"Vape" de vitamina é bobagem arriscada

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15 fev 2023
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fumaça

Não tenho o costume de me gabar da minha visão, talvez pelo fato de ser modesto, ou porque apresento um grau elevadíssimo de hipermetropia e astigmatismo – deixo você decidir –, mas posso afirmar que vi de longe que os “vapes vitaminados” estavam destinados a chegar ao Brasil (“vape”, para quem não acompanha a transformação marqueteira da linguagem, é o apelido “cool” dado aos cigarros eletrônicos).

A primeira vez que ouvi falar sobre este assunto foi em um texto do farmacêutico Scott Gavura para o blog Science-Based Medicine. O autor discute diversos aspectos dos vapes, desde sua concepção como uma novidade e possível alternativa “saudável” ao fumo e, claro, o aproveitamento dos fabricantes para a criação de um produto que, além de entregar flavorizantes e nicotina, poderia ser veículo de vitaminas.

Após esta brevíssima introdução, Gavura avalia as evidências sobre as alegações de benefício para a saúde e segurança apresentadas pelas empresas que vendem vapes. Em tradução livre:

 “Dentre todos os produtos que examinei e que se utilizavam da roupagem de ‘saudável’, nenhum apresentou informações ou dados que demonstrassem se haviam sido testados, se eram seguros ou, ainda, efetivos. Alguns continham glicerina e propilenoglicol, óleos essenciais e vitaminas. Não há nenhuma publicação que demonstre a segurança destes ingredientes quando vaporizados e inalados. Além disso, nossa evolução não nos capacitou a obter vitaminas por meio da inalação, mas pelo trato gastrointestinal”.

Se você pensou que enganação e alegações indevidas sobre benefícios para a saúde eram o principal problema do vape, sinto desapontá-lo: os cigarros eletrônicos também podem fazer muito mal, como bem apontado por Gavura. A utilização de produtos vaporizados está associada à EVALI (lesão pulmonar induzida pelo cigarro eletrônico) – problema grave de saúde de que trataremos daqui a pouco.

 

E aqui no Brasil?

Transcrevendo ipsis verbis a propaganda que aparece nas redes:

“Aqui está o segredo para manter a alta performance no dia a dia. Com o Power, você garante a energia necessária para realizar as mais variadas tarefas. Sem danos à saúde e com sabor de hortelã cítrica, que deixa ainda mais gostoso. Manter a intensidade fará você ter dias mais produtivos e, a longo prazo, perceber que as vantagens são ainda melhores. Os pods IZ são concentrados vitamínicos elaborados para o dia a dia, nos quais não há adição de nicotina e a absorção de nutrientes é feita pela mucosa e na inalação produzida a baixa temperatura, ou seja, diversos benefícios em um único produto”.

Como nunca ouvi falar desta marca de pods (“pod” é o cartucho que contém o material que será vaporizado pelo cigarro eletrônico e inalado pelo usuário), fui procurar na internet para entender quais vitaminas estavam sendo vinculadas ao produto. Obviamente isto foi um erro. Além de passar raiva com a publicidade, fiquei chocado com as composições apresentadas. Temos coisas como: colágeno (se ingerindo via oral já não funciona, imagina fumando), cafeína, L-lisina, taurina, melatonina, extrato da raiz de valeriana, entre outros. São, em sua maioria, produtos da moda (cafeína e taurina são ingredientes comuns em bebidas energéticas), para os quais não há estudos que corroborem eficácia e segurança na forma vaporizada.

Este é um ponto importante. Não há razão para imaginar que algo que é seguro de ingerir seja também seguro para inalar. E não há razão para supor que uma coisa que tem um efeito sobre o organismo, quando ingerida, vai ter o mesmo efeito quando inalada. São vias diferentes, que levam a órgãos e sistemas diferentes. Quem afirma que segurança e eficácia se mantêm, não importa a via de entrada, está fazendo uma alegação extraordinária e deve apresentar evidência convincente do que diz. O que a indústria do vape não faz.

