Falácias e mentiras contra a CTNBio e o trigo transgênico

Artigo
6 abr 2023
trigo azul

 

A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) aprovou em março o plantio do trigo HB4, variedade resistente à seca desenvolvida pela Universidade do Litoral de Buenos Aires, em parceria com a empresa argentina Bioceres. Trigo geneticamente modificado, ou transgênico, não é novidade no Brasil: a importação já havia sido liberada em 2021. O Brasil não é um grande produtor de trigo, está em 21º lugar na lista. Os primeiros são China, Índia e Rússia. A Argentina, principal produtor da América Latina, está em 11º lugar, e o Brasil é seu principal comprador. Aproximadamente 85% do trigo consumido por brasileiros vem da Argentina.

O trigo HB4 foi modificado com a inserção de um gene de resistência à seca que veio de outra planta – o girassol. Que também é usado na alimentação, o que significa que o gene HB4 já participa da dieta humana desde que nossa espécie resolveu comer semente e óleo de girassol, e nunca foi relacionado a problemas de saúde. Todo produto transgênico passa por análise criteriosa de segurança para a saúde humana e meio ambiente, e a CTNBio julgou que o trigo HB4 é tão seguro quanto suas contrapartidas convencionais.

Vamos lembrar que o trigo modificado já estava liberado para consumo no Brasil desde 2021. O que se autorizou agora foi o plantio. Além dos dados já previamente avaliados em 2021, agora antes de liberar o plantio a CTNBio exigiu uma análise mais criteriosa de como os genes se expressam com e sem estresse hídrico, para ter certeza de que a planta continua segura quando sua “função transgênica” – resistir à seca – é ativada.

 

Aceitação do público

Como se trata de um cereal que cresce bem em climas mais frios, a principal produção no Brasil concentra-se na Região Sul. Um trigo resistente à seca permite melhorar e aumentar esta produção. Explorando a biotecnologia, o Brasil tem o potencial de se tornar independente na produção de trigo, e talvez até um exportador. Este cereal é, afinal, um dos principais componentes da alimentação humana, usado para fazer pães, massas, biscoitos, etc.

A aprovação do trigo HB4 pela CTNBio foi comemorada na comunidade científica e agrícola, e parecia também muito bem recebida pelo público, como demonstrou pesquisa da Abimapi (Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos, Massas Alimentícias e Pães & Bolos Industrializados), na qual a maioria dos consumidores expressou a opinião de que não se importa de consumir um trigo geneticamente modificado.

Se por um lado a aceitação do consumidor foi uma grata surpresa, a movimentação de grupos organizados antibiotecnologia foi reacionária. Logo após a aprovação da CTNBio, diversos grupos conhecidos por oposição ideológica a técnicas de modificação genética em alimentos – mas que nunca se manifestam quando as mesmas técnicas são aprovadas pela mesma câmara técnica para uso em medicamentos e vacinas – encaminharam carta ao ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, presidente do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), com cópia para dez ministros, pedindo a anulação da liberação da importação do trigo HB4, vigente desde 2021, e que se repudie a recente aprovação do plantio.

Os argumentos apresentados na carta para embasar as solicitações são falaciosos, e as alegações, mentirosas.

 

Conversa fiada

Primeiro, alega-se que a liberação do cultivo trará impactos econômicos e de segurança alimentar, mas não se explica como isso aconteceria. Apenas menciona-se que toda biotecnologia deve passar pelo crivo das agências regulatórias e levar em conta a soberania alimentar do país. O primeiro item foi cumprido de acordo com a lei. Quanto ao segundo – ora, um trigo resistente à seca tem o potencial de aumentar a produção interna, tornando o país independente da importação. Aumentando o cultivo, e garantindo maior rendimento e menos perdas ao produtor, teremos um trigo mais barato para o consumidor final. Onde, exatamente, a soberania alimentar ficaria prejudicada?

O segundo argumento é de que a CTNBio incorreu em ilegalidades no trâmite do processo de aprovação. A sustentação desse ponto é confusa, lançando mão de alegações – especulativas ou ideológicas – irrelevantes.

trigo

Entre os argumentos especulativos, há a suposição de que, aprovado, o trigo HB4, que também apresenta um gene de resistência ao herbicida glufosinato de amônio, vai levar a maior consumo de agrotóxicos. No descalabro ideológico, alega-se que a tecnologia de transgênicos é “totalitária” e viola “o direito de escolha do agricultor”. Ambos os pontos são irrelevantes para a legalidade do parecer da comissão técnica de biossegurança porque estão fora da alçada da CTNBio. A comissão avaliou apenas a segurança do gene de resistência à seca e do gene de resistência ao herbicida. Ponto. Impactos eventuais, para além dos causados pelos genes em questão, são problema de outras agências.

A CTNBio não avalia sequer a eficácia do produto, ou seja, se este trigo é realmente resistente à seca em solo brasileiro. Quem está realizando estes testes é a Embrapa e outras empresas de melhoramento de trigo. Da mesma forma, a CTNBio não avaliou a eficácia de vacinas geneticamente modificadas para COVID-19, apenas sua segurança. Quem avalia a eficácia é a Anvisa.

 

Pesticidas

Já a segurança de pesticidas para a saúde humana e meio ambiente é da competência da Lei de Agrotóxicos, e será avaliada pela Anvisa, Ibama e MAPA (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento). Curiosamente, no caso do glufosinato de amônio, o herbicida é liberado no Brasil não somente para matar ervas daninhas, quando é usado no início do plantio, mas também como agente dessecante na fase pré-colheita.

Há situações em que o uso de um dessecante – que, como o nome diz, faz secar plantas – torna-se necessário para homogeneizar a plantação, matando as plantas ainda imaturas antes da colheita. O controle de resíduos de pesticidas neste momento precisa ser muito mais rigoroso do que quando o produto é usado no início do ciclo de cultivo, como ocorre com tantos outros herbicidas, independentemente de o trigo ser transgênico ou não.

Atualmente no Brasil, o uso de herbicidas em trigo é liberado, sendo os principais usados atualmente iodosulfuron, piroxasulfona, S-Metalocloro e Pinoxadem. Todos estes produtos passaram por estudos de toxicidade e apresentam bula, instruções de segurança no manuseio, janela autorizada para aplicação, e limites de resíduo no produto. O glufosinato de amônio não é diferente. Todos os herbicidas autorizados por lei, se usados dentro das especificações, foram julgados seguros para a saúde humana, e são usados independentemente de o cultivar ser transgênico ou não, porque o agricultor precisa matar as ervas daninhas.

 

E o pãozinho?

A mídia também não ajuda, e várias reportagens somam-se ao coro aterrorizador das entidades que escrevem ao CNBS. Sob alegações de que “vai ter veneno no pão”, ou “no nosso pão, não”, as antigas falácias de demonizar a transgenia e fingir que todos os produtos geneticamente modificados são iguais reaparecem.

A afirmação de que o trigo HB4 poria mais “veneno no pão” do que a variedade convencional é falsa. Na verdade, o que poderia gerar mais resíduo é o uso do glufosinato como dessecante no momento imediato pré-colheita, e não como herbicida no início do ciclo. Se for usado como herbicida no princípio do plantio, a quantidade de resíduo que permanecerá no grão, depois de todo o tempo de crescimento e maturação da planta, deve ser indetectável. Já o uso para efeito dessecante ocorre imediatamente antes da colheita, o que torna plausível o risco de contaminação do grão, caso o produto seja aplicado de forma errada. Ora, o trigo HB4 não pode ser dessecado com glufosinato de amônio, pois tem um gene de resistência ao herbicida. É imune. Além disso, sendo resistente à seca, as plantações provavelmente serão mais homogêneas, e podem nem precisar da dessecação pré-colheita. A Embrapa, aliás, não recomenda dessecar o trigo, justamente pelo maior uso de pesticidas, e por ser muito difícil de calibrar exatamente o momento da dessecação, o que frequentemente acaba ocasionando perdas.

 

Mais conversa fiada

Os argumentos da carta ao CNBS seguem acusando a CTNBio de não ter feito a análise de risco ambiental do trigo, e usa outra alegação falsa: de que o plantio do trigo HB4 está proibido na cidade de Buenos Aires. Em resposta, a CTNBio mostra as análises de segurança ambiental. Já a proibição judicial do cultivo do trigo HB4 na província de Buenos Aires foi revogada em meados de março.

Alega-se também falta de transparência e de audiência pública, argumento cuja especiosidade é facilmente verificável em documentos públicos, como mostra a Nota Informativa da CTNBio, publicada em seu site.

Talvez a afirmação mais desonesta da carta das entidades contrárias ao trigo HB4 seja a seguinte:

 

Além dos cruéis efeitos socioeconômicos provocados por qualquer biotecnologia transgênica, estes efeitos se potencializam quando esta tecnologia está inserida em variedade agrícola que compõe a base alimentar de consumo massivo da população no país.

 

Dizer que toda e qualquer biotecnologia transgênica traz efeitos cruéis tanto para a sociedade como para a economia demonstra total desconhecimento de que cada evento de modificação genética é único, e deve ser avaliado em suas particularidades, que é exatamente o que a CTNBio faz.

Alguns alimentos transgênicos são produtos de multinacionais e estão atrelados ao uso de pesticidas. Outros não. Muitos são produtos de pesquisa desenvolvida em universidades públicas ou empresas públicas como a Embrapa. O feijão resistente ao vírus do mosaico dourado, desenvolvido pela Embrapa, também compõe a base alimentar do brasileiro, e conseguiu reduzir o uso de inseticida nas lavouras de 10-12 aplicações por safra para uma a duas. O feijão ficou mais barato e com menos pesticida.

O arroz dourado nas Filipinas tem o potencial de reduzir a carência de vitamina A e as doenças associadas a essa grave deficiência nutricional. A insulina humana produzida por bactérias geneticamente modificadas só é possível graças a técnicas de transgenia, e permite que pessoas tenham acesso a esse medicamento sem correr o risco das alergias à antiga insulina de vaca, além de permitir a produção do hormônio sem sofrimento animal.

O mesmo acontece com a produção de queijo, dependente da enzima renina, hoje produzida por bactérias, e que antes precisava ser extraída do estômago de bezerros jovens. E finalmente, sem técnicas de transgenia, como seria possível desenvolver vacinas genéticas como as de COVID-19, ou terapias gênicas para doenças hereditárias? Todos estes produtos passaram pela análise cuidadosa da CTNBio. As vacinas para COVID-19 foram avaliadas pelo mesmo grupo que compõe a diretoria atual.

trigo

Os grupos que escrevem ao CNBS, no entanto, utilizam até mesmo o argumento de que a atual diretoria da câmara é a mesma do governo Bolsonaro, esquecendo-se de que sem esta diretoria, não haveria vacina para COVID-19, cuja disponibilidade no país dificilmente pode ser vista como pauta defendida pelo governo anterior.

Se há interesse político em barrar o trigo HB4, que seus defensores o façam na arena política, não fingindo legitimidade científica e atacando a reputação de órgãos técnicos.  Há amplo espaço para o debate honesto sobre transgênicos, mas as evidências científicas de segurança precisam ser levadas em conta. Se isso não for feito, é apenas mais um discuro anticiência, tão prejudicial para a sociedade quanto o discurso antivacinas.

Se o trigo HB4, após os testes da Embrapa e de outras empresas que já atuam no mercado de trigo, mostrar-se eficaz na tolerância à seca, e uma garantia de lavouras mais homogêneas com menor probabilidade de precisar de dessecante, a vantagem para o agricultor será óbvia. Proibir a venda e o plantio destas sementes por razões ideológicas, após o produto ter sido autorizado pelas agências competentes, pode ser uma repetição do erro da soja transgênica no início dos anos 2000, quando agricultores contrabandearam a soja argentina resistente ao glifosato para dentro do país. O caso ficou conhecido como “soja Maradona”, e só foi devidamente regulamento com a criação da Lei 11.105, durante o primeiro governo Lula, em 2005. Vinte anos depois, parece que não aprendemos nada. A história se repete, e nas palavras de Paulo Barroso, presidente da CTNBio, “agora, além da soja Maradona, poderemos ter o trigo Messi”.

 

Natalia Pasternak é microbiologista, presidente do Instituto Questão de Ciência, professora adjunta em Columbia University, professora convidada da FGV-SP. É membro do Committee for Skeptical Inquiry (CSI), colunista do jornal O Globo e coautora de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e “Contra a Realidade” (Papirus 7 Mares)

 

CORREÇÃO (10/4/2023): Na publicação original deste artigo, a pesquisa sobre aceitação do trigo transgênico pela população foi atribuída à Abitrigo, quando na verdade tratou-se de iniciativa da Abimapi. O texto foi corrigido. 

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