Esta primeira crônica de 2021 (feliz Ano Novo! – se possível) é uma suíte da derradeira de 2020 (“suíte”, em jornalistiquês, é uma notícia, artigo ou reportagem que dá continuidade, amplia ou apresenta as repercussões de material anteriormente publicado). Para quem perdeu, na última semana dei vazão à minha inconformidade com o fato de a imprensa brasileira ainda levar astrologia a sério, mesmo depois do vexame universal dos horóscopos do final de 2019, que não previram o caos que viria.
A razão da suíte: eis que alguns leitores escreveram para me informar de que sim, na verdade, houve astrólogos que “previram” a pandemia de 2020. Aparentemente, depois que, em maio, a mídia internacional (e a gente aqui na Revista Questão de Ciência, também) resolveu chamar atenção para o fato de que os horóscopos e colunas de conselhos astrológicos tinham falhado em avisar seus clientes afoitos de que o mundo iria virar de ponta cabeça, astrólogos de todo o planeta começaram uma louca corrida em busca de alguém, em algum lugar, que tivesse dito algo sobre 2020 que se assemelhasse a uma previsão de pandemia.
O fato de terem conseguido não deve surpreender ninguém. Com milhões de páginas de interpretações e vaticínios publicadas a cada ano, a indústria astrológica provavelmente já previu tudo que havia para ser previsto sob o Sol para cada ano do calendário até o fim do milênio, e além.
A técnica da superabundância, que descrevi semana passada – se você faz previsões sobre tudo, do resultado da Copa do Mundo à quebra da safra de soja, alguma há de acabar confirmando-se –, não se aplica apenas a astrólogos individuais, mas ao campo astrológico como um todo. Superabundância também é, às vezes, chamada de escopeta, porque atira para todo lado e vê se acerta alguma coisa.
O segredo do sucesso é o mesmo das escopetas não-metafóricas: o chumbo que acerta alguma coisa é notado, mas ninguém pensa nos bagos que se perdem ao léu. Exemplo: a astróloga Jean Dixon (1896–1981) ganhou fama ao “acertar” uma previsão, a do assassinato de John Kennedy (1917-1963). Mas ela também havia previsto a que a cura do câncer seria descoberta em 1967, que Richard Nixon (1913-1994) venceria Kennedy na disputa pela Presidência dos EUA (ela previu, em diferentes ocasiões, tanto a vitória de Kennedy quanto a de Nixon, na mesma eleição!) e que a China começaria a III Guerra Mundial em 1957.
Enfim. A “prova” mais citada de que a astrologia não falhou no caso da pandemia é um trecho de um artigo do astrólogo francês André Barbault (1921-2019), publicado originalmente em 2012. Lá pelas tantas, Barbault escreve:
“Podemos muito bem estar em sério risco de uma nova pandemia no registro de 2020-2021 (...) com o quinteto de planetas exteriores juntos ao longo de cem graus, uma conjunção Júpiter-Saturno-Plutão (...) esta configuração pode transferir suas dissonâncias centrais para o terreno dos desastres geofísicos”.
Antes de ficarmos impressionados, vamos notar alguns detalhes. Primeiro, a linguagem de Barbault é especialmente vaga: “podemos muito bem estar em sério risco” é muito diferente de “estamos em sério risco”. E risco de quê? Ele fala em pandemia, mas também de "desastres geofísicos".
Ao pé da letra, ele dizia que talvez sim, talvez não, em 2020, quem sabe 2021, poderia (ou não) acontecer algo desagradável, vai ver uma pandemia, mas também valendo terremoto, vulcão, tsunami... É muito fácil acertar na mosca quando o centro do alvo tem dois metros de diâmetro. E vamos manter em mente que, se nada disso tivesse acontecido, as previsões permaneceriam esquecidas e ninguém iria constranger Barbault com “meros detalhes”. O artigo de 2012 só foi redescoberto e resgatado após o fato consumado.