Se não bastassem todos esses “pormenores”, é preciso falar a respeito dos efeitos adversos que os cigarros eletrônicos ocasionam na saúde; Yang, Sandeep e Rodriguez (2020) realizaram uma revisão sistemática com o intuito de entender os impactos ocasionados pelos cigarros eletrônicos na saúde oral. Os autores revisaram 93 artigos que se dividiam em sete categorias baseadas ou nos sintomas, ou que apresentavam um “foco” específico: efeitos na boca, na garganta, efeitos periodontais, citotóxicos/genotóxicos/oncológicos, no microbioma oral e acidentes.

Como resultado, os autores identificaram que grande parte dos sintomas referentes à garganta e boca experimentados pelos usuários de cigarros eletrônicos eram menores e temporários, quando comparados aos fumantes convencionais. Dentes, gengivas e o microbioma oral tiveram risco de deterioração elevado com o uso do cigarro eletrônico.

Finalmente, alguns componentes presentes no vapor dos cigarros eletrônicos apresentam propriedades citotóxicas (fazem mal para as células), genotóxicas (fazem mal para o DNA) e carcinogênicas. Contudo, vale destacar que esta revisão não separou usuários de cigarros eletrônicos sem nicotina dos com nicotina.

Mais recentemente, BANKS, E. et al (2022) realizaram uma revisão sistemática da evidência global com relação aos cigarros eletrônicos e desfechos de saúde. Os autores avaliaram diversos desfechos. Em alguns casos, viram evidências insuficientes ou inexistentes para estabelecer causalidade entre o cigarro eletrônico e a patologia específica (caso do câncer, doenças cardiovasculares e saúde oral). Em outros, encontraram evidências mais robustas que demonstravam os efeitos deletérios causados pelos e-cigarros na saúde, caso da doença respiratória que mencionamos no início do artigo: EVALI.

Segundo os dados disponíveis, este dano ao pulmão relaciona-se, principalmente, à entrega de THC por meio dos cigarros eletrônicos, sendo metade dos casos relacionada ao uso de THC em conjunto com o acetato de vitamina E. Além disso, 14% dos pacientes reportaram utilizar vapes que transportam, somente, nicotina. Para outros problemas relacionados à saúde respiratória, a evidência mostrou-se insuficiente ou inexistente.

Os autores revisaram ainda 68 estudos que traçavam a relação entre queimaduras e cigarro eletrônico, encontrando evidências de que tal relação existe – ou seja, usuários de vape correm maior risco de sofrer queimaduras.

Além disso, os pesquisadores concluem que os estudos disponíveis até agora trazem fortes evidências de que os cigarros eletrônicos com nicotina são altamente viciantes e prejudiciais à saúde; que seu uso eleva o risco de intoxicação por inalação, envenenamento, queimaduras, lesões aos pulmões, entre outros danos à saúde.

Os autores concluem o artigo em que descrevem seus achados da seguinte forma:

“Há evidências limitadas sobre a eficácia dos cigarros eletrônicos sem nicotina para auxiliar na cessação do ato de fumar. Dados os grandes malefícios proporcionados pelo fumo, os cigarros eletrônicos podem ser benéficos para alguns fumantes que os utilizam para cessar o hábito. Contudo, é necessário lembrarmo-nos das incertezas que sua utilização a longo prazo traz. A evidência atual apoia a realização de esforços nacionais e internacionais para combater a utilização do cigarro eletrônico na população geral e, principalmente, nos não fumantes e jovens. Ademais, são necessárias mais evidências que observem a qualidade, segurança e eficácia dos cigarros eletrônicos como uma potencial ferramenta na cessação do fumo”.

Indo ao encontro de algumas dessas conclusões, a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT) emitiu a seguinte manifestação a respeito do que classifica como “dispositivos eletrônicos para fumar” (DEFs):

“...a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia se posiciona veemente contra a liberação da comercialização, importação e propagandas de quaisquer dispositivos eletrônicos para fumar (...) Vemos com preocupação o aumento do uso desenfreado desses dispositivos, em especial entre os nossos jovens”.

