A vidente do Kremlin e a tempestade solar

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24 fev 2023
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“Em 2023, os bebês nascerão após gestação artificial, produzida em laboratório; gestações naturais serão restritas, ou até mesmo proibidas”. Essa é apenas uma das inúmeras previsões atribuídas à vidente búlgara Baba Vanga, falecida em 1996 aos 84 anos. Cega desde os 12, recebia informações sobre o futuro da Humanidade a partir de vozes de criaturas invisíveis. Ou não. Estabelecer os verdadeiros fatos da vida e das palavras de Vangelia Pandeva Dimitrova (ou Gushterova), a “Baba Vanga”, talvez seja impossível. Nem mesmo os fiéis do culto formado em torno de sua figura, na Bulgária, concordam em detalhes do mito – por exemplo, se Vanga teria preservado a virgindade por toda a vida, como alguns fiéis alegam, ou não.

Os fatos razoavelmente sólidos conhecidos a respeito de Dimitrova são poucos. Era semianalfabeta: todos os ensinamentos ou previsões atribuídos a ela são, na melhor das hipóteses, tradição oral (e, na pior, invenções e fantasias); durante quase meio século, foi consultada por figuras importantes da sociedade búlgara, tanto durante a monarquia quanto no período comunista (e, como nota uma reportagem australiana, seus conselhos não devem ter sido muito úteis, já que ambos os regimes fracassaram espetacularmente); a fama internacional como “profeta” só emergiu anos após sua morte (segundo este site búlgaro, as primeiras previsões de eventos globais com seu nome começaram a circular em 2008); e é plausível que parcela razoável das “profecias” atribuídas a ela seja parte de operações de desinformação e propaganda ligadas ao governo russo.

Em 2013, um “documentário” russo afirmou que Vanga teria dito, em 1979, que “a glória de Vladimir é a glória da Rússia”. O contexto, claro, era de que o nome “Vladmir”, na suposta profecia de quase cinco décadas atrás, seria uma referência ao futuro de Vladimir Putin. Essa predição tem circulado por todo o mundo desde que foi inventada há dez anos, e agora ressurge no contexto da invasão da Ucrânia. Você encontra mais fato e análises sobre a desinformação esotérica russa no contexto do conflito na Ucrânia neste artigo.

Tudo o que consta dos dois parágrafos acima é conhecido há pelo menos dez anos (o Washington Post escreveu a respeito 11 anos atrás), mas o baixo jornalismo – no Brasil e no resto do mundo – insiste em usar o material sobre ela, que emerge da desinfosfera russa, como caça-cliques porque, afinal, por que não? Ética é para os fracos.

A “previsão” sobre bebês artificiais em 2023, assim como outras claramente erradas (a de que Barack Obama seria o último presidente dos EUA, por exemplo) são silenciosamente ignoradas após desmentidas pelos fatos; outras são claramente “pós-dições”, profecias que só vêm a público depois que o evento ocorreu (a COVID-19, por exemplo). Outras, ainda, seguem ganhando tração na mídia que confunde jornalismo com entretenimento, e vê entretenimento como salvo-conduto para irresponsabilidade: por exemplo, a de que, neste ano, deve ocorrer uma tempestade solar devastadora. A imprensa vem apresentando o suposto vaticínio desde dezembro passado (como você pode conferir aqui e aqui). .

Se, por um lado as previsões atribuídas a Baba Vanga – ou a qualquer outro vidente – não têm fundamento, por outro, pelo menos é possível explorar esse frisson para aprender um pouco mais sobre as tempestades solares, suas causas e consequências.

 

Tempestades solares

O Sol é uma estrela. Não é sólido, mas constituído majoritariamente por hidrogênio e hélio: uma grande bola de gás a uma temperatura bastante elevada – variando desde algo em torno de 5.500C na “superfície” até milhões de graus no núcleo. Quente o suficiente para fazer com que a maioria dos átomos encontrados lá esteja na forma de “plasma”, quando pelo menos parte dos elétrons estão dissociados, deixando-os – para quem não se lembra das aulas de química na escola – na forma de íons positivamente carregados.

Como cargas elétricas em movimento – agora, relembrando as aulas de física – geram campo magnético, então, de modo geral, a “sopa” de partículas eletricamente carregadas do plasma solar, em constante movimentação dentro da estrela, gera um complexo e dinâmico campo magnético, cujos detalhes permanecem sendo objeto de estudo.

As mudanças no campo magnético do Sol ao longo do tempo nem sempre são “tranquilas”, passando por variações abruptas e intensas, o que gera as chamadas “explosões magnéticas”, ou “explosões solares”, liberando uma quantidade de energia que pode ser milhões de vezes maior que a decorrente da detonação de bombas nucleares. Mal comparando, seria como ficar brincando com vários ímãs próximos uns dos outros sobre a mesa: cedo ou tarde, a interação entre os campos magnéticos causará movimentos abruptos, repentinos, que levarão as peças a uma nova configuração – jogando algumas para longe, por exemplo, ou causando a união de duas ou mais, rapidamente.

Além disso, as estrelas, em geral, e o Sol, em particular, enviam mais que apenas luz (como “luz”, entenda-se diferentes faixas das chamadas “ondas eletromagnéticas”: luz visível, ultravioleta, infravermelho etc.) para o espaço. Também emitem um fluxo permanente de partículas (algumas carregadas eletricamente, como prótons, elétrons e átomos ionizados, e outras neutras, como os neutrinos), formando os chamados “ventos estelares” – ou, para o Sol, o “vento solar”.

Tempestade solares são períodos caracterizados por um aumento significativo do vento solar. Podem estender-se de algumas horas a vários dias. São ocasionadas por erupções solares intensas, decorrentes das explosões magnéticas, ou também pelo que se conhece como eventos de ejeção de massa coronal (CME, na sigla em inglês). Diferente das erupções, nos CMEs ocorre a ejeção de matéria aquecida a partir da coroa solar, a “atmosfera” ao redor do Sol. Essa expulsão também é causada por variações magnéticas. Este vídeo mostra diversos eventos de CMEs.

 

Consequências

O incremento na intensidade do vento solar, durante as tempestades, tem consequências na Terra. O campo magnético terrestre manda a maioria das partículas que vem em nossa direção de volta para o espaço, embora uma parcela acabe penetrando a atmosfera, através dos polos magnéticos da Terra: quando essas partículas interagem com os gases no ar, geram os belos fenômenos luminosos conhecidos por Aurora Boreal, ao Norte, e Austral, ao Sul. Acompanhar as tempestades solares é importante para quem deseja viajar em busca de observar auroras.

Outras consequências são mais danosas: astronautas em missões espaciais, por exemplo, devem permanecer abrigados, uma vez que o incremento na radiação espacial a que eles seriam submetidos aumenta os riscos de efeitos nocivos ao DNA. Há também diversos casos de danos a circuitos eletrônicos dos satélites em órbita, gerando mau funcionamento temporário ou definitivo; sistemas de distribuição de energia elétrica têm componentes que podem ser danificados por correntes elétricas geradas por variações no campo magnético, quando interage com o vento solar intensificado; há, ainda, problemas no setor de telecomunicações.

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Alguns casos recentes ganharam notoriedade: em 1989, tempestades solares geraram danos na rede elétrica nos Estados Unidos e no Canadá; em 2003, houve quedas de energia elétrica na Suécia; em 2005, aparelhos de navegação e orientação por GPS (que funcionam por sinais de satélites) enfrentaram problemas durante cerca de 10 minutos; e, mais recentemente, em 2022, dezenas de satélites do sistema Starlink, da SpaceX, de Elon Musk, sofreram danos decorrentes da atividade solar.

 

Clima Espacial

O Sol, emanando continuamente partículas e radiação, influencia as condições espaciais no Sistema Solar, formando o que se chama de “clima espacial”, que pode se modificar de uma hora para a outra, à medida que uma tempestade solar se inicia, se intensifica ou arrefece, por exemplo. Tempestades solares podem ocorrer a qualquer instante, mas existem períodos em que a atividade média do Sol aumenta, quando acontecem os chamados “máximos solares”. No meio do caminho entre dois “máximos”, o Sol atinge o extremo oposto, com atividade reduzida, nos “mínimos solares”.

Um ciclo completo, de um máximo a outro, dura cerca de 11 ou 12 anos. Máximos solares anteriores ocorreram por volta de 2000 a 2003, depois entre 2012 a 2014. O próximo deve ser entre 2023 e 2025. Nos anos de atividade intensa, as erupções e os eventos de ejeção de massa coronal podem acontecer até mais de uma vez ao dia. Além disso, surgem em maior número as “manchas solares”, que são pequenas regiões na superfície do Sol (“pequenas” em comparação ao tamanho do Sol, mas costumam ter uma extensão maior do que o diâmetro terrestre) onde o campo magnético é mais intenso. Essas manchas persistem por dias ou semanas, depois se desfazem.

Acompanhar o ciclo do Sol é essencial para monitorar o clima espacial. Além disso, há diversos equipamentos em funcionamento, atualmente, dedicados a observar o vento solar, manchas solares, erupções e eventos de ejeção de massa coronal. Com esses dados, é possível emitir alertas de eventos solares mais intensos com antecedência que varia entre algumas horas e alguns dias.

 

Vidências e desinformação

Uma vez que tempestades solares são eventos frequentes, podendo ocorrer diversas vezes ao ano, é seguro dizer que qualquer profecia de que ocorrerão em 2023 não chega a causar surpresa. Mas, se o evento previsto for uma “tempestade catastrófica”, e acabar mesmo acontecendo, será que isso seria um indicativo favorável e convincente, cientificamente falando, do poder preditivo de Baba Vanga? Como já vimos, é impossível separar o que ela teria realmente “previsto” em vida do que é invenção da mídia e do que é desinformação plantada para fazer propaganda do governo russo e/ou manter as redes ocidentais de teorias da conspiração saudáveis e bem alimentadas.

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Aqui, uma ressalva. Muita gente imagina que “operações de desinformação” são esquemas complexos e maquiavélicos de manipulação do público.

Esse talvez fosse o caso no passado. Hoje em dia, com as redes sociais e a mídia caça-cliques, parecem-se mais com a velha brincadeira infantil de jogar punhados de lama no muro e ver o que gruda. O objetivo é distrair e confundir, para desunir e enfraquecer. Algumas pessoas são mais sensíveis a alertas de apocalipses esotéricos, outras, a denúncias contra elites perversas, e o Twitter tem para todos os gostos.

O uso de profecias inventadas como instrumento político não é nada novo. Imperadores romanos, por via das dúvidas, censuravam horóscopos. Os nazistas inventaram versos para Nostradamus, a fim de parecer invencíveis. Com isso em mente, talvez o apelido de “Nostradamus dos Bálcãs”, às vezes aplicado a Baba Vanga, esteja absolutamente correto.

 

Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia. É autor de livros de física para o Ensino Superior e de divulgação científica, como o “Armadilhas Camufladas de Ciências: mitos e pseudociências em nossas vidas” (Ed. Autografia)

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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