Afinal, as Forças Armadas dos Estados Unidos têm guardados vestígios de tecnologia alienígena ou corpos as astronautas ETs, preservados em alguma instalação secreta? O fato, inalterado desde o início da “ufologia moderna” em 1947, é que não existe evidência física nenhuma da presença ou da passagem de alienígenas entre nós. Todos os candidatos que apareceram acabaram se revelando fraudes, pegadinhas ou mal-entendidos. Em abril deste ano, o físico Sean Kirkpatrick, atual diretor do Escritório de Resolução de Anomalias (AARO) do Departamento de Defesa dos EUA, disse o seguinte, em depoimento ao Congresso americano:
“Devo afirmar, de modo claro e que fique registrado, que nossas pesquisas no AARO não encontraram até agora nenhuma evidência digna de crédito de atividade extraterrestre, tecnologia de outro mundo ou objetos que desafiem as leis da física (...) eu recomendo a aqueles que mantêm teorias ou pontos de vista alternativos que submetam suas pesquisas a periódicos científicos de boa reputação e com revisão pelos pares”.
Só o que há de concreto a favor da existência dessas coisas para as quais, nas palavras de Kirkpatrick, não existe evidência digna de crédito são depoimentos, que se acumulam há décadas, de pessoas que teriam visto, ouvido ou tocado alguma coisa. Depoimentos que chamo de “concretos” não porque contêm informação validável ou verificável, mas porque seus autores são conhecidos e as declarações feitas estão, para o bem ou para o mal, devidamente registradas.
O problema, claro, é que, na falta de evidência corroborativa independente, é impossível distinguir depoimentos altamente implausíveis de alucinações ou peças de pura ficção. Não se pode esperar que as pessoas acreditem na existência de unicórnios azuis em Marte se nenhum unicórnio aparecer nas imagens produzidas pelas sondas que temos por lá.
Essa mera questão de bom senso, no entanto, não impediu que mais uma onda de depoimentos, sem base em evidência, sobre extraterrestres tomasse conta da mídia ao longo da semana. Primeiro no site The Debrief, depois no canal News Nation, em seguida no jornal francês Le Parisien, com repercussões em The Guardian, VICE, Estadão e O Globo (entre outros), o mundo parou para ouvir as “revelações” do ex-funcionário federal americano David Grusch sobre a suposta existência de programas secretos dedicados a fazer “engenharia reversa” em tecnologias de origem “não humana” capturadas em vários pontos da Terra desde, pelo menos, a década anterior à Segunda Guerra Mundial.
Escrevendo para The Debrief, os jornalistas Leslie Kean e Ralph Blumenthal apresentam Grusch como um “whistleblower” (literalmente, “soprador de apito”), ou denunciante, uma pessoa que decide vir a público expor comportamento ilícito, antiético ou criminoso da organização da qual faz parte. O apito que sopra, no entanto, é de segunda mão: na entrevista a Le Parisien, por exemplo, Grusch diz ter sido “informado” (por terceiros) da existência dos vestígios extraterrestres.
Em The Debrief, lemos que ele declarou o seguinte: “Pessoas envolvidas nesses programas de UAP me procuraram, em minha função oficial, e revelaram suas preocupações a respeito de inúmeros delitos, como contratações irregulares contra a lei e outros crimes, além da supressão de informações em indústrias qualificadas e na academia”. “UAP” é uma sigla em inglês que vem sendo usada em substituição a UFO, ou óvni, e que pode significar “Fenômeno Aéreo Não-Identificado” ou “Fenômeno Anômalo Inexplicado”.
À News Nation, ele disse que “há diversos altos funcionários de Inteligência, tanto na ativa quanto ex-funcionários, que me procuraram – muitos deles eu conheci durante toda minha carreira – e que me fizeram confidências”.
Escrevendo em seu canal no Substack, o “ecomodernista” Michael Shellenberger afirma ter tido acesso a algumas das fontes originais de Grusch, que lhe disseram haver mais de uma dezena de naves espaciais alienígenas em poder do governo dos Estados Unidos.
Pode ser injusto acusar Grusch de estar apenas fazendo fofoca: ele afirma ter apresentado documentos relevantes sobre o que diz às autoridades competentes, a fim de caracterizar formalmente seu papel de “whistleblower”, uma categoria bem definida dentro do sistema judiciário americano. Mas até que esses documentos sejam submetidos a escrutínio público ou evidências físicas sejam avaliadas por cientistas independentes, só o que temos são, exatamente, fofocas. Talvez por isso Kean e Blumenthal não tenham conseguido emplacar a história de Grusch no New York Times, jornal que no passado abriu generosamente as portas para outras tiradas ufológicas da dupla.
Escrevendo no Twitter, o ufólogo cético Mick West chamou atenção para o fato de que o governo americano mantém, há décadas, um serviço para realizar, de modo secreto, a engenharia reversa de tecnologia aeroespacial estrangeira, o Centro Nacional de Inteligência Aeroespacial, e que talvez alguns funcionários ligados a essa atividade poderiam ter, ao longo dos anos, construído uma mitologia em torno de supostos “vestígios extraterrestres”.
Qualquer que seja a causa profunda das alegações de Grusch e de suas supostas “fontes”, na falta de evidência independente somos obrigados a sopesar, contra falas e depoimentos, a fantástica dimensão do que está sendo sugerido: que não só existe vida inteligente em outros mundos, como essa vida conseguiu resolver o problema das viagens interestelares; que, tendo-o resolvido, decidiu, entre os bilhões de planetas da Via Láctea, vir exatamente até aqui; e que, a despeito de possuir uma tecnologia maravilhosa, capaz de desafiar as leis da física como as conhecemos, perdeu mais de uma dezena de seus veículos entre nós. E para completar, que que nenhum ser humano, fora do governo das grandes potências, jamais notou nada disso ou, tendo notado, jamais conseguiu obter ou produzir prova física.
É realmente mais fácil acreditar nisso tudo do que na possibilidade de algumas pessoas estarem enganadas e os governos, só para variar, estarem falando a verdade?
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)