O paradoxo do contágio ideológico à esquerda e à direita

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15 set 2023
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Uma antiga propaganda brasileira dizia que não bastava ser pai, era preciso participar. Hoje, algo semelhante parece acontecer no posicionamento político-ideológico. Para ser um suposto "conservador" ou "de direita" não basta mais defender o liberalismo econômico e o Estado mínimo, entre outras pautas típicas relacionadas a esta vertente de opinião. Para muitos, é preciso também ser antivacina, antiglobalista, negar as mudanças climáticas, duvidar da lisura dos processos eleitorais e aderir a teorias conspiratórias como estas e outras que também passaram a ser associadas a esta posição política.

Não que o outro lado do espectro partidário esteja livre do mesmo problema. Hoje, para ser um legítimo "progressista" ou "de esquerda", muitas vezes também não é suficiente apoiar o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e igualitária, com inclusão econômica e social, e um papel ativo do Estado na economia. É preciso também aderir a um estilo de vida "natureba", a favor de produtos orgânicos e contra o uso de agrotóxicos e organismos geneticamente modificados (OGMs), e ter uma - ou mais - "pseudociência" do coração, como homeopatia, Reiki, Constelação Familiar ou qualquer outra das muitas chamadas "práticas integrativas e complementares" (PICs) na saúde.

Tudo com muito cuidado para não contrariar, ou sequer melindrar, discursos identitários ou interesses econômicos, por mais absurdos que sejam. Basta ver a forte reação às críticas à psicanálisepublicadas nesta Revista Questão de Ciência e incluídas no recém-lançado livro "Que Bobagem", de Natalia Pasternak e Carlos Orsi, respectivamente presidente e diretor de comunicação do Instituto Questão de Ciência (IQC).

A este fenômeno, em que identidades políticas se expandem para incluir cada vez mais pautas e crenças "requeridas" dos sócios de carteirinha, deu-se o nome de contágio ideológico. Muitas hipóteses vêm sendo propostas para explicar sua ocorrência e força, especialmente no que envolve a confiança na ciência, dado que muitas destas pautas são objeto de consensos científicos sólidos, como o aquecimento global antropogênico, a segurança e eficácia das vacinas ou o caráter implausível dos princípios básicos da homeopatia.

Uma delas credita o contágio ideológico a um processo de "racionalização politicamente motivada", pelo qual a ideologia política influenciaria o processamento da informação, assumindo um papel causal na formação de crenças. Isso também faria com que a contaminação tenha um forte contexto cultural, o que ajudaria a explicar ainda por quê algumas crenças ora podem ser consideradas "de direita" em um lugar e momento, ora "de esquerda" em outro lugar e momento. Exemplo disso é a postura antivacina. Outrora discurso mais comum entre mães influenciadas por ideias de "vida natural" do tipo "Nova Era" no Brasil, ou seja, algo geralmente associado à "esquerda", o antivacinismo acabou encampado pela direita brasileira a partir de movimento neste sentido do conservadorismo nos EUA.

Outra hipótese soma a isso uma possível "cognição protetora da identidade". Sob ela, indivíduos com mais educação e capazes de uma argumentação mais sofisticada reforçariam o processo automático da racionalização politicamente motivada usando suas habilidades cognitivas para tentar harmonizar as evidências científicas à ideologia política. De fato, estudos realizados nos EUA apontam que quanto maiores o nível educacional e o letramento científico dos indivíduos, mais polarizadas são suas opiniões sobre temas controversos, como pesquisas com células-tronco, o Big Bang como origem do Universo e a evolução humana, e que a preocupação com as mudanças climáticas diminui entre os eleitores republicanos com mais educação, o inverso ocorrendo entre os eleitores democratas.

Outros dois modelos vão em direção diferente, e no lugar de motivações políticas ou questões de identidade focam no conhecimento. O primeiro sugere que pessoas sem um conhecimento básico, ou correto, da ciência e seus métodos tendem a rejeitar ou rechaçar mais certos consensos científicos. Este modelo implica a ideia de que as crenças anticientíficas são comuns porque a ciência é "difícil de entender", e que bastaria melhorar o letramento científico da população que o problema se resolveria.

O segundo modelo deste tipo vai além e propõe que as pessoas na verdade não pensam analiticamente o bastante sobre ciência, ou mesmo outras questões da vida, no geral. Seria esta falta de pensamento crítico que faria, por exemplo, que pessoas mais receptivas a "besteiras pseudoprofundas" também sejam mais vulneráveis e propensas a acreditar em teorias conspiratórias e na eficácia de práticas medicinais pseudocientíficas. Embora a maior parte destas hipóteses não seja mutuamente excludente, não é o caso desta e da que versa sobre nível educacional e sofisticação cognitiva, pela qual a capacidade crítica deveria, então, levar à rejeição de crenças anticientíficas, como o negacionismo das mudanças climáticas, independente do posicionamento ideológico do indivíduo.

 

Testando hipóteses

Diante disso, um trio internacional de pesquisadores decidiu testar em conjunto estas diferentes hipóteses. Em uma série de estudos reunidos em artigo publicado recentemente no periódico Journal of Experimental Psychology: General, editado pela Associação Americana de Psicologia, Gordon Pennycook, da Universidade de Regina, Canadá. Bence Bago, da Universidade de Toulouse, França, e Jonathon McPhetres, da Universidade de Durham, Reino Unido, primeiro analisaram as respostas de duas amostras representativas da população dos EUA, incluindo alinhamento partidário - isto é, se se identificavam como democratas ou republicanos - a 17 afirmações de cunho científico, como "o aquecimento global é ao menos parcialmente causado pela ação humana e um sério problema para o meio ambiente", pseudocientífico, como "a homeopatia é um meio efetivo de tratar algumas doenças e condições", ou de desinformação, como "vacinas causam autismo em crianças". Em paralelo, os participantes também responderam uma sequência de questionários que permitiu aos pesquisadores avaliar seus níveis de conhecimento científico, da metodologia da ciência e sofisticação cognitiva.

