“Primeiro você faz uma suposição. Em seguida, calculamos as consequências da suposição e as comparamos com os experimentos. Se a sua hipótese discorda da experiência, ela está errada. Não faz diferença o quanto o seu palpite é bonito, o quanto você é inteligente ou qual é o seu nome – se discordar do experimento, está errado”. Este trecho, em tradução livre, foi extraído de uma aula sobre o método científico, dada em 1964, na Universidade de Cornell, por Richard Feynman, físico norte-americano ganhador do Prêmio Nobel de Física em 1965.
Na sequência da aula, Feynman complementa que a comparação das hipóteses com os experimentos deve ser feita de maneira adequada – coisa que nem sempre acontece. A respeito disso, é bem provável que você já tenha ouvido falar dos raios X, gama e laser, mas nunca tenha se deparado com os raios N. Uma explicação óbvia para isso é que os raios N não existem. A história da “descoberta” desses raios envolve, porém, ensinamentos importantes relacionados ao método científico.
As publicações do início do século 20, reportando os experimentos que “detectaram” essa radiação, são bastante ilustrativas do efeito deletério que a “ciência baseada na impressão pessoal” pode ter – algo bem comum nos relatos de cura envolvendo tratamentos esotéricos, por exemplo. Um relato completo dos eventos relacionados aos raios N pode ser encontrado no livro “Os ‘Raios N’ de René Blondlot: uma anomalia na História da Física”, de Roberto de Andrade Martins, obra de onde veio a maior parte das informações a seguir.
No fim do século 19, o físico alemão Wilhelm Conrad Röntgen tinha recém-descoberto os raios X. Nessa mesma época, René Blondlot, físico francês, se interessou pelo estudo de algumas propriedades dos raios X e mediu pela primeira vez a velocidade dessa radiação – em 1893, ele havia ganhado o Prêmio Gaston Planté, da Academia de Ciências de Paris, pela medida da velocidade das ondas de Hertz. Blondlot não era, portanto, alguém desconhecido no meio acadêmico, mas um cientista do seu tempo e utilizava técnicas experimentais que, embora comuns naquele período, são inapropriadas para a avaliação objetiva de resultados científicos.
Em 1903, Blondlot anunciou ter descoberto uma nova radiação. O nome escolhido, raios N, foi dado em homenagem à sua cidade, Nancy, na França. O método utilizado para atestar a existência do novo fenômeno se baseava na análise visual do brilho de uma faísca – dependendo da posição de um dos componentes do equipamento, Blondlot afirmava conseguir identificar uma mudança na luminosidade da centelha. Em dezembro de 1903, a reconhecida revista Nature publicou, pela primeira vez, uma notícia sobre os raios N.
Vários cientistas, entretanto, relataram que não conseguiram reproduzir os resultados de Blondlot. Diga-se de passagem que a reprodutibilidade dos resultados é um dos pilares do método científico, e a ausência de constatação de resultados semelhantes sob condições análogas já seria uma sinalização de que algo não ia bem. Associado a isto, houve ainda uma declaração de Blondlot, feita em uma apresentação à Academia, em novembro de 1903: “Farei aqui o seguinte comentário geral relativo à observação dos raios N. A capacidade de perceber fracas variações de intensidade luminosa varia muito de uma pessoa a outra: certas pessoas veem na primeira tentativa e sem nenhuma dificuldade o fortalecimento que os raios N produzem no brilho de uma pequena fonte luminosa; para outros, esses fenômenos estão quase no limite do que podem distinguir, e apenas após um certo tempo de exercício é que conseguem captá-los correntemente e observá-los com toda segurança”. Esta declaração é muito próxima da relativização social pós-moderna da realidade objetiva.
Não é muito difícil imaginar os inúmeros problemas que podem ocorrer quando se vincula uma impressão pessoal, completamente subjetiva, à confirmação de um fenômeno empírico – a própria declaração de Blondlot sugere que ele estaria aberto a identificar um unicórnio colorido na faísca se esta fosse a condição necessária para afirmar que os raios N existem. É importante, porém, que se mencione que o procedimento subjetivo não era algo completamente estapafúrdio para a época, e técnicas semelhantes já tinham sido utilizadas por físicos como Röntgen, Hertz e Becquerel.