Saturno e Plutão
Outra peça de defesa da competência da astrologia, enquanto arte/ciência (em oposição, ao que parece, à incompetência da esmagadora maioria dos astrólogos, enquanto profissionais) para prever pandemias é um trecho do livro “Cosmos and Psyche”, do filósofo/astrólogo Richard Tarnas.
“Cosmos and Psyche” tem um longo trecho que busca ligar grandes desastres e atrocidades – de pandemias a guerras – a aspectos entre Saturno e Plutão (um “aspecto” é um ângulo entre dois planetas considerado astrologicamente significativo). Antes de prosseguir, vamos notar que, de acordo com tabela publicada pelo próprio Tarnas, cerca de 40% do século 20 esteve sob algum tipo de aspecto dos dois planetas. Encontrar atrocidades em pelo menos 40% do século passado não é exatamente procurar uma agulha no palheiro.
Um desses aspectos, a conjunção, ocorre quando os planetas aparecem juntos no céu, tal como vistos da Terra. Saturno e Plutão entraram em conjunção em 12 de janeiro do ano passado. A última havia ocorrido em novembro de 1982. O evento se repete uma vez a cada 33 anos, aproximadamente.
Escreve Tarnas:
“Outra dessas conjunções definidoras foi a de 1348-51, que coincidiu com a erupção e disseminação da peste negra (...) Um padrão comparável pode ser discernido na pandemia de aids, que emergiu de forma ampla e foi identificada durante a conjunção Saturno-Plutão de 1981-84”.
Defensores da astrologia notam que a conjunção seguinte, a de janeiro de 2020, coincidiu com o início da pandemia, e apontam um padrão aí.
Mas uma coisa que logo chama a atenção é que as datas citadas por Tarnas para a peste negra e a aids parecem meio arbitrárias. O ano e mesmo o local exatos da eclosão da peste na Ásia são desconhecidos, mas a doença entrou na história do Ocidente ao chegar a Constantinopla, em 1347. Estima-se que estivesse circulando pela Ásia por pelo menos 15 anos antes disso – ou seja, desde 1332. O ano de 1348, citado pelo autor, marca a chegada da doença às cidades de Londres e Paris. As conjunções Saturno-Plutão mais próximas dessas datas ocorreram em 1318 e 1350, respectivamente.
No caso da aids, a síndrome foi reconhecida como uma doença específica em junho de 1981, mas a disseminação de uma forma inexplicada de imunodeficiência já era notada, pelo menos, desde a segunda metade da década de 1970. Além disso, estima-se que o vírus HIV tenha feito a transição de chimpanzé para ser humano em algum momento dos anos 1920. A conjunção Saturno-Plutão mais próxima da data citada por Tarnas ocorreu em novembro de 1982, mais de um ano depois de a doença ter sido reconhecida, e quase dez anos depois dos primeiros casos anotados.
Então, temos, primeiro, um trabalho de “escolher a dedo”, em meio a todas as datas relevantes para cada pandemia, aquelas que mais se aproximam do momento da conjunção – a escolha de 1348 para a peste negra é especialmente eurocêntrica; quanto à aids, 1981 realmente é citado, em muitas fontes, como o “início oficial” da crise. Mas por que a chegada da peste a Paris seria mais relevante do que a Constantinopla? Ou do que seu início na Ásia?
Segundo: por cima dessa seletividade toda, joga-se uma boa dose de flexibilidade para definir o que acontece “dentro” da conjunção (a aids foi identificada em meados de 1981, mas a conjunção só veio no fim do ano seguinte).
A respeito desse segundo ponto, astrólogos reconhecem “orbes de influência”, períodos de tempo antes e depois de um aspecto em que sua influência já (ou ainda) se faz sentir. Tarnas está dando à conjunção de Saturno-Plutão um orbe de quatro anos. Vamos reconhecer que é muito fácil acertar na mosca quando o centro alvo tem não dois, mas dez metros – e não de diâmetro, mas de raio.
Coincidências demais
Um terceiro ponto, menos evidente e que até por isso merece especial destaque, é que provavelmente é impossível encontrar um único período de quatro anos, em toda a história registrada, em que alguma catástrofe – guerra, praga, terremoto – não tenha atingido alguma parte do mundo.
Ao focalizar nos eventos catastróficos que aconteceram dentro do orbe de influência de Saturno-Plutão, perdem-se de vista os que caíram fora desse arco: por exemplo, a Praga de Justiniano, a primeira pandemia de peste bubônica conhecida, eclodiu entre 541 e 542. A conjunção mais próxima foi a de 549 (ou seja, 547-551). A primeira grande pandemia de gripe registrada, que afetou todo o Velho Mundo, aconteceu em 1510 (conjunções próximas: 1480, 1518). E este é apenas um par dentre as muitas exceções que desprovam a regra.
Exceções, aliás, que se multiplicam à medida que buscamos epidemias que tiveram consequências graves fora da Europa ou dos Estados Unidos. Uma epidemia de varíola que matou pelo menos um terço da população japonesa teve início em 735, sendo que as conjunções mais próximas ocorreram em 710 e 745.
Falhar em buscar exceções e contraexemplos significa cair vítima do viés de confirmação. O que chamamos, genericamente, de “método científico” é, na verdade, um conjunto de ferramentas, desenvolvidas e aperfeiçoadas ao longo de séculos, para minimizar esse viés. A ciência legítima faz tudo o que pode para fugir dele; a pseudociência o abraça.
Se você acha que beber água causa câncer, não adianta mostrar que 100% dos pacientes de câncer bebem água regularmente, é preciso também ver as pessoas que tomam água e não desenvolvem nenhum tumor. Do mesmo modo, se você acha que um aspecto no céu permite prever um certo tipo de evento, não adianta só contar quantas vezes as duas coisas acontecem juntas. É preciso ver também com que frequência ocorrem de forma separada.
Lua cheia
A monumental “Encyclopedia of Plague and Pestilence” (“Enciclopédia de Pragas e Pestilências”) tem uma tabela cronológica em que, a partir de 1516, não há praticamente nenhum ano sem alguma epidemia registrada em algum lugar. A lista histórica de guerras da Wikipedia, por sua vez, é quase infindável.
Isso tudo significa que, dados um fenômeno periódico qualquer – como os arranjos de corpos celestes – e uma folga (ou “orbe de influência”) confortável, é possível correlacionar qualquer aspecto no céu a qualquer tipo de desastre ou atrocidade na Terra. Estabelecer a validade e a significância da correlação, no entanto, implica, entre outras coisas, demonstrar também que um evento se torna menos frequente na ausência do outro. Aí, a ilusão se desfaz.
Uma ocorrência mais comezinha desse mesmo tipo de equívoco aparece no grande número de fenômenos, de partos a acidentes de carro, que, supostamente, acontece durante a Lua cheia. Análise clássica de várias dezenas estudos sobre supostos efeitos das fases da Lua nas pessoas foi publicada nos EUA em 1985, e atualizada em 1996. Nas duas ocasiões, o título, muito apropriado, dado pelos autores foi: “A Lua Estava Cheia e Não Aconteceu Nada”.
Os estudos avaliados registraram, entre outras informações, datas de nascimento de milhares de bebês, data e horário de dezenas de milhares de ligações para a polícia ou serviços de emergência, data e horário de faltas violentas em eventos esportivos, número de internações psiquiátricas... Sem achar nenhuma correlação válida com a fase da Lua. E isso sistematicamente, desde o século 19.
Nos raros trabalhos em que um possível efeito aparecia, uma análise mais aprofundada mostrava que era algo que podia ser atribuído a erro dos pesquisadores originais ou a coincidências: por exemplo, um eventual pico no número de acidentes envolvendo motoristas alcoolizados se explica melhor porque a noite era de Lua cheia, ou porque era noite de sábado? Em 2013 e 2019, dois estudos voltaram a demonstrar, respectivamente, que a Lua não afeta nem as taxas de nascimento, nem as de internações psiquiátricas.
Pôr coincidências em relevo e ignorar o contexto maior é a porta de entrada de inúmeras superstições, incluindo – e não por coincidência – a astrologia.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)