Como sugestão de diversos leitores, estamos aqui para entendermos se o colostro – na forma de suplementação – traz benefícios aos que optarem por utilizá-lo. Então, antes de sair tomando a secreção pré-lactação de qualquer mamífero, sugiro que leia o artigo na íntegra.
Afinal, o que é colostro?
Antes de tudo, precisamos deixar claro, todas as fêmeas da classe dos mamíferos produzem colostro após o parto. Essa é uma substância espessa, de coloração amarela e com uma composição nutricional diferente do leite materno.
Apresenta diversas funções na vida do “filhote”, como auxiliar no desenvolvimento do sistema imune, servir como fonte energética para o crescimento, maturação do sistema gastrointestinal e reparação de diversos tecidos. Esses benefícios vêm da alta concentração de imunoglobulinas (os famosos anticorpos), proteínas e enzimas com atividade antimicrobiana, fatores de crescimento, nucleotídeos, vitaminas, minerais, proteínas e hormônios.
Se parássemos aqui, poderíamos concluir que o colostro apresenta inúmeros benefícios para a saúde. Entretanto – e esta é a parte interessante – estamos analisando um cenário de um recém-nascido que PRECISA desse alimento para conseguir se desenvolver e, por conta disso, é necessário pensarmos em uma variável nevrálgica para a construção de um pensamento crítico.
O público-alvo do colostro, pelo menos na forma de suplemento, não são recém-nascidos, mas adultos. Ou seja, qualquer salto lógico que tente traçar um paralelo como “é bom para um recém-nascido sem imunidade, logo é bom para um adulto que quer fortalecê-la” será falso.
Tendo isso em mente, podemos nos concentrar o quanto as pesquisas científicas sobre o tema estão avançadas, e se há, de fato, um motivo para a utilização do colostro por adultos desmamados. Spoiler: estamos ainda muito longe de uma conclusão fidedigna e talvez sim, mas somente para nichos muito específicos.
O que se diz?
Obviamente, não demorou para os apóstolos da medicina integrativa e, lamentavelmente, alguns nutricionistas funcionais postarem alegações maravilhosas sobre a utilização do colostro. Entre elas, temos o ganho de massa muscular, a melhora na integridade intestinal, o aumento da imunidade e o amor verdadeiro – ok, talvez esse último não.
Um dos proponentes mais animados com relação ao mundo dos suplementos e, que apesar das inverdades, continua com o CRM ativo, diz em vídeo:
“...Temos disponível o colostro bovino, que é muito semelhante ao colostro humano, ele é rico em imunoglobulinas, fortalecendo nosso sistema imune. Ele apresenta uma glicoproteína que estimula uma célula chamada Natural Killer – células que matam o inimigo, como um vírus, bactéria, fungo. Ele também regenera células B – também são responsáveis pela defesa do nosso corpo -, aumenta a quantidade de linfócitos T que é muito importante para o sistema imune. É rico em lactoferrina, uma outra substância que aumenta muito a imunidade, apresenta citocinas, como IL-1 e IL-6 que vão combater vírus, bactérias e também apresenta interferon, ou seja, um exército a favor do nosso corpo”.
Embora o vídeo contenha algumas afirmações verdadeiras, a conclusão que tira delas não procede. A priori, uma declaração como “se usar colostro, que é rico em compostos para a imunidade, minha imunidade aumentará” pode soar correta, mas está errada. O sistema imune é bem mais complicado do que isso.
Pior ainda, estas “conclusões” estão presentes em alguns – peculiares – artigos científicos, caso do trabalho de revisão intitulado “Bovine colostrum: An emerging nutraceutical”, escrito por THARAPPEL, L. et al. (2015). Os autores comentam a importância da substância para os recém-nascidos, sua segurança para a maior parte das pessoas (não sendo indicado para quem sofre com alergia ao leite e produtos derivados do leite), dão palpites sobre como deve ser sua produção – orgânica, livre de hormônios, aditivos químicos, pesticidas, herbicidas e antibióticos – e processamento, com temperatura e pressão não elevadas, evitando a perda de atividade biológica.
