Conspiracionismo da COVID-19 "bate ponto" no Congresso dos EUA

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25 jul 2023
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No início deste mês, a Câmara dos Representantes dos EUA, o equivalente americano à nossa Câmara dos Deputados, realizou mais uma audiência pública para investigar uma possível origem artificial do SARS-CoV-2, o coronavírus causador da COVID-19, e o acobertamento deste suposto fato por cientistas e governos. A reunião foi convocada pelo subcomitê da Casa dedicado à pandemia dias depois da divulgação de um relatório da comunidade de inteligência americana resumindo seus achados sobre as ligações do vírus com um laboratório na cidade chinesa de Wuhan, epicentro da crise sanitária em 2020.

Desde o começo da pandemia, políticos republicanos, liderados pelo então presidente dos EUA, Donald Trump, promovem a hipótese de que o vírus saiu das instalações do Instituto de Virologia de Wuhan (WIV, na sigla em inglês), seja por acidente, devido a más práticas, ou mesmo deliberadamente, em um ato de bioterrorismo. Apesar de não ter encontrado evidências neste sentido, o relatório deixa em aberto esta possibilidade, afirmando que "tanto uma origem natural quanto uma associada ao laboratório permanecem plausíveis". Com isso, a hipótese continua a alimentar teorias da conspiração, apesar de já ter sido descartada por boa parte da comunidade científica, cujo consenso aponta para uma origem zoonótica em dois eventos de "transbordamento" (spillover) em um mercado de animais na mesma cidade chinesa.

Na audiência, os deputados americanos questionaram dois virologistas - Kristian Andersen, do Instituto de Pesquisas Scripps, na Califórnia, e Robert Garry, da Escola de Medicina da Universidade Tulane, em Nova Orleans - que assinaram com outros três cientistas estudo inicial que rejeitou a hipótese de vazamento ou alteração do vírus no laboratório, publicado na revista científica Nature Medicine ainda em março de 2020. Nele, o grupo afirma que com base na análise da estrutura do vírus, em especial da chamada proteína "spike", responsável por abrir caminho para a infecção de células humanas, qualquer cenário envolvendo manipulação em laboratório para origem do SARS-CoV-2 seria implausível.

Segundo eles, o mais provável é que ou o vírus passou a ser patogênico em um hospedeiro não humano (morcegos e/ou pangolins, uma espécie de tatu) e em seguida adquiriu a mutação na proteína “spike”, passando a infectar os seres humanos, ou a mutação ocorreu primeiro na “spike” – isto é, o vírus primeiro se tornou capaz de infectar seres humanos – e só depois de contaminar algumas pessoas sofreu outras mutações, passando a causar a doença que ficou conhecida como COVID-19.

Antes da publicação do artigo, no entanto, os cientistas ainda especulavam entre si sobe várias hipóteses para o surgimento do SARS-CoV-2, incluindo as de manipulação e vazamento acidental do laboratório. Em um e-mail enviado em janeiro de 2020 para Anthony Fauci, então diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos EUA (NIAID, também na sigla em inglês), Andersen disse que algumas características inicialmente identificadas do vírus o faziam imaginar se o patógeno não havia sido modificado artificialmente, destacando que ele e colegas fariam mais análises de seu genoma. E foi justamente após estas análises que Andersen e colegas acabaram por considerar estas hipóteses improváveis.

Apesar disso, políticos republicanos e influenciadores da extrema-direita americana insistem em ver uma conspiração no descarte destas suspeitas iniciais. Segundo eles, Fauci, Francis Collins, então seu chefe imediato como diretor dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA (NIH, novamente na sigla em inglês) e Jeremy Farrar, na época diretor do Wellcome Trust, organização filantrópica que é uma das maiores financiadoras privadas de pesquisas na área de saúde no mundo, teriam pressionado os cientistas neste sentido, numa operação de acobertamento da "verdadeira" origem da COVID-19. Em seu depoimento na audiência pública do início do mês, Andersen negou estas alegações

