No início do mês, o Courier-Journal da cidade de Louisville, no estado de Kentucky (EUA), noticiou que uma quiroprata local havia sido condenada a pagar uma indenização de mais de US$ 1 milhão – incluindo despesas médicas e compensação por danos – a uma paciente que sofreu um derrame após ter o pescoço manipulado (“ajustado”) pela profissional. Diz a notícia:
“Testemunhas declararam que [a paciente] caiu da mesa e vomitou quase imediatamente após o ajustamento, mostrando sintomas clássicos de derrame, como vertigem, tontura, insensibilidade e náusea. Perdeu a consciência, teve de ser entubada na ambulância, levada às pressas ao hospital (...) onde passou por cirurgia de emergência para restaurar o fluxo de sangue às artérias e salvar sua vida. Três das quatro artérias do pescoço tinham sido dissecadas”.
“Dissecção”, no caso, refere-se a um dano no revestimento interno da artéria, que pode servir como ponto focal para a formação de coágulos, que por sua vez podem causar derrames. A conexão entre tratamento quiroprático do pescoço e risco de dissecção é conhecida há vários anos, mas como não existe um sistema de registro de efeitos adversos de terapias alternativas – como há para medicamentos de verdade e vacinas –, o fato é pouco conhecido e as estatísticas, quase que certamente, subestimadas.
A quiropraxia é uma técnica de manipulação dos ossos da coluna vertebral e do pescoço que alega promover a saúde – dependendo do quiroprata com quem se conversa, as promessas vão de reduzir dores nas costas a curar todo e qualquer tipo de doença –, mas que não tem benefícios comprovados pela ciência e cujo suposto mecanismo de ação (a correção de lesões imaginárias nas vértebras, chamadas pelos praticantes de “subluxações”) carece de base biológica. A evidência de que quiropraxia pode funcionar melhor do que um placebo para dores nas costas é fraca, e para qualquer outro tipo de problema de saúde, inexistente.
Em comparação à ausência bons indicadores de benefício, a evidência de dano é muito mais robusta. Uma revisão dos riscos associados à prática, publicada em 2002, apontava incidência de um evento adverso grave para cada milhão de tratamentos, enquanto um levantamento publicado em 2007 sugere que eventos adversos leves ou moderados são sentidos por até 67% de todos os pacientes. Estimativa publicada em 2001 no New England Journal of Medicine falava de um derrame a cada 20 mil manipulações do pescoço, e o site da Associação de Quiropraxia dos Estados Unidos admite que pode haver de dois a três casos de dissecção arterial a cada 100 mil tratamentos.
A inexistência de um sistema formal de registro de eventos adversos leva a números divergentes e imprecisos, mas a notícia do Courier-Journal informa que o mesmo advogado que conquistou a indenização de US$ 1 milhão está litigando pelo menos mais três casos contra quiropratas. Levantamentos indiretos sugerem que a complicação, embora rara, é mais comum do que parece.
Em postagem recente em seu blog pessoal, o médico e pesquisador alemão Edzard Ernst, uma das maiores autoridades mundiais em terapias alternativas, faz um resumo do caso americano e conclui o seguinte: “A verdade é que ninguém pode oferecer dados precisos de incidência. A verdade é que, mesmo se essas complicações forem raras, elas são devastadoras. A verdade é que manipulações do pescoço oferecem muito pouco benefício, ou nenhum. A verdade é que o equilíbrio risco/benefício é negativo”.
A quiropraxia foi inventada nos Estados Unidos, no século 19, por um rematado charlatão chamado D.D. Palmer (cuja imagem ilustra este artigo). Antes de criar sua própria terapia, o primeiro mestre quiroprata vendia “curas magnéticas”. Palmer contava diferentes histórias sobre o surgimento da técnica que o tornou famoso, incluindo a de que ela lhe teria sido revelada por um fantasma. Sendo um produto norte-americano com menos de 200 anos, a quiropraxia dificilmente poderia ser considerada uma forma de terapia tradicional, ou com peso relevante na cultura brasileira. Mesmo assim, conseguiu o prodígio de ser incluída no Plano Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), do Ministério da Saúde, em 2017, durante o governo de Michel Temer.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)