Nunca imaginei que estaria no meu vigésimo artigo para a RQC – e muito menos que a temática seriam os adoçantes, mais uma vez. No meu cenário ideal, estaríamos discutindo as picaretagens empregadas por uma marca relevante no ramo de suplementos – spoiler: eles utilizam vibração quântica, bioressonância e outras patranhas questionáveis –, contudo, deixarei este assunto para o mês que vem.
Sem mais delongas, vamos ao cerne da questão: a Organização Mundial de Saúde publicou, em 13 de julho, sua atualização oficial sobre o status do adoçante aspartame em relação à saúde humana, enquanto um órgão da OMS decidiu incluir o adoçante na lista de produtos “possivelmente carcinogênicos” (que traz também extrato de folha inteira de aloé vera e picles), outro manteve a mesma recomendação de nível seguro de consumo que vigora desde 1981. O documento, “Resumo de conclusões das avaliações realizadas pela International Agency for Research on Cancer (IARC) e pelo Joint FAO/WHO Expert Committee on Food Additives (JECFA)”, sumariza as conclusões de relatórios desenvolvidos pelas duas agências (IARC e JECFA) e cita quais os estudos que foram levados em consideração.
Poderia encerrar o artigo aqui, afirmando que deu a lógica: como havia sido antecipado pela imprensa mundial, a IARC adicionou o aspartame ao grupo 2B (possivelmente carcinogênico) de sua lista, enquanto o JECFA reafirmou que a ingestão diária segura e aceitável de aspartame é 40mg/kg de peso corporal. Mal comparando, uma lata de refrigerante zero ou diet tem, em números redondos, algo entre 80 mg e 200 mg aspartame, dependendo da marca.
Entretanto, para aqueles que querem se aprofundar nos achados – e na metodologia empregada –, convido para as seções a seguir.
Avaliação da IARC
O grupo de pesquisa da IARC classificou o aspartame como possivelmente carcinogênico para humanos (2B) baseado em evidências limitadas para câncer em humanos (principalmente o carcinoma hepatocelular, um tipo de câncer de fígado). Dentre os estudos disponíveis sobre câncer em humanos, somente três trataram do consumo de bebidas adoçadas artificialmente. Estes foram utilizados para avaliar uma relação entre o aspartame e o câncer de fígado.
Nos três estudos, foram observadas associações positivas entre o consumo de bebidas adoçadas artificialmente e o risco do desenvolvimento da patologia, tanto na população geral quanto em subgrupos específicos. Contudo, os pesquisadores da IARC reconhecem que variáveis de confusão, vieses e o acaso não podem ser descartados como possíveis explicações para os resultados.
Saindo dos estudos em humanos, o grupo de pesquisa também encontrou evidências limitadas em relação ao câncer em experimentos animais. Neste caso, foram avaliados três estudos que indicaram um aumento na incidência de tumores em duas espécies, ratos e camundongos. Entretanto, os pesquisadores ressaltam algumas precauções envolvendo os estudos analisados, como metodologia empregada, interpretação e relato dos dados. Por esses motivos, a evidência foi considerada limitada.
Por último, mas não menos importante, verificou-se evidência limitada em relação ao mecanismo de ação. Neste, os pesquisadores observaram, com base em evidências consistentes, que o aspartame induz estresse oxidativo em modelos experimentais e, baseando-se em evidências sugestivas, pode induzir inflamação crônica, alteração na proliferação celular, morte celular e fornecimento de nutrientes – vale ressaltar que todas as pesquisas desse último parágrafo foram realizadas in vitro.
Avaliação do JECFA
Com base nos desfechos encontrados em experimentos realizados em animais e estudos em humanos, o comitê concluiu que o aspartame não apresenta efeitos adversos após a ingestão. O adoçante é totalmente hidrolisado no trato gastrointestinal, produzindo metabólitos idênticos àqueles de outros alimentos. Destaca-se ainda que o aspartame não entra na circulação sistêmica sanguínea, pois sua molécula é quebrada antes.
O comitê manteve sua posição anterior, reafirmando que a concentração de 40 mg/kg de peso corporal é segura. Igualmente importante, os pesquisadores verificaram que, em estudos de exposição oral ao aspartame em humanos, dentro do limite estabelecido, não houve aumento nas concentrações plasmáticas dos metabólitos do adoçante.
Além disso, diversos estudos, tanto in vitro quanto in vivo, testaram a genotoxicidade (capacidade que uma substância tem de induzir alterações no material genético) do produto. Considerando os resultados conflitantes e a qualidade dessas pesquisas, o comitê concluiu que o aspartame não apresenta ação genotóxica.
O comitê também avaliou dados de 12 estudos de carcinogenicidade oral do aspartame e identificou diversas limitações em todos eles. Com exceção de quatro artigos de um mesmo autor, todos os demais tiveram resultados negativos.
Com base nos resultados dos estudos de carcinogenicidade oral, na ausência de evidências de genotoxicidade e na falta de evidências sobre um mecanismo de ação entre a exposição oral ao aspartame e a indução de carcinogênese, o grupo conclui que não é possível estabelecer uma relação entre a exposição ao aspartame em animais e o aparecimento de câncer.
O comitê avaliou também dados de estudos randomizados controlados e estudos epidemiológicos que investigaram uma associação entre o consumo de aspartame e algumas condições de saúde, como o câncer, o diabetes tipo 2 e outras. Foi identificada, em estudos de coorte, relação entre aumentos estaticamente significativos de alguns tipos de câncer – caso do hepatocelular, de mama e hematológico – e o consumo de bebidas adoçadas com aspartame. Todavia, os estudos apresentavam limitações na maneira como estimaram a exposição ao aspartame (principalmente aqueles que utilizaram a exposição de adoçantes não calóricos como um valor aproximado da exposição ao aspartame).
Por fim, o comitê reforça que causalidade reversa, acaso, vieses e variáveis de confusão socioeconômica, de estilo de vida ou de consumo de outros componentes dietéticos não puderam ser descartados como explicação alternativa para os resultados.
Diferenças
Apesar das avaliações realizadas serem consideradas “complementares”, as conclusões da IARC e do JECFA parecem diametralmente opostas.
Primeiro, deve-se ressaltar o fato de a IARC e de o JECFA avaliarem diferentes tipos de evidência. Enquanto a primeira considera apenas estudos e relatórios publicamente disponíveis, o segundo analisa todos os estudos e relatórios publicamente disponíveis, além de pesquisas realizadas com finalidade regulatória – isto é, para informar agências reguladoras como a FDA americana ou a Anvisa no Brasil.
Segundo, as agências só discordaram mesmo com relação à possível evidência de estresse oxidativo; todos os demais estudos que investigaram genotoxicidade foram considerados inconclusivos, devido às limitações metodológicas empregadas.
Por fim – e talvez o ponto mais interessante –, a IARC reconhece que há limitações nos três tipos de evidência (câncer em humanos, experimentos em animais e mecanismo de ação). A nova classificação do aspartame no grupo 2B foi baseada na evidência limitada de carcinoma hepatocelular em humanos. O JECFA, por sua vez, não encontrou evidências convincentes de um mecanismo plausível que causasse efeitos adversos em humanos ou animais, e nem um número suficiente de estudos que demonstrasse tais efeitos.
Aspartame seguro?
Apesar de um estudo de coorte – um tipo de pesquisa em que um grupo de pessoas é acompanhado ao longo do tempo, sendo que algumas estão expostas ao que se considera um fator de risco e outras, não – apresentar uma associação estatística positiva entre o consumo de aspartame e o desenvolvimento do diabetes tipo 2, e o consumo de aspartame e o desenvolvimento de doenças cerebrovasculares, o JECFA considerou os resultados não convincentes. A decisão foi tomada devido aos vieses inerentes dos estudos de coorte e da possibilidade de variáveis de confusão remanescentes: nesse tipo de estudo, há muito pouco (ou nenhum) controle sobre outras causas possíveis dos desfechos detectados, para além do fator de risco avaliado.
Adentrando em outros desfechos clínicos, ensaios realizados em animais e em humanos sugerem que o aspartame talvez altere o microbioma. Entretanto, os resultados são inconsistentes e o mecanismo de ação que ocasionaria tal alteração ainda não está claro. Um ensaio clínico randomizado e controlado realizado em humanos observou que o consumo de aspartame alterou os microbiomas oral e intestinal. Contudo, mais uma vez, são necessários mais estudos que investiguem o impacto do aspartame nos microbiomas e quais efeitos de saúde seriam ocasionados, se é que algum.
Muita calma
Somos confrontados, quase diariamente, com “meias-verdades” e alegações sensacionalistas. Se há uma lição que podemos tirar dos relatórios publicados pelas agências é a necessidade de mantermos os pés no chão diante informações novas e, em muitos casos, incríveis – no sentido de não merecerem credibilidade.
Mauro Proença é nutricionista
Referência
WHO. Summary of findings of the evaluation of aspartame at the International Agency for Research on Cancer (IARC) MonograpfsProgramme’s 134 Meetingth, 6-13 June 2023 and The Joint FAO/WHO EXPERT COMITTE ON FOOD ADDITIVES (JECFA) 96th meeting, 27 June-6 July 2023. Disponível em: https://cdn.who.int/media/docs/default-source/nutrition-and-food-safety/july-13-final-summary-of-findings-aspartame.pdf?sfvrsn=a531e2c1_5&download=true.