Uso óculos. Minha miopia faz com que eu enxergue de perto melhor do que o normal – posso trazer objetos para mais perto dos olhos do que alguém sem miopia e manter o foco –, mas vejo pior a distância. Usar meus óculos me permite enxergar muito mais claramente quando estou fora de casa e preciso ver objetos distantes. No entanto, mesmo se minha visão fosse perfeita de acordo com os padrões humanos, ela ainda teria limitações. Enxergamos apenas uma faixa limitada de cores. Existem animais que podem perceber a luz ultravioleta ou infravermelha, mas nós não podemos.
O espectro eletromagnético, dentro do qual se encontra a luz visível, é muito mais amplo do que podemos perceber com os olhos. Inclui, por exemplo, raios-X e ondas de rádio. Naturalmente, não temos consciência da maior parte desse espectro, mas podemos "enxergar" essas radiações usando equipamentos e tecnologias que ampliam significativamente nossas capacidades naturais. Além disso, podemos usar microscópios para ver objetos muito pequenos, e telescópios cada vez mais poderosos para observar objetos distantes. Embora minha miopia não me cause constrangimentos e eu possa usar meus óculos em público sem problemas, gostaria de ter uma visão melhor. No entanto, aceito minhas limitações, assim como aceitamos naturalmente que existem ferramentas que melhoram nossa visão. Temos ferramentas até para ver e conversar com pessoas do outro lado do planeta usando telas.
Essa mesma história se repete em outras áreas da vida. Temos meios de transporte, comunicação, tecnologias médicas e agrícolas, além de dispositivos que nos protegem dos elementos. Em teoria, poderíamos viver nas florestas usando apenas nossas habilidades naturais, mas graças às máquinas, ferramentas e métodos que desenvolvemos, somos capazes de fazer muito mais e com maior eficiência do que nossos corpos poderiam sem nenhuma ajuda. Em todos esses casos, aprendemos a usar e confiar em nossas ferramentas, não apenas para melhorar a vida, mas também para ultrapassar as capacidades humanas individuais.
Mas quando se trata de escolher ideias, raciocinar e entender o mundo, nosso comportamento em relação às ferramentas disponíveis não é tão aberto. Muitos de nós aceitam, na maior parte do tempo, que o conhecimento gerado pela ciência é a fonte mais confiável. Mas, enquanto ninguém em sã consciência aceitaria participar de uma corrida a pé contra um carro de Fórmula 1, frequentemente vemos pessoas fazendo o equivalente disso no mundo das ideias: acreditando que uma opinião desinformada pode “ganhar a corrida” contra fatos estabelecidos pelos melhores e mais confiáveis testes e teorias desenvolvidos por especialistas – às vezes, milhares deles - trabalhando por anos ou décadas.
Há pessoas que podem ser curiosas e inteligentes, mas que não tiveram acesso ao conhecimento mais completo, nem foram apresentadas às estruturas de raciocínio desenvolvidas pela Humanidade para reduzir o risco de chegar a conclusões erradas – e nem às observações bem conduzidas e analisadas de acordo com essas estruturas. E, por isso, essas pessoas podem acreditar em coisas absurdas, como a Terra ser plana ou que vacinas bem testadas são mais perigosas do que as doenças que previnem.
Em meu livro mais recente, "Nossas Falhas de Raciocínio: Ferramentas para Pensar Melhor", apresento o que sabemos sobre como pensamos e explico por que não devemos confiar apenas em nossas próprias conclusões. Em especial, destaco que quando nos apegamos a uma ideia específica, devemos desconfiar ainda mais de nossas conclusões. Discuto como cometemos erros em nosso pensamento e explico por que esses erros ocorrem, desde buscar respostas rápidas e eficientes, mas não necessariamente corretas, até a influência dos grupos aos quais pertencemos em nossas crenças. O modo natural de pensar do ser humano parece não ter evoluído para buscar respostas corretas, mas sim para ajudar o indivíduo a encaixar-se num círculo social e a progredir dentro desse círculo. Chegar à conclusão correta, especialmente em questões que não representam uma ameaça direta à sobrevivência, pode ser irrelevante nesse contexto.
A ciência, por sua vez, ajustou suas técnicas ao longo dos séculos para identificar e corrigir erros, tendo a descrição precisa da realidade como objetivo. Essa meta pode ser apenas um ideal que talvez não seja perseguido por todos os cientistas, mas, em última análise, é o critério de longo prazo pelo qual as ideias científicas são selecionadas ou avaliadas.
Temos evidências de que mesmo uma maior capacidade intelectual não protege contra os efeitos nocivos do modo como nossos cérebros evoluíram. Há evidências de que pessoas com maior habilidade analítica têm mais facilidade em manipular a interpretação de dados para apoiar suas próprias opiniões, independentemente do que os dados realmente indiquem, quando se trata de problemas sobre os quais as pessoas têm opiniões fortes. É por isso que a análise de dados é algo que realizamos usando ferramentas estatísticas. Essas ferramentas foram e continuam sendo discutidas, aprimoradas e corrigidas para fornecer a análise mais rigorosa possível. Ao adotar métodos e cálculos que podem ser repetidos e conferidos por qualquer pessoa, torna-se muito mais difícil escolher como interpretar os resultados. A existência dessas ferramentas impede que cada indivíduo distorça o que observa para se beneficiar.
Portanto, para entender e discutir ciência, precisamos aprender suas ferramentas. Fórmulas matemáticas, por exemplo, permitem verificações independentes de resultados. É necessário aprender a matemática relevante, claro, mas, uma vez feito isso, é possível testar resultados e detectar erros que podem ser rastreados, encontrados e corrigidos.
A lógica tem a mesma função. Ainda usamos o raciocínio humano “natural” em várias situações: ao criar novas teorias, por exemplo, vale tudo. Mas ao determinar quais as consequências que essas teorias teriam se fossem verdadeiras, e ao verificar se essas consequências podem ser encontradas no mundo real, temos um processo ordenado que, em princípio, pode ser aplicado por qualquer pessoa, para descobrir se foram cometidos erros. É verdade que falhas ocorrem. Mas com a busca constante por erros, elas são identificadas rapidamente.
Ao contrário de várias áreas do conhecimento humano, onde se espera que honremos as ideias e ensinamentos de nossos mestres, na ciência esperamos descobrir em que ponto nossos ídolos falharam. Diferentemente do que os humanos geralmente fazem, a estrutura da ciência permite e incentiva correções. Os cientistas ainda são humanos, é claro, e estão sujeitos a falhas e pontos cegos. Assim como todos nós, precisam de ferramentas para não serem levados pela tendência de acreditar cegamente e defender suas ideias mais queridas.
É essa a história que conto, com muito mais detalhes, em meu livro. Temos cérebros eficientes. Mas são eficientes na defesa de nossas ideias, estejam elas certas ou erradas. No entanto, queremos saber o que é certo. Para alcançar esse objetivo, criamos técnicas e estruturas sociais que continuamos a aprimorar. Na verdade, a comparação adequada talvez não seja entre nossa capacidade de correr e a de um carro de Fórmula 1. Ao confiar apenas em nossas formas naturais de raciocínio, às vezes estamos escolhendo entre um avião e usar nossas habilidades naturais de voo, o que não faz sentido. A natureza não nos fez para voar mas, como espécie, já inventamos tecnologias para isso. O mesmo vale na busca pelas melhores respostas.
Nota para os interessados: haverá uma tarde de autógrafos na Livraria Martins Fontes, na Av. Paulista, 509, São Paulo, SP, dia 18 de junho, das 15 às 18 horas. Estão todos convidados para conhecer o livro e eu, o autor.
André C.R. Martins é cientista e professor na EACH - USP