Os acusadores que se voltam contra Fauci e o grupo de Andersen ignoram, porém, estudos subsequentes que reforçam a ligação do surgimento da doença com o mercado de animais de Wuhan. Um dos mais recentes, publicado na prestigiosa revista Science em julho do ano passado, observou que os primeiros casos de COVID-19 estavam centrados ou próximos ao Mercado de Atacado de Frutos do Mar de Huanan, na região central da cidade. Apesar do nome, o mercado também era conhecido pelo comércio de mamíferos vivos para aproveitamento de carne e peles, animais que podem ter servido de hospedeiros intermediários do vírus, entre eles raposas, guaxinins, texugos e furões. Além disso, amostras colhidas em diversos animais e objetos do mercado, fechado ainda em 1º de janeiro de 2020, testaram positivo para o SARS-CoV-2.

"Diversas linhas de evidências apoiam a hipótese de que o mercado de Huanan foi a epicentro da pandemia de COVID-19, e que o SARS-CoV-2 surgiu das atividades associadas ao comércio de animais vivos lá", resumem os pesquisadores na sua conclusão.

Já outro estudo que analisou amostras coletadas no ambiente e animais no mercado nas semanas seguintes após seu fechamento, publicado de forma acelerada na revista Nature em abril deste ano, também registrou a presença do vírus em diversos locais do estabelecimento, especialmente na sua parte oeste. Nenhum dos animais, no entanto, testou positivo para o SARS-CoV-2, o que impediu que os pesquisadores pudessem apontar o mercado como origem provável da doença.

Já o relatório da comunidade de inteligência dos EUA, liberado no mês passado, informou que as agências de espionagem americanas não encontraram nenhuma evidência ligando o vírus ao laboratório de Wuhan, apesar das pressões que sofreram de integrantes do governo do ex-presidente Donald Trump. Segundo o documento, embora antes da pandemia os cientistas do laboratório tivessem conduzido pesquisas com coronavírus envolvendo amostras genéticas e de animais, não há indicações de que estes estudos incluíram o SARS-CoV-2 ou qualquer possível progenitor do vírus, tampouco há evidências de incidentes com funcionários do laboratório que possa ter dado início à pandemia. Os casos de adoecimento registrados em meio a esses funcionários, no fim de 2019, mostravam sintomas mais consistentes com simples resfriados e alergias, e não associados aos sinais mais severos da COVID-19.

Assim, todas as evidências indicam que o coronavírus surgiu de forma natural. Como resumiu Michael Worobey, professor de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade do Arizona à revista The Economist, esta é a explicação mais plausível por diversas razões. Primeiro, geograficamente, pelo padrão do aparecimento dos primeiros casos e sua relação com o mercado de Huanan. Segundo, pelas indicações zoonóticas, com o vírus tendo sido encontrado em amostras analisadas em diferentes estudos.

E, por fim pelas evidências genéticas do próprio vírus, com as análises diretas, de sorologia e de filogenética apontando um salto de um hospedeiro animal para um humano por volta de novembro de 2019, acrescentou Francois Balloux, chefe do Departamento de Sistemas de Biologia Computacional do University College London, em uma publicação na rede social Twitter: "As evidências se encaixam num cenário de emergência inicial na China, seguida por rápida transmissão para a Europa, com o Norte da Itália atuando como epicentro da disseminação da doença para o resto do mundo", escreveu.

A real origem do SARS-CoV-2 provavelmente nunca será conhecida em definitivo. Diante disso, também é provável que a hipótese do vazamento proposital ou acidental do laboratório em Wuhan nunca seja abandonada, tonando-se ponto focal de teorias da conspiração como a suposta queda de um disco voador no entorno da cidade americana de Roswell em 1947 é para a ufologia. E, assim, também continuar a "bater ponto" no Congresso dos EUA ao sabor de interesses políticos e ideológicos como acontece com os agora rebatizados "fenômenos aéreos não identificados" (UAPs, na sigla em inglês), objeto de nova audiência pública marcada para esta quarta-feira, 26 de julho.

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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