A inspiração das histórias requentadas

Artigo
13 jul 2023
avião da 2a guerra

 

Existem histórias que são muito repetidas, por vezes requentadas. Mas algumas merecem ser recontadas.

Durante meu curso de engenharia era comum ouvir histórias inspiradoras, motivacionais. Talvez a mais recorrente era a Lei de Murphy: “Tudo que pode dar errado, vai dar errado”. A máxima, inspirada em uma falha em um teste aeroespacial, pode até parecer um simples “pessimismo”, mas é uma questão de probabilidade!

Mas a própria frase, que teria sido originalmente proferida por Edward Murphy, foi de certa forma alterada, requentada: de uma frase que remete a uma possibilidade estatística, tornou-se uma simplificação comumente vista através de um viés de negatividade.

Mas a positividade também gerou seu viés particular, o de sobrevivência. Abraham Wald não era um militar envolvido com uma questão estatística, como Edward Murphy; mas era um estatístico envolvido com uma questão militar. Nascido na região do Império Austro-Húngaro, o matemático judeu precisou fugir para os Estados Unidos durante a ascensão nazista na Europa – atuando durante a Segunda Guerra no Grupo de Pesquisa Estatística de Columbia University.

Ao avaliar as perfurações de tiros nos aviões aliados que regressavam das campanhas de bombardeio, Wald percebeu que a blindagem não deveria ser concentrada nas partes que haviam sido mais atingidas, mas, estrategicamente, nas partes que haviam retornado intactas, como o motor e a cabine. Os aviões avaliados, afinal, eram os sobreviventes: se nenhum dos danos que tinham sofrido os havia derrubado, então provavelmente suas áreas realmente vitais eram aquelas que não tinham sido atingidas.

O desafio imposto pelo viés de sobrevivência é de não focar apenas em uma parcela em destaque, mas olhar o todo: construções antigas parecem mais resistentes pois não estamos vendo as que ruíram. A ideia de que é possível tirar conclusões sólidas analisando apenas casos de sucesso – e não a totalidade da evidência – segue assombrando a Humanidade, e induzindo erros em áreas que vão do gerenciamento de negócios à saúde.

A guerra movimentou a ciência e a estatística. E em alguns casos não havia dados para avaliar. Era necessário prever. O artigo “An Experimental Application of the Delphi Method to the Use of Experts” foi escrito por Norman Dalkey e Olaf Helmer em 1962, parte do Projeto RAND: "uma organização formada imediatamente após a Segunda Guerra Mundial para conectar o planejamento militar com decisões de pesquisa e desenvolvimento".

O relatório era uma versão resumida e revisada de um memorando anterior "desconfidencializado", que poderia “ser de interesse geral no amplo campo da pesquisa operacional”. O material apresentava o “Método Delphi” – uma referência ao Oráculo de Delfos, o templo grego onde se buscavam respostas e previsões – “concebido para obter o consenso de opinião mais confiável de um grupo de especialistas” sobre “eventos incertos”, por meio de uma série de questionários intercalados com as estimativas dos participantes.

Em meio à Guerra Fria, o proposto método foi originalmente utilizado para fazer uma “estimativa do número total de bombas” que seria necessário para destruir plantas industriais. Ironicamente, o Método é atualmente utilizado por diversas áreas do conhecimento, como administração e educação.

Ainda durante o conflito entre EUA e União Soviética, outra pesquisa foi realizada que se tornaria posteriormente uma clássica história atemporal das salas de aula de engenharia: a caneta da Nasa.

Palestrantes motivacionais às vezes contam uma história apócrifa (e falsa) sobre como, durante a Corrida Espacial, “os americanos gastaram milhões desenvolvendo uma caneta que escrevia no espaço e os soviéticos usaram um simples lápis”. A moral pretendida sendo a de que existem soluções simples para problemas complexos. Às vezes até existem. Só que não nesse caso.

Lápis eram uma solução óbvia e certamente os americanos pensaram nisso. Mas o grafite é um material inflamável e condutor de eletricidade: o uso de lápis produziria partículas que, num ambiente de microgravidade, ficariam flutuando por aí, podendo penetrar painéis e equipamentos – o que representa risco em uma cápsula cheia de componentes eletrônicos e voando a milhares de quilômetros por hora. Por isso, uma caneta seria uma solução mais segura. E ela realmente foi desenvolvida: a Fisher Space Pen® foi criada para condições extremas por Paul Fisher em 1966, sendo utilizada na missão Apollo 7 em 1968 – e posteriormente também por russos e chineses.

Quando os irmãos Grimm começaram a coletar histórias nos anos 1800, eles queriam preservar a tradição oral alemã. Mas os enredos trágicos e sombrios dos contos originais – como a Chapeuzinho engolida pelo lobo que posteriormente é cortado e esfolado pelo caçador – eram “menos apropriados” para crianças do que nas versões atuais. Da mesma forma, testes militares viram explicações bem-humoradas, previsões bélicas se tornam metodologias gerenciais. Histórias requentadas – quando tiramos delas as conclusões corretas – podem ser inspiradoras.

 

Leonardo Capeleto é engenheiro ambiental, pós-doutorando em Geociências e divulga a ciência através de textos.

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