Até o fim de 1903, René Blondlot foi praticamente uma voz solitária na defesa da existência dos raios N. Nesse período, porém, Blondlot convidou o professor de biofísica da faculdade de medicina de Nancy Augustin Charpentier para começar a estudar o fenômeno conjuntamente. Depois de cerca de um mês, Charpentier relatou à Academia de Ciências de Paris que o corpo humano também emitia os raios N e que, curiosamente, a emissão seria maior no caso dos músculos contraídos e do sistema nervoso.
Apesar dos contornos esotéricos que começam a se delinear com o relato de Charpentier, a partir de 1904 vários pesquisadores franceses passam a publicar trabalhos sobre os raios N, incluindo Jean Becquerel, filho de Henri Becquerel, um dos responsáveis pelo descobrimento da radioatividade. A tradição familiar, neste caso, só reforça o fato de que títulos, prêmios e genealogia não impedem ninguém de falar besteira: o terceiro artigo de Becquerel “detectou” um aumento de emissão de radiação de cérebros de cães submetidos a vapores de clorofórmio, éter, ou injeções de morfina. Jean ainda notou que, após a diminuição da intensidade dos raios N, surgia uma outra radiação, que chamou de raios N1.
O bizarro experimento canino utilizado para estudar a emissão dos raios N não é muito distante de se fazer nos dias atuais uma poção homeopática com fezes de um cachorro mestiço alimentado com rúmen de vaca. Diferente, porém, de alguns médicos que, depois de 200 anos da sua criação, ainda levam a sério a homeopatia, a comunidade de física não demorou nem cinco anos para derrubar algo que não fazia sentido. Em 1904, o físico Robert William Wood, da Universidade Johns Hopkins, foi convidado a visitar o laboratório de Blondlot.
Durante a visita, Blondlot e os seus assistentes prepararam uma série de demonstrações para Wood. Uma delas envolvia o espalhamento da radiação N por um prisma de alumínio e a observação do aumento da luminosidade de alguns pontos em uma fita fosforescente. Como o experimento era feito em uma sala escura, Wood, sem que ninguém percebesse, removeu o prisma do equipamento e pediu para que o experimento fosse repetido. Mesmo com a remoção do objeto, Blondlot e seus assistentes continuaram afirmando que observavam o mesmo resultado, como se o prisma estivesse presente.
Artigo de Wood, publicado na Nature em setembro de 1904, deu um fim aos raios N. Uma declaração de Robert Wood dizia: “Sou obrigado a confessar que deixei o laboratório com um claro sentimento de depressão, não apenas tendo fracassado em ver um único experimento de maneira convincente, mas com a convicção quase segura de que todas as mudanças de luminosidade ou de nitidez das faíscas e telas fosforescentes são puramente imaginárias”. Poucos meses após a publicação na Nature, o artigo de Wood foi traduzido para o francês e publicado na Revue Scientifique. A publicação na revista francesa foi acompanhada de uma bizarra votação pública sobre o que as pessoas achavam sobre os raios N, como se fatos científicos fossem decididos por aclamação (não são).
O episódio curioso envolvendo a questão dos raios N guarda importantes ensinamentos acerca do método científico. Conforme mencionou Feynman, na sua aula em Cornell, se a sua suposição não está de acordo com o experimento, ela está errada e, portanto, deve ser abandonada – essa é a postura correta do cientista.
Infelizmente, mais de 100 anos depois dos raios N, o ser humano parece ter aprendido muito pouco com os erros do passado. Livros relatando “experimentos” que detectaram que a água se emociona com orações ainda atraem milhões de leitores. Memória da água é ensinada em universidades renomadas, em cursos que falam de homeopatia, medicina quântica e outras fantasias. Fatos científicos são colocados por alguns veículos de imprensa como questão opinião.
Embora seja importante lutar e confrontar a desinformação, é difícil vislumbrar uma grande mudança na melhoria do pensamento crítico da sociedade em geral. Todavia, se existe algo bom no pessimismo é que ele parece otimizar a alegria: a felicidade acontece no erro (a sociedade melhora) ou no acerto (eu sabia do que estava falando) da previsão. A ver.
Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência