A fúria bolsonarista contra as pesquisas eleitorais (consubstanciada no projeto de lei que virtualmente criminaliza a atividade) me traz à memória o decreto do Senado romano, durante o reinado do imperador Tibério (42 AEC-37 EC), expulsando todos os astrólogos e adivinhos da Itália. Segundo narra o historiador Tácito (56-120) em seus “Anais” (Livro II), após a determinação pelo menos dois desses profissionais acabaram condenados à morte, um jogado de um precipício e outro, executado com o açoite.
A comparação, é bom que fique claro, não é entre as atividades – pesquisa eleitoral e horóscopo –, mas entre a motivação dos políticos de ontem e de hoje, que parece ser a mesma: medo do impacto na opinião pública e do uso da informação por adversários, como forma de propaganda. Em Roma, consultar astrólogos sobre o destino do imperador ou de sua família era crime, e o antecessor de Tibério, Augusto (63 AEC-14 EC), chegou em dado momento a divulgar publicamente o próprio horóscopo, para mostrar ao povo que não tinha nada a temer.
Astrologia também foi um instrumento de propaganda importante durante a Guerra Civil Inglesa do século 17, travada entre o partido do rei e o do Parlamento. Enquanto os soldados se enfrentavam no campo de batalha, os astrólogos William Lilly (1602-1681) e George Wharton (1617-1681) disputavam um duelo de previsões, as de Lilly usadas como propaganda para animar as tropas parlamentares e as de Wharton, os monarquistas.
O impacto no moral, principalmente entre os soldados do Parlamento, parece ter sido significativo. Segundo o historiador Benson Bobrick, as profecias de Lilly transmitiam aos combatentes do lado parlamentar um ânimo comparável ao causado pela presença do líder máximo da rebelião contra o rei Charles I, Oliver Cromwell (1599-1658).
Nostradamus e os nazistas
Nostradamus, ou Michel de Nostredame (1503-1566), foi um grande charlatão que impressionou as cortes europeias no século 16, fazendo pronunciamentos pseudoprofundos a respeito do futuro sob a forma de quadras, isto é, poemas curtos de quatro versos, dos quais deixou mais de novecentos.
O maior charme de Nostradamus era sua capacidade de insinuar muito sem dizer nada. Suas quadras são como um teste psicológico de manchas de tinta, onde cada um vê, ou projeta, o tudo e o nada: basicamente, dado um fato qualquer, real, imaginado ou desejado, é possível, com um pouco de esforço interpretativo, encontrar um verso de Nostradamus que o “preveja”.
Levando esse fato em conta, o ministro de propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels (1897-1945) destacou, no fim de 1939, um grupo especial para produzir panfletos com profecias de Nostradamus que pudessem ser interpretadas como previsões da vitória do Reich. Uma das primeiras escolhidas foi a Quadra 32 da Primeira Centúria: “O grande império se transforma/Em lugar pequeno que crescerá/Um espaço exíguo de área mínima/Em cujo centro repousará o cetro”.
Para os fins de propaganda de Goebbels, a quadra foi interpretada como uma previsão da reconquista dos territórios perdidos pela Alemanha na 1ª Guerra Mundial. Segundo o historiador Eric Kurlander, o entusiasmo do ministro pela obra de Nostradamus – ou, mais especificamente, por seu potencial como arma de guerra psicológica – era imenso.
Kurlander anota que Goebbels pediu extremo cuidado com a Quadra 94 da Quinta Centúria, que “prevê” um ataque, pelo “Duque da Armênia”, à Áustria e à França, depois de uma “trégua fingida”. Ele pretendia usá-la caso Stálin tomasse a iniciativa de romper o pacto de não-agressão entre Alemanha e URSS. Como o pacto acabou quebrado por Hitler, o ministro substituiu “Duque da Armênia” por “Arminius”, em referência a um líder bárbaro germânico – e, por tabela, ao Führer.
No início de 1940, o “Departamento Nostradamus” recebeu o reforço do astrólogo suíço Karl Krafft (1900-1945). Uma das principais produções de Krafft foi um livro, impresso originalmente em francês, na Bélgica, em 1941, contendo quarenta quadras, todas interpretadas de modo a sugerir a vitória da Alemanha e a destruição da Inglaterra.
Em português
Uma dessas quadras, a número 100 da Segunda Centúria, diz: “Das ilhas um tumulto horrível/Só se ouvirá o estrondo da guerra/Tamanho será o insulto dos predadores/Que se unirão numa grande aliança”. Na leitura de Krafft, a ilha é a Inglaterra, os predadores são os pérfidos ingleses e a “aliança” será a dos inimigos e vítimas do Império Britânico (curiosamente, uma leitura contemporânea dessa mesma quadra vê nela uma “previsão” da formação da aliança entre Inglaterra e EUA para combater a Alemanha).
O historiador especializado em ocultismo Ellic Howe (1910-1991) descobriu uma tradução do livro para o português, publicada em Lisboa de forma clandestina, provavelmente por agentes alemães. Howe especula que a obra, com o título “Nostradamus Vê o Futuro da Europa”, tinha como alvo principal o público brasileiro. Seria interessante descobrir se algum exemplar de fato chegou ao Brasil. Não encontrei referência ao livro numa busca rápida no site da Biblioteca Nacional.
Kurlander considera que os esforços entusiásticos de Goebbels em mobilizar a astrologia e outras crenças esotéricas para minar o moral dos Países Aliados foram “completamente ineficazes”.
Quanto a Karl Krafft, o astrólogo acabou preso durante uma breve reviravolta na política do Reich para com os profissionais do esoterismo, em 1941. Solto em 1943, foi detido de novo em 1944, agora por se queixar de que o governo exigia que traísse sua integridade profissional a fim de produzir propaganda. Terminou seus dias no campo de concentração de Buchenwald, onde veio a falecer em 1945.
Pesquisas
Minha impressão pessoal é que líderes monocráticos e autoritários, sejam imperadores romanos, reis por direito divino, ditadores nazistas ou milicos fracassados, têm uma sensibilidade exacerbada a tudo que possa ameaçar o aspecto simbólico e mítico da imagem que buscam projetar. O autocrata que perde a aura de ungido (por Deus ou pelo Destino) está na iminência de levar uma rasteira na porta do palácio, ou de que alguém aproveite um tapinha nas costas para lhe colar um cartaz de “Chuta Minha Bunda” no paletó.
Os nazistas proibiram, assim que chegaram ao poder, a publicação de horóscopos de Hitler. Pesquisas eleitorais não são peças divinatórias, mas seu papel simbólico, hoje, talvez não seja muito diferente do que os vaticínios astrológicos tinham no tempo de Augusto e Tibério.
O que mostra, é claro, que estão sendo lidas da forma errada. Pesquisa é retrato (falível e sempre meio fora de foco) do momento, não promessa de futuro. Mas a propaganda política insiste em tratá-las como horóscopos – o que acende velhos instintos em quem ainda segue velhos hábitos.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)