Os pesquisadores explicam ainda os componentes presentes no colostro bovino, dividindo-os em três categorias: componentes nutricionais, fatores de imunidade e fatores de crescimento. Depois, sintetizam em um quadro todos os componentes do colostro bovino e suas alegadas finalidades terapêuticas.
O artigo oferece um compilado altamente especulativo de como o colostro poderia, talvez, auxiliar no tratamento de diversas patologias. Por exemplo, os autores extrapolam achados de estudos em animais e in vitro para defender a utilização do colostro bovino em indivíduos com problemas cardiovasculares, acometidos por doenças virais e bacterianas, HIV positivos e, claro, que estão tentando emagrecer.
Numa alegação tão esdrúxula quanto as demais, os pesquisadores salientam que o colostro apresenta propriedades anticancerígenas – alegação baseada em dois estudos impossíveis de serem encontrados na internet e em um artigo estranho.
Ao final do trabalho, os autores reconhecem a pequena quantidade de estudos realizados em humanos e animais e reforçam a necessidade de mais pesquisas duplo-cegas, controladas por placebo e bem estruturadas.
Caso você seja um leitor assíduo da Revista Questão de Ciência, entende por que prezamos tanto os ensaios clínicos bem elaborados. Contudo, se este é o seu primeiro texto, sintetizarei um dos momentos mais icônicos – em minha opinião – da história desse método:
“Will Silverman, pediatra e entusiasta por ensaios clínicos, enfrentou uma difícil tarefa no ano de 1949. Durante seu trabalho no Babies Hospital, um exame de oftalmoscopia (utilização de um oftalmoscópio para a avaliação da retina e outras estruturas oculares) verificou a presença da retinopatia da prematuridade em um paciente, uma doença perniciosa que ocorre por má vascularização da retina de recém-nascidos prematuros, podendo levar à cegueira. Por falta de opções terapêuticas, Will e seus colegas depositaram suas esperanças em uma possível solução, o hormônio ACTH. A medida foi um sucesso, a desordem ocular parou e, com o tempo, regrediu, salvando a visão da criança.
“Encorajados pelo desfecho positivo, os médicos administraram o ACTH para outras 31 crianças com sinais primários da doença, destas, 25 mantiveram suas visões.
“Apesar dos resultados apontarem a eficácia do ACTH, Silverman e Day decidiram passá-lo pelo escrutínio científico, realizando um ensaio clínico controlado e randomizado em neonatos. Os novos resultados foram acachapantes. Um terço dos bebês tratados ficou cego enquanto, no grupo controle, somente um quinto apresentou este desfecho.”
Moral da história: sem testes controlados, você pode estar ativamente matando (ou, no caso, causando cegueira) enquanto crê, na maior boa-fé, que está salvando vidas (ou olhos).
Mas o colostro funciona?
A despeito de haver revisões sistemáticas com meta-análise – trataremos abaixo – que sugerem um suposto benefício para indivíduos que utilizaram o colostro, a maioria destes estudos é de baixa qualidade, com problemas metodológicos crassos e um número medíocre de voluntários envolvidos.
Primeiro, temos a revisão sistemática de GUBERTI, M. et al. (2021). Os autores investigaram a presença de evidências que amparam a administração de colostro bovino (BC) em condições clínicas e não clínicas.
Ao todo, foram incluídos 28 artigos, sendo três referentes à utilização do BC na forma de creme para diversas condições vaginais, 24 a respeito da eficácia do suplemento de BC em diversas populações (incluindo enfermos, atletas, crianças e indivíduos saudáveis) e uma revisão sistemática.
