Ação de ativistas paralisa pesquisa em animais

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5 mai 2023
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Vidros de laboratório

Um dispositivo que promete melhorar a qualidade de vida de milhares de pessoas colostomizadas em todo mundo está com seu desenvolvimento paralisado pela ação de grupos de defesa dos direitos dos animais. Idealizado pelo médico e pesquisador brasileiro Josuê Bruginski de Paula, o esfíncter artificial seria implantado em seis cadelas, na última fase de testes pré-clínicos que devem anteceder ensaios com seres humanos, mas os procedimentos, originalmente marcados para o fim de semana do recente feriado de Tiradentes no laboratório de técnicas operatórias e cirurgias experimentais da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), no Paraná, foram cancelados depois de denúncias de maus-tratos aos animais e irregularidades no projeto, o que Bruginski nega.

A polêmica começou após funcionários da própria UEPG e integrantes do Grupo Fauna, uma organização de defesa dos direitos animais de Ponta Grossa, informarem o Blog de Mareli Martins, uma jornalista local, da iminência da realização das cirurgias nas cadelas, da raça beagle. De início, a instituição negou que o experimento seria conduzido nas suas dependências, chegando a publicar uma nota de esclarecimento em que afirma que o assunto ainda era objeto de negociações, mas que "a reitoria, tão logo tomou ciência das intenções do estudo, cancelou imediatamente todas as tratativas".

Cópias de documentos fornecidas por Bruginski e respostas da instituição a indagações da Revista Questão de Ciência, no entanto, indicam que a UEPG e sua direção tinham ciência dos protocolos da pesquisa, incluindo a utilização de cadelas da raça beagle em cirurgias experimentais, há muito tempo.

 

Ideia premiada

Ex-professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e da própria UEPG, Bruginski começou a desenvolver o dispositivo - que nomeou Oclusor Ativo Implantável para Colostomias, ou AICO, na sigla em inglês - ainda nos anos 1990. Resultado de seus projetos de mestrado e doutorado em Engenharia Biomédica na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o protótipo do aparelho lhe rendeu o Prêmio Jovem Cientista na categoria "graduados" em 1996, além de ter sido o único finalista estrangeiro do Prêmio Altran, uma então consultoria francesa de tecnologia e inovação, em 2007.

Composto de uma fita movida por engrenagens ligadas a um pequeno motor elétrico acionado por controle remoto, o dispositivo permite que o paciente abra e feche a saída do estoma - o "buraco" na parede abdominal por onde passam a eliminar as fezes, de forma temporária ou permanente, as pessoas submetidas a alguns tipos de cirurgias nos intestinos -, efetivamente devolvendo seu controle sobre a evacuação. Hoje, estas pessoas precisam usar bolsas coletoras de plástico continuamente, enfrentando desconforto, irritações na pele e infecções, além de limitações no dia a dia e frequentes situações constrangedoras.

Com recursos da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), uma empresa pública de fomento à ciência, Bruginski levou o desenvolvimento do AICO para a UEPG quando começou a lecionar na universidade paranaense, em 2012. Ainda que lentamente, o projeto seguia adiante. Após obter autorização da Comissão de Ética no Uso de Animais (CEUA) da instituição para a cirurgia nas cadelas, em 2018 fechou contrato com a Fundação de Apoio ao Desenvolvimento Institucional, Científico e Tecnológico da UEPG (FAUEPG) por meio da Fundação Educere de Campo Mourão - uma incubadora de empresas da região que intermedeia os repasses da Finep para o projeto - para realizar os procedimentos no Laboratório de Técnicas Operatórias e Cirurgia Experimental de seu Departamento de Medicina, tendo como responsável técnico Leandro Cavalcante Lipinski, médico veterinário que também era responsável técnico pelo biotério da universidade.

Enquanto isso, Bruginski também negociava a aquisição dos animais junto ao biotério da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ao todo, conta, o projeto previa a utilização de 10 cadelas beagle com peso aproximado de 15 quilos e mais de dez anos de idade, mas com atrasos causados pela pandemia de COVID-19 e dificuldades para conseguir fornecedores dos componentes do dispositivo, quatro delas acabaram morrendo em cativeiro, de causas naturais, devido à idade avançada com que já foram adquiridas ainda em 2018.

