do réveillon. Em geral, sob a forma de coluna de horóscopo ou de materiazinha “leve” de celebridade ou bem-estar,  mas também se fazendo presente nos grandes acontecimentos históricos. Quando uma tragédia se abate sobre o mundo, abutres astrais logo surgem voando em círculos sob os holofotes, crocitando a capacidade de ler eventos momentosos nas estrelas – mas, curiosamente, só depois de o restante da Humanidade já ter lido sobre os mesmos eventos nas manchetes.

É esse o caso da publicação da última terça-feira (10) na seção “f5” do site da Folha de São Paulo: a matéria alega que o mais recente confronto bélico que eclodiu da crise – que já dura décadas – entre palestinos e israelenses, no Oriente Médio, já estava “escrito nas estrelas”. Como tentativa de corroborar o fato, aponta-se um artigo da quinta-feira anterior (5), em que astrólogos indicavam uma certa agressividade no ar, que poderia afetar desde relações amorosas a eventos internacionais, por consequência de uma “quadratura entre Marte e Plutão” prevista para domingo, 8 (a chacina promovida pelo grupo terrorista Hamas em solo israelense teve início no sábado, dia 7).

O problema é que, como nossos leitores frequentes já sabem, a astrologia é um ótimo exemplo de pseudociência: mimetiza ciência quando recorre a cálculos astronômicos, posições de planetas e constelações para fazer afirmações sobre o mundo e seus eventos. Mas isso não passa de uma estratégia bem conhecida de convencimento do público, uma vez que suas alegações e seus métodos não resistem a uma avaliação crítica. Discussões mais profundas sobre as evidências (ou, mais especificamente, sobre a falta delas) relacionadas à astrologia você pode encontrar aquiaqui e aqui.

Mas o que dizer sobre a previsão supostamente acertada que a matéria do dia 10 estampa? Estaríamos diante de um marco histórico que acabará por apontar a eficiência científica da astrologia na sua capacidade de antever acontecimentos? Ou, pelo contrário, estamos apenas testemunhando mais um caso clássico de oportunismo paranormal em que, a posteriori de eventos marcantes – como mais esta catástrofe –, sempre aparece alguém para dizer que já havia dado o recado? Tire suas conclusões, mas não antes de cumprir o dever de casa que vou passar em seguida.

 

Sucesso garantido

Tudo o que você precisa fazer é uma leitura cuidadosa do artigo do dia 5; depois, volte aqui e continue. Perceba que as previsões astrológicas associadas à tal quadratura são bem menos específicas do que a matéria do dia 10 faz parecer. Os astrólogos inicialmente apontavam, dentre outras coisas, um possível aumento na “reatividade” entre as relações interpessoais, podendo levar a atitudes mais provocativas, “ferozes” e/ou “explosivas”; e que o clima das relações internacionais ficaria mais “denso” e imprevisível, com possibilidade de ocorrência de atentados, conflitos e desentendimentos.

Façamos uma rápida retomada das palavras preditivas em questão: “reatividade”, “ferozes”, “explosivas” e “denso”. Essas expressões não são adaptações minhas, elas foram originalmente apresentadas no artigo do dia 5. Tudo abstrato o suficiente para abrir um leque enorme de possibilidades para o leitor fazer, por conta própria, a previsão dar certo; para piorar, a conexão Marte-Plutão que ora se apresenta acaba, como vimos, supostamente sendo capaz de gerar desdobramentos nos mais variados cenários, do pessoal ao internacional.

Juntando as expressões genéricas com os desdobramentos vinculados a múltiplos contextos, torna-se evidente que basicamente qualquer coisa pode corroborar a previsão dos astrólogos: um conflito entre celebridades que venha à tona nas redes sociais; um discurso mais acalorado proferido por algum líder mundial; alguma nova batalha na guerra entre Rússia e Ucrânia; alguma discussão acirrada no Congresso Nacional; e isso só para ficar em (alguns) exemplos públicos bastante corriqueiros. Somando-se, ainda, inúmeras situações relacionadas aos eventos da vida cotidiana das pessoas – envolvendo trabalho, família e amigos –, aí a quantidade de fatos que poderiam ser elencados para sugerir uma confirmação da previsão beira o infinito.