Como resultado, os pesquisadores observaram que aplicações tópicas do creme composto por BC foi efetivo no tratamento de secura vaginal. Neste estudo, 95 mulheres foram randomizadas em dois grupos, onde um recebeu a intervenção e o outro, não. A pesquisa perdurou por 23 dias. Ao final, o grupo tratado apresentou uma diminuição de 92,7% dos sintomas vaginais em comparação ao grupo controle, que pontuou 63,6%. Vale destacar que foi considerado “sucesso” clínico a redução de um ponto, em uma escala de classificação verbal de cinco, com relação ao desconforto vaginal. O desfecho subjetivo (escala verbal) e a ausência de controle por placebo tornam duvidosa qualquer conclusão prática que se tente tirar desse resultado.
Agora, quando se avalia a administração sob na forma de suplemento, temos alguns pontos interessantes.
Ao ser aplicado em atletas – lembrando que esta categoria apresenta uma imunidade “enfraquecida”, em decorrência de treinos extenuantes –, alguns estudos encontraram resultados positivos, como redução na infecção do trato respiratório superior e limitação da quantidade de bactérias salivares. Entretanto, como apontado pelos autores, os resultados não são tão “claros” como aparentam, já que uma parcela considerável destas pesquisas apresenta vieses preocupantes, como o viés de notificação: basicamente, os pesquisadores tendem a suprimir dados que poderiam dificultar a publicação do estudo.
Resultados semelhantes foram encontrados com relação à permeabilidade intestinal. Neste caso, a suplementação de colostro reduziu a permeabilidade em atletas, mas novamente, encontramos os mesmos problemas: vieses e número baixíssimo de voluntários envolvidos.
Não foram encontrados efeitos benéficos do BC com relação à função cognitiva e a permeabilidade da barreira hematoencefálica (que impede a passagem de certas substâncias presentes no sangue para o cérebro).
Por fim, encontraram-se duas possíveis aplicações do colostro na área clínica.
Um par de estudos duplo-cegos randomizados, com grupo controle, observaram que a suplementação de BC foi eficaz na redução do quadro de severidade de infecções no trato respiratório superior de pacientes deficientes em imunoglobulinas A, um tipo de anticorpo. Além disso, o suplemento reduziu a frequência e a severidade de diarreia e vômitos em crianças com infecções gastrointestinais. Mas os autores fazem a ressalva de que, devido à heterogeneidade dos resultados em populações fragilizadas, os achados devem ser utilizados de maneira criteriosa, levando em consideração a condição clínica e a idade do paciente.
Para analisar os efeitos do BC na permeabilidade gastrointestinal, foi realizado um estudo duplo-cego, randomizado com grupo controle em pacientes em unidades de tratamento intensivo (UTI). Foram vistos sinais indiretos de redução na permeabilidade intestinal. Resultados positivos também foram observados com relação ao tempo de estadia na UTI e diarreia. Entretanto, ressalta-se que o estudo incluiu um total de apenas 70 pessoas.
Os autores da revisão concluem: ”O colostro bovino, aparentemente, fortalece o sistema imune e modula respostas locais e sistêmicas tanto em condições clínicas como não clínicas. Contudo, a heterogeneidade dos estudos em relação ao tipo de população, tamanho da amostra, intervenção – quantidade da dose ou forma de administração – protocolos de controle e desfechos não permitiram a realização de uma meta-análise. Além disso, o risco vieses e a utilização excessiva de desfechos substitutos não fornecem fortes evidências da utilização em nenhuma das situações”.
Saindo de 2021 e adentrando em 2022, temos a pesquisa feita por HATAJA, M. et al. (2022). Aqui, os autores realizaram uma revisão sistemática com meta-análise e meta-regressão (análise que avalia o impacto de outras variáveis, além do tratamento estudado, no resultado). Foram incluídos oito estudos, envolvendo 476 participantes randomizados (o triplo do número de voluntários na revisão sistemática de 2015). Dentre as características anotadas das pesquisas incluídas, temos o tempo de duração (entre 8 e 14 semanas), o tipo de participantes (fisicamente ativos) e a dose diária de suplementação (de 0,4g até 60g). Os autores destacam que três dos oito artigos apresentaram alto risco de viés.
Com relação aos resultados, os pesquisadores veem dados favoráveis à utilização do colostro para diminuir o risco de infecções no trato respiratório superior. E, ao utilizar as técnicas estatísticas na meta-regressão, determinaram que o uso do BC por períodos mais curtos apresentou melhor efeito de proteção.
Há inúmeras limitações na revisão, porém. Entre elas, a baixa quantidade de estudos que focam, primeiramente, em desfechos epidemiológicos e, também, a falta de homogeneidade com relação ao período da pesquisa e o local (um dos estudos foi realizado no Reino Unido no período de inverno enquanto outro foi feito na Nova Zelândia, durante o verão), o que pode interferir no desenvolvimento das infecções, visto que são predominantes nos períodos de outono e inverno.
Esta falta de homogeneidade também é vista em relação à concentração das doses (variando de 42mg até 60g, sendo o mais usual 10g) e com as características dos participantes, dado que diferentes estilos de vida, hábitos, idades e ocupações podem influenciar no desenvolvimento das infecções.
Por fim, e tão importante quanto o resto, os autores alertam para o risco da utilização concomitante do colostro e de medicamentos para a redução dos sintomas, ocasionando falso positivo no desfecho investigado. Uma pessoa pode usar descongestionante nasal, tomar colostro e achar que o nariz desentupiu por causa do colostro.
Tomar ou não tomar
Ainda que as evidências sejam, na superfície, animadoras, é necessário manter os pés no chão. Há uma infinidade de substâncias/práticas que aparentam ser eficazes, mas quando submetidas a testes mais rigorosos, falham.
Espero que não seja o caso do colostro. Contudo, enquanto não tivermos ensaios clínicos melhor estruturados – e depois revisados por pares, replicados etc.–, comprar e utilizar o suplemento é um tiro, bem caro, no escuro.
Claro, alguém pode contra-argumentar: “com base nos estudos, o suplemento se demonstrou seguro, talvez seja eficaz e pode trazer um benefício extra do efeito placebo. Isso não seria o suficiente para utilizá-lo?”
Por partilhar da mesma opinião de Edzard Ernst e Simon Sight, presente no livro “Truque ou tratamento”, sintetizarei uma passagem sobre o efeito placebo.
Ao prescrever um tratamento baseado em evidências científicas sólidas, espera-se um benefício bioquímico e fisiológico. Além disso, este será reforçado pelo efeito placebo, visto que existe uma expectativa do paciente que o tratamento será eficaz. Ou seja, é possível evocar o efeito placebo sem precisar, necessariamente, administrar um placebo.
Então, antes de gastar uma dinheirama em um suplemento que talvez você não necessite, espere resultados mais fidedignos.
Mauro Proença é nutricionista
Referências
- SILVA, E. Bovine Colostrum: Benefits of its use in human food. Food Sci. Technol 39 (suppl 2) Dec 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cta/a/fhDSsmv75RCXjQw3CWSFvjB/.
- THERAPPEL, L. et al. Bovine Colostrum: an emerging nutraceutical. J Complement Integr Med. 2015 Sep;12(3):175-85. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/25781716/.
- WATTS, W. Willian Silverman. BMJ. 2005 Jan 29; 330(7485): 257. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC546086/
- GUBERTI, M. et al. Bovine Colostrum Applications in Sick and Healthy People: A Systematic Review. Nutriens 2021, 13(7), 2194. Disponível em: https://www.mdpi.com/2072-6643/13/7/2194
- HATASA, M. et al. Bovine colostrum supplementation in prevention of upper respiratory tract infections – Systematic review, meta-analysis and meta-regression of randomized controlled trials. Journal of Functional Foods. Volume 99, December 2022, 105316. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1756464622003863
- SINGH, S e ERNST, E. Truque ou Tratamento (Verdades e Mentiras Sobre a Medicina Alternativa). Ed: Record. 2013