Segundo o pesquisador, durante todo este tempo as cadelas ficaram abrigadas em uma clínica veterinária de Ponta Grossa, até as seis remanescentes terem que ser removidas para local que ele mantém em sigilo, diante de ameaças e do risco de invasão por ativistas buscando sua "libertação", a exemplo do que aconteceu por duas vezes em 2013 no laboratório do Instituto Royal, então uma das maiores e mais importantes instituições de experimentação animal do país, localizado em São Roque, interior de São Paulo.

"Foi uma medida de precaução, para preservar a integridade dos animais e das pessoas que trabalham na clínica", diz.

Os problemas, porém, não pararam por aí. Diante da repercussão do caso, conta Bruginski, a UEPG impediu que os procedimentos acontecessem na data prevista, passando a negar publicamente qualquer conhecimento do uso de cães ou envolvimento no projeto, apesar das autorizações, comunicações e contratos que deixam claros seus protocolos e necessidades. Ele acredita que a universidade tomou esta atitude por também temer danos ao seu laboratório e patrimônio por protestos de eventuais ativistas dos direitos animais, o que culminou com recebimento, em 25 de abril, de comunicação pela FAUEPG da rescisão unilateral do contrato com a Fundação Educere para utilização das suas instalações nos procedimentos datada do dia 20 de abril, véspera de sua realização.

À Revista Questão de Ciência, a UEPG informou não ter convênio ela mesma com a Fundação Educere, e por isso não tem obrigações "com projetos submetidos a órgãos financiadores externos por professores que não compõem mais o seu quadro institucional, como é o caso do titular da pesquisa", e que a avaliação e aprovação do projeto por seu Comitê de Ética no Uso de Animais "não implica obrigatoriedade de realização da pesquisa na instituição". Quanto ao cancelamento do contrato, a instituição diz ter sido celebrado por "duas entidades de direito privado" - FAUEPG e Educere -, e que a decisão "não inviabiliza a pesquisa, visto que tinha como objeto um procedimento cirúrgico que pode ser realizado em outra instituição".

Bruginski, no entanto, discorda. Segundo ele, será preciso retomar todo processo institucional "do zero", inclusive de tramitação em outra CEUA.

"Não há tempo hábil para buscar outro local. O projeto está momentaneamente paralisado", lamenta.

O pesquisador também ainda não sabe como vai agir quanto à rescisão unilateral do contrato pela FAUEPG e aguarda a devolução dos valores já pagos pelo aluguel do laboratório, R$ 20 mil. Segundo ele, o comunicado recebido com data retroativa e o impedimento de usar as dependências da UEPG para os procedimentos como acordado no dia marcado violam cláusula que prevê uma antecedência mínima de 10 dias para tal comunicação, sem prejuízo das atividades em andamento, e seus advogados "estão analisando a forma mais adequada de proceder".

Quanto às cadelas remanescentes, Bruginski explica que o projeto original previa a implantação e posterior retirada dos dispositivos, com os animais depois sendo postos para adoção. Com os atrasos na pesquisa e a idade avançada delas, a intenção mudou para manter os implantes e buscar pessoas dispostas a adotá-las assim, provavelmente integrantes da equipe de pesquisa dentro e fora da universidade. Agora, porém, seu destino é incerto e depende de decisão da Finep, que já foi informada da situação.

"Como elas foram adquiridas com recursos públicos para determinado fim, teremos de tratar com a Finep", diz.

 

A necessidade

O caso do AICO ilustra muitos dos problemas e desafios que a ciência e inovação enfrentam no Brasil e no mundo. Do primeiro protótipo até agora, lá se vão cerca de três décadas em que o aparelho está em desenvolvimento. Burocracia, falta de financiamento e dificuldades técnicas foram alguns dos obstáculos que o projeto, aos poucos, conseguiu superar até chegar na atual fase, em que empacou diante do desconhecimento de muitos sobre como se testam e aprovam novos fármacos e dispositivos médicos. Da bancada dos laboratórios às prateleiras das farmácias, postos de saúde, hospitais ou centros cirúrgicos, remédios, vacinas, equipamentos etc. tiveram de passar por experimentos com animais para avaliar sua segurança antes de ensaios com seres humanos.

Um "mal" infelizmente ainda necessário, como destaca Marco Antonio Stephano, professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP) e integrante titular do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea), onde representa a Federação Brasileira de Indústria Farmacêutica.

"Infelizmente é um mal necessário. Dispositivos médicos e novos medicamentos ainda exigem estudos pré-clínicos em animais com o objetivo de verificar a segurança dos produtos, saber que aquilo não vai ser pior que não usar", conta. "É o princípio da precaução, que vem da Declaração de Helsinque, que regulou o uso de humanos em experimentos após os horrores da Segunda Guerra Mundial. Um Comitê de Ética em Pesquisa jamais vai aprovar um experimento de um novo dispositivo médico ou medicamento com humanos sem que antes tenha sido testado com animais".

Stephano conta que no caso de novos fármacos, como remédios ou vacinas, é preciso usar duas espécies diferentes, sendo pelo menos uma não roedora, nos testes pré-clínicos.

"Isso acontece justamente para garantir mais segurança, porque os roedores não têm a mesma fisiologia que um ser humano", diz. "Uma análise toxicológica, por exemplo, tem que ser feita em um camundongo, um rato, um roedor, mas depois numa espécie totalmente diferente. E muitas vezes se usam primatas não humanos. Todas as vacinas da COVID-19 em uso no mundo foram testadas em primatas não humanos, sem exceção".

Já para dispositivos médicos, a espécie vai depender das características do equipamento e estruturas anatômicas envolvidas. Muitas vezes porcos, mas às vezes outros mamíferos de médio porte, como cães e caprinos. E é por isso que para os testes do AICO os animais escolhidos foram as cadelas da raça beagle, explica Bruginski. Segundo do pesquisador, os cães são outro mamífero que, como o ser humano, são capazes de controlar a defecação, com um cólon (a parte final do intestino grosso) exercendo a função de reservatório para as fezes. Além disso, as fêmeas possibilitam um acesso mais fácil às estruturas anatômicas de interesse, já que no caso dos machos o órgão e estruturas sexuais ocupam cerca de um terço da parede abdominal.

"Qualquer outro animal sem esta capacidade de controle que fizéssemos o teste ficaria em sofrimento, porque o oclusor seria o equivalente a uma obstrução intestinal", ressalta. "É uma etapa da pesquisa que não temos como pular. Sem ela não tem como o dispositivo chegar a pacientes humanos. Nenhuma comissão ética em pesquisa aceitaria que ele fosse testado diretamente em seres humanos. Não tem como, e isso não é só aqui, é no mundo inteiro".

Isso não quer dizer, porém, que os animais sejam usados em pesquisas sem qualquer consideração com sua saúde e bem-estar. Desde os anos 1950 a comunidade científica mundial busca seguir o que ficou conhecido como o "Princípio dos 3 Rs", referência a "redução", "substituição" e "refinamento" (reduction, replacement e refinement, em inglês) na experimentação animal. A ideia por trás deste princípio, como seu acrônimo sugere, é usar o mínimo de animais nos experimentos para ter resultados relevantes - incluindo sua ampla divulgação, em especial os negativos, para evitar a repetição desnecessária -, procurando alternativas sempre que possível e com treinamento e técnicas que permitam reduzir ao máximo o estresse e dor.

Assim, já estão em uso diversos métodos alternativos que, se não substituem por completo animais, reduzem em muito os números envolvidos em experimentos. Culturas de células, organelas que imitam sistemas fisiológicos humanos em menor escala (como os chamados human-on-a-chip ou organ-on-a-chip) e até simulações computacionais, entre outros, podem cortar em 60% a quantidade de animais usados em alguns estudos, ou mesmo evitar que as pesquisas cheguem a esta fase, servindo como triagem, destaca Stephano.

"Praticamente todo produto é tóxico para células, numa relação que depende de dose e forma de aplicação, então o desfecho em cultura não substitui o animal", diz. "Mas se o produto for muito tóxico neste tipo de testes, não tem porquê ele ir para o modelo animal. Além disso, muitos testes toxicológicos hoje são feitos primeiro em embriões de peixe-zebra ao invés de roedores, também evitando que produtos muito tóxicos sigam em frente nas pesquisas".

Mais que isso, hoje alguns pesquisadores e instituições acrescentam dois "Rs" ao princípio clássico: "respeito", ou seja, a consciência de estar lidando com um ser vivo, levando em consideração seu comportamento e necessidades com manipulação e instalações adequadas; e "relevância", isto é, a real necessidade daquele experimento e os benefícios que pode trazer tanto para seres humanos quanto animais de modo a justificar o uso deles.

É por isso, por exemplo, que muitos países no mundo, inclusive o Brasil, hoje proíbem a maior parte de testes de cosméticos em animais. E mesmo os que ainda são realizados aqui usam muito poucos, em geral apenas um ou dois bichos, com métodos que produzam o mínimo sofrimento, ressalta Stephano.

 

Substituição

"Na área de cosméticos, alguns métodos alternativos são substitutivos, isto é, podem ser realizados no lugar na experimentação animal. Dos 45 métodos de experimentação animal para cosméticos aprovados pelo Concea, 32 são substituíveis", conta. "Só os testes de inflamação que ainda não substituímos, porque a pele humana artificial que é usada não tem circulação sanguínea, então também não tem sistema imune que nos permita saber se o produto é inflamatório. Mas com métodos como a pesquisa ativação de linfonodos, em que a substância é aplicada atrás da orelha do roedor, por exemplo, podemos usar apenas um ou dois animais no teste, não mais que isso".

Outra preocupação é com o bem-estar dos animais no cativeiro. Coordenadora do biotério da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, a bióloga Ariadiny de Lima Caetano conta que um dos focos é manter a vida dos animais o mais parecida possível com a que eles teriam livres de forma que, quando usados em experimentos, tenham uma resposta adequada e útil.

"A gente faz o enriquecimento ambiental, por exemplo. Eles não ficam sozinho numa caixa, têm distratores, podem formar ninhos, podem se esconder, mimetizando a natureza para que não tenhamos este tipo de problema", diz. "E isso vale tanto para animais de pequeno quanto de grande porte. Aqui só trabalhamos com animais pequenos, mas para primatas, por exemplo, o isolamento é muito ruim. Nesta situação, eles podem apresentar patologias que inviabilizam estudos. Não tem sentido manter um animal em cativeiro numa condição ruim".

 

Pacientes à espera

 

Enquanto isso, pacientes seguem à espera de avanços que lhes deem melhor qualidade de vida. Presidente da Associação Paranaense dos Ostomizados, Kátia Pascoal de Lima Oliveira vê na ação dos defensores dos direitos dos animais uma "inversão de valores".

"Eles estão preocupados com os animais, mas não com as pessoas que vão se beneficiar deste estudo", afirma. "Fiquei muito triste ao saber que o projeto foi paralisado".

Vítima de uma forma rara da Síndrome de Crohn, doença inflamatória crônica que afeta o sistema digestivo, provocando dores, diarreia, febre, perda de peso e dificultando a absorção de nutrientes, Kátia passou por cirurgias que removeram seu intestino grosso e reto, sendo obrigada a usar bolsas coletoras de forma permanente desde 2018.

"Se eu não tivesse feito estas cirurgias eu não estaria mais aqui", diz. "Mas um dispositivo como isso poderia me ajudar a ficar pelo menos algumas horas sem a bolsa colada no corpo. Além de ser bom para quem tem muitas alergias de pele como eu e ajudar na cicatrização das feridas, eu poderia ir para a praia, ter mais liberdade para ir para a academia fazer exercícios. Um aparelho como este vai melhorar muito a qualidade de vida de todos ostomizados".

E é neste equilíbrio de prioridades entre humanos e animais que trabalha o Concea, conclui Stephano.

"É uma balança em que temos que colocar de um lado a saúde e bem-estar de seres humanos, do outro a saúde e bem-estar dos animais e ver até que ponto ela está equilibrada", diz. "Existe um movimento muito forte de tirar os animais dos laboratórios e acabar com a experimentação animal. Mas também temos muitas pessoas portadoras de doenças que querem ver o desenvolvimento de um medicamento ou um dispositivo que pode salvar sua vida, ou melhorar sua qualidade de vida. E o fiel desta balança é o Concea".

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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