E tudo embalado pelo verbo mágico “poder”, como no trecho “o clima global pode tornar-se mais denso e imprevisível. Como todos podemos reagir de uma maneira violenta, podemos presenciar, inclusive, atentados”. Ou seja: se acontecer alguma coisa, qualquer coisa, que se encaixe nos termos vagos da previsão, o astrólogo estava certo; se não acontecer nada, ele não estava errado.

Em resumo, fazer previsões amplas, usando termos genéricos que podem ser aplicados em uma grande quantidade de situações e, de preferência, apontar a ocorrência de eventos que têm mesmo grandes chances de acontecer, é um ingrediente clássico para a receita do sucesso não apenas astrológico, mas também de vários outros meios não científicos de se fazer previsões para o futuro (sim, existem previsões científicas sobre o futuro, mas não estamos tratando delas aqui).

As pessoas que acreditam nessas coisas tendem a não perceber o embuste diante de si, uma vez que, naturalmente, todos temos a tendência de fazer a conexão entre afirmações genéricas e os eventos que percebemos ao nosso redor, desde que acreditemos que elas realmente dizem respeito às nossas vidas ou às ocorrências que testemunhamos diariamente. Esse mecanismo psicológico é conhecido como “validação subjetiva”, e é um dos fatores responsáveis pela geração da convicção que muitos apresentam ao defender essas práticas.

 

De olho nos erros

Enquanto é muito fácil fazer parecer que a astrologia acertou suas previsões, mais difícil é estar atento aos erros que ela comete. Vou ajudá-los. Por acaso você se lembra das previsões para 2020? Nos Estados Unidos, Susan Miller associava ao novo ano uma “fantástica assinatura de sucesso”, alegando que seria próspero e sem recessão; no Brasil, João Bidu seguia um caminho semelhante, apostando em um ano “mais leve” que 2019, com melhora nos indicadores de emprego e com boas perspectivas para viagens internacionais. Em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde declara pandemia do novo coronavírus, e o resto da história você já sabe.

E não é só a astrologia. Em um estudo conduzido pelo australiano Richard Saunders, um dos maiores ativistas do movimento cético racionalista, foram coletadas todas as previsões feitas ao longo de 20 anos por videntes australianos e publicadas na mídia tradicional ou na internet.

Um grupo de voluntários avaliou e classificou as alegações como “acertos” (quando se tratava de uma previsão precisa, que pudera ser associada a fatos posteriores); “erros” (previsão precisa desmentida pelos fatos); “esperadas” (previsões sobre eventos altamente prováveis); “vagas” (afirmações tão genéricas que seria muito fácil escolher um evento específico para validá-las); e “desconhecidas” (quando os voluntários simplesmente não tinham acesso a meios de checar a previsão, como, por exemplo, quando se referia ao estado de saúde de uma celebridade estrangeira).

Resultado: houve apenas 11% de acertos, contra 53% de erros; destaca-se, ainda, que 34% foram classificadas como vagas ou esperadas; e somente 2% foram consideradas desconhecidas. Este é apenas um demonstrativo de como a estratégia de unir imprecisão a palpites sobre eventos altamente prováveis é mesmo muito mais eficaz do que fazer previsões claras e objetivas, que acabam se mostrando, na maioria das vezes, erradas.

Com tudo isso, é completamente inadmissível afirmar que a astrologia fez uma previsão acertada sobre o novo conflito em Israel. O que uma matéria como essa demonstra, por fim, é apenas mais um exemplo de uma reflexão que já fizemos em outros momentos nesta revista, mas que vale repetir aqui: temas como esse prosperam quando a mídia utiliza a bandeira do entretenimento – como faz a seção “f5” – como salvo-conduto para propagar desinformação e sensacionalismo; neste caso, com o agravante de reduzir uma tragédia humana sem precedentes a mero clickbait.

Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia. É autor de livros de física para o Ensino Superior e de divulgação científica, como o “Armadilhas Camufladas de Ciências: mitos e pseudociências em nossas vidas” (Ed. Autografia)

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