Existem histórias que são muito repetidas, por vezes requentadas. Mas algumas merecem ser recontadas.
Durante meu curso de engenharia era comum ouvir histórias inspiradoras, motivacionais. Talvez a mais recorrente era a Lei de Murphy: “Tudo que pode dar errado, vai dar errado”. A máxima, inspirada em uma falha em um teste aeroespacial, pode até parecer um simples “pessimismo”, mas é uma questão de probabilidade!
Mas a própria frase, que teria sido originalmente proferida por Edward Murphy, foi de certa forma alterada, requentada: de uma frase que remete a uma possibilidade estatística, tornou-se uma simplificação comumente vista através de um viés de negatividade.
Mas a positividade também gerou seu viés particular, o de sobrevivência. Abraham Wald não era um militar envolvido com uma questão estatística, como Edward Murphy; mas era um estatístico envolvido com uma questão militar. Nascido na região do Império Austro-Húngaro, o matemático judeu precisou fugir para os Estados Unidos durante a ascensão nazista na Europa – atuando durante a Segunda Guerra no Grupo de Pesquisa Estatística de Columbia University.
Ao avaliar as perfurações de tiros nos aviões aliados que regressavam das campanhas de bombardeio, Wald percebeu que a blindagem não deveria ser concentrada nas partes que haviam sido mais atingidas, mas, estrategicamente, nas partes que haviam retornado intactas, como o motor e a cabine. Os aviões avaliados, afinal, eram os sobreviventes: se nenhum dos danos que tinham sofrido os havia derrubado, então provavelmente suas áreas realmente vitais eram aquelas que não tinham sido atingidas.
O desafio imposto pelo viés de sobrevivência é de não focar apenas em uma parcela em destaque, mas olhar o todo: construções antigas parecem mais resistentes pois não estamos vendo as que ruíram. A ideia de que é possível tirar conclusões sólidas analisando apenas casos de sucesso – e não a totalidade da evidência – segue assombrando a Humanidade, e induzindo erros em áreas que vão do gerenciamento de negócios à saúde.
A guerra movimentou a ciência e a estatística. E em alguns casos não havia dados para avaliar. Era necessário prever. O artigo “An Experimental Application of the Delphi Method to the Use of Experts” foi escrito por Norman Dalkey e Olaf Helmer em 1962, parte do Projeto RAND: "uma organização formada imediatamente após a Segunda Guerra Mundial para conectar o planejamento militar com decisões de pesquisa e desenvolvimento".
O relatório era uma versão resumida e revisada de um memorando anterior "desconfidencializado", que poderia “ser de interesse geral no amplo campo da pesquisa operacional”. O material apresentava o “Método Delphi” – uma referência ao Oráculo de Delfos, o templo grego onde se buscavam respostas e previsões – “concebido para obter o consenso de opinião mais confiável de um grupo de especialistas” sobre “eventos incertos”, por meio de uma série de questionários intercalados com as estimativas dos participantes.
Em meio à Guerra Fria, o proposto método foi originalmente utilizado para fazer uma “estimativa do número total de bombas” que seria necessário para destruir plantas industriais. Ironicamente, o Método é atualmente utilizado por diversas áreas do conhecimento, como administração e educação.
Ainda durante o conflito entre EUA e União Soviética, outra pesquisa foi realizada que se tornaria posteriormente uma clássica história atemporal das salas de aula de engenharia: a caneta da Nasa.
Palestrantes motivacionais às vezes contam uma história apócrifa (e falsa) sobre como, durante a Corrida Espacial, “os americanos gastaram milhões desenvolvendo uma caneta que escrevia no espaço e os soviéticos usaram um simples lápis”. A moral pretendida sendo a de que existem soluções simples para problemas complexos. Às vezes até existem. Só que não nesse caso.
Lápis eram uma solução óbvia e certamente os americanos pensaram nisso. Mas o grafite é um material inflamável e condutor de eletricidade: o uso de lápis produziria partículas que, num ambiente de microgravidade, ficariam flutuando por aí, podendo penetrar painéis e equipamentos – o que representa risco em uma cápsula cheia de componentes eletrônicos e voando a milhares de quilômetros por hora. Por isso, uma caneta seria uma solução mais segura. E ela realmente foi desenvolvida: a Fisher Space Pen® foi criada para condições extremas por Paul Fisher em 1966, sendo utilizada na missão Apollo 7 em 1968 – e posteriormente também por russos e chineses.
Quando os irmãos Grimm começaram a coletar histórias nos anos 1800, eles queriam preservar a tradição oral alemã. Mas os enredos trágicos e sombrios dos contos originais – como a Chapeuzinho engolida pelo lobo que posteriormente é cortado e esfolado pelo caçador – eram “menos apropriados” para crianças do que nas versões atuais. Da mesma forma, testes militares viram explicações bem-humoradas, previsões bélicas se tornam metodologias gerenciais. Histórias requentadas – quando tiramos delas as conclusões corretas – podem ser inspiradoras.
Leonardo Capeleto é engenheiro ambiental, pós-doutorando em Geociências e divulga a ciência através de textos.