A análise dos dados revelou que são poucos os temas em que posicionamento ideológico afeta significativamente as respostas: mudanças climáticas antropogênicas e identidade de gênero, com democratas concordando mais com a realidade da primeira e a ambiguidade da segunda na comparação com republicanos. Isto, apesar de as 17 afirmações terem sido apontadas por uma terceira amostra independente como entre as mais sujeitas a desacordo por questões políticas, e a gama de respostas a todas elas confirmar seu caráter polêmico, e que a crença em proposições anticientíficas é um problema em ambos os lados do espectro.

Também foram observadas pequenas diferenças em outras afirmações como "a Teoria da Evolução é a melhor explicação para a origem da Humanidade", "a Teoria do Big Bang é a melhor explicação para a origem do Universo", "vacinas podem causar autismo em crianças" e "a diferença de salários por gênero é devido ao sexismo e mais nada". Nestes casos, porém, em geral o nível de conhecimento da ciência e seus métodos foi um preditor tão bom quanto a ideologia e posicionamento político, com exceção das duas primeiras para os eleitores democratas, em que estes fatores parecem ter tido um peso maior nas respostas.

Já a análise que levou em conta a sofisticação cognitiva indica que ela teve efeito nas respostas a todas menos quatro das 17 afirmações: "a energia nuclear é uma fonte relativamente segura e viável de energia"; "ter uma taxa mais alta de testosterona geralmente confere uma vantagem no desempenho atlético"; "a inteligência humana é moderadamente hereditária"; e "não há diferenças consistentes entre homens e mulheres na média dos resultados de matemática do SAT" (o equivalente americano ao Enem).

Mas também foi encontrada influência da posição partidária na maioria das afirmações, com exceção de seis: novamente, o caráter parcialmente hereditário da inteligência, além da rejeição à homeopatia, acupuntura, óleos essenciais e estratégias de "desintoxicação", e aceitação de organismos geneticamente modificados. Os pesquisadores destacam ainda que houve interações significativas do posicionamento ideológico em todos menos cinco dos tópicos: "estereótipos são sempre imprecisos"; o das vacinas causando autismo, a rejeição à homeopatia e à "desintoxicação" e a aceitação de OGMs.

Segundo os pesquisadores, embora estes resultados apoiem parcialmente a hipótese de cognição protetora da identidade, ela não é suficiente para predizer as respostas e interações observadas. Isto porque, por exemplo, não foi vista uma clara diferença entre republicanos e democratas com maior sofisticação cognitiva nas opiniões sobre temas como o aquecimento global, em que por este modelo se esperaria que fossem em direções opostas nas suas crenças.

Assim, os pesquisadores partiram para mais dois estudos focando especificamente as opiniões sobre o aquecimento global e as mudanças climáticas. Em ambos, eles apresentaram seis argumentos sobre o tema: três com informações científicas apoiando a ideia das mudanças climáticas antropogênicas, explicando como elas vão afetar o meio ambiente e como a ação humana as provoca, e três negando a influência humana nas mudanças climáticas, ou que eles tenham qualquer consequência ruim. Todos os argumentos eram equilibrados, sem indicativos de partidarismo.

Nestes dois estudos subsequentes, pediu-se aos participantes que refletissem sobre os argumentos e os encarassem sob uma perspectiva política, com o primeiro dizendo ainda que isso ajudaria a colocar as afirmações no contexto da polarização política que envolve o tema, frase que foi retirada no segundo. Antes, porém, eles foram convidados a revisitar as afirmações apresentadas no estudo inicial, e depois responderam questionários para mensurar sua sofisticação cognitiva e posicionamento político.

Segundo os pesquisadores, ambos estudos mostraram que os indivíduos com mais sofisticação cognitiva tendiam a concordar com os argumentos alinhados ao seu posicionamento ideológico, isto é, houve uma associação entre sofisticação cognitiva e polarização. Mas também foi observada uma interação tripla entre raciocínio politicamente motivado, concordância e sofisticação cognitiva, com os participantes com pontuações mais baixas nos questionários de sofisticação cognitiva mostrando uma maior divisão nas respostas sobre mudanças climáticas. Ou seja, a análise foi na direção contrária do esperado pelo modelo de "cognição protetora da identidade", segundo o qual a polarização aumentaria com a sofisticação cognitiva.

Segundo os pesquisadores, os três estudos mostram a complexidade de fatores que influenciam crenças e opiniões sobre temas de cunho científico. Além de minimizar o papel do posicionamento político-ideológico sobre vários assuntos geralmente considerados polarizadores, os resultados indicam que a sofisticação cognitiva não exacerba este problema, sendo, pelo contrário, associada a uma maior confiança na ciência. Diante disso, recomendam que comunicadores de ciência, educadores e tomadores de decisão focalizem seus esforços mais na melhoria do conhecimento e letramento científico da população, de forma a tornar mais positivas as atitudes com relação à ciência e a aceitação de novas tecnologias.

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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