O documento ainda traz considerações que apontam para a relação direta entre o uso agudo ou crônico dos DEFs e o surgimento de várias doenças gastrointestinais, orais e respiratórias, sendo a EVALI a mais conhecida. Ela é descrita pela SBPT como “uma lesão pulmonar atribuída, inicialmente, a alguns solventes e aditivos utilizados nesses dispositivos, provocando um tipo de reação inflamatória no órgão, podendo causar fibrose pulmonar, pneumonia e chegar à insuficiência respiratória”. Nos Estados Unidos, o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) registrou 2.711 casos de EVALI entre 2019 e janeiro de 2020. Segundo dados obtidos por The Intercept por meio da Lei de Acesso à Informação, a Anvisa havia notificado sete casos de EVALI no Brasil até agosto de 2020.

 

“Mas nossos pods não têm nicotina”

De fato, a grande maioria dos estudos tem como objeto os e-cigarros com nicotina, o que pode dar a impressão de que os cigarros eletrônicos sem nicotina seriam um mal menor e uma ferramenta “útil” para aqueles que estão parando de fumar cigarro convencional. Entretanto, será que podemos dar o benefício da dúvida a gente que promove produtos no limite da lei (a Anvisa proibiu o cigarro eletrônico no Brasil em 2009) e promete, descaradamente, que algo que nunca foi testado é seguro e traz benefícios? 

Para exemplificar essa situação, trago dois "causos" não tão distantes:

O primeiro foi descrito pelo jornalista Bruno Vaiano para a Revista Questão de Ciência com relação ao “melzinho afrodisíaco”– caso não tenham lido, façam um bem a si mesmos e leiam na íntegra.

Sintetizando: fabricantes e revendedores anunciaram um produto totalmente natural que auxiliaria na ereção. Contudo, ao analisarem sua composição química, cientistas descobriram que além dos ingredientes descritos, o produto apresentava sildenafila (um fármaco sintético, portanto não “natural”, utilizado para a disfunção erétil).

O segundo caso envolve stickers vitamínicos da KNIT. A alegação era de que os compostos seriam absorvidos pela via transdérmica (“passando” da pele para a corrente sanguínea), o que não seria nada absurdo, em princípio. Mas a fabricante não apresentou estudos que corroborassem a afirmação, utilizou componentes não autorizados pela Anvisa e, por conta disso, teve seus produtos proibidos.

Como já dizia o ditado: “todo dia um malandro e um otário saem de casa e fazem negócio”. Quando nos falta informação e a mentira corre solta, todos somos otários em potencial.

 

Mauro Proença é nutricionista

 

REFERÊNCIAS

GAVURA, S. Vitamins are not for vaping. Science-based Medicine. 2022. Disponível em: https://sciencebasedmedicine.org/vitamins-are-not-for-vaping/.

YANG, I.; SANDEEP, S. e RODRIGUEZ, J. The oral health impact of electronic cigarette use: a systematic review. Critical Reviews in Toxicology, 50:2, 97-127. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/10408444.2020.1713726?scroll=top&needAccess=true&role=tab.

BANKS, E. et al. Electronic cigarettes and health outcomes: systematic review of global evidence. Report for the Australian Department of Health. National Centre for Epidemiology and Population Health, Canberra: April 2022. Disponível em: https://openresearch-repository.anu.edu.au/bitstream/1885/262914/1/Electronic%20cigarettes%20health%20outcomes%20review_2022_WCAG.pdf.

Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. Posicionamento da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT) Sobre os  Dispositivos Eletrônicos Para Fumar (DEFs). 2022. Disponível em: https://sbpt.org.br/portal/wp-content/uploads/2022/04/Posicionamento-SBPT-DEFs.pdf.

VAIANO, B.  Melzinho, ponto H e “Viagra” natural: um guia para os perplexos. 2022. Disponível em: https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/index.php/questao-de-fato/2021/10/21/melzinho-ponto-h-e-viagra-natural-um-guia-para-os-perplexos.

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