O mundo da ciência observou um novo aumento no número de artigos retratados – isto é, removidos da literatura científica pelas mais diversas razões, de simples repetições e erros a casos de má conduta, como fraudes e fabricação de dados – em 2022. Levantamento no banco de dados do Retraction Watch, site dedicado a monitorar este tipo de ação, fundamental no processo de autocorreção da ciência, mostra que quase cinco mil artigos científicos foram alvo de retratação no ano passado, dos quais ao menos 23 com a participação de pesquisadores brasileiros. Em 2021, o mesmo banco de dados registrou pouco mais de 3,7 mil retratações, 12 envolvendo autores ou coautores brasileiros.
A proporção de artigos científicos retratados em relação aos publicados também vem crescendo ano a ano. Em texto com retrospectiva das principais ações do site no ano, Ivan Oransky, um dos fundadores do Retraction Watch, destaca que ela chegou a cerca de oito a cada dez mil estudos publicados, inferior apenas a pico observado em 2015, quando esta proporção atingiu próximo a 10 em dez mil estudos, que creditou tanto à demora nos processos de retratação quanto ao aumento do escrutínio da comunidade científica.
E é justamente graças ao trabalho, muitas vezes voluntário, de cientistas e investigadores amadores que muitos dos artigos com problemas são detectados. É o caso, por exemplo, da microbiologista holandesa Elisabeth Bik, que se tornou conhecida no meio acadêmico por suas denúncias de violações da integridade científica em estudos publicados. No apagar das luzes de 2022, a editora PLOS colocou sob suspeita quase 50 artigos com coautoria de Didier Raoult, médico francês responsável pelo estudo fraudulento que promoveu a cloroquina como possível tratamento para a COVID-19, por potenciais violações éticas, graças a denúncias dela.
Mas Bik nem de longe é a única. Em lista das principais retratações registradas em 2022, a revista The Scientist inclui um grupo de pesquisadores do estado americano de Michigan que relacionou estudos publicados a textos oferecidos por uma fábrica de artigos – conhecidas pela expressão em inglês paper mills –, em que cientistas podem literalmente comprar vaga numa lista de autores. O trio formado por Brian Perron, da Universidade de Michigan, Bryan Victor, da Universidade Estadual Wayne, e o estudante de ensino médio Oliver Hiltz-Perron havia divulgado uma lista com quase 200 artigos suspeitos, muitos deles publicados no International Journal of Emerging Technologies in Learning, no site do Retraction Watch em 2021. No ano passado, o periódico decidiu pela retratação dos estudos.
Em outro caso de retratações em massa citado pela The Scientist, a editora IOP, especializada em física, removeu centenas de artigos de seus periódicos depois que Nick Wise, pesquisador da Universidade de Cambridge especializado em dinâmica de fluidos, alertou ter encontrado um estranho padrão nos títulos de alguns estudos. Após investigação, a IOP descobriu mais artigos suspeitos e concluiu que eles se originaram de uma paper mill, retratando um total de 850 estudos, 350 em fevereiro e outros 500 em setembro de 2022,
As fábricas de artigos, porém, não foram as únicas fontes de fraude. Fechando sua lista, a The Scientist cita diversos casos em que estudos foram retratados por manipulação do processo de revisão por pares (peer review). Em outubro, por exemplo, o periódico Thinking Skills and Creativity, da editora Elsevier, retratou quase 50 artigos por esta razão. Já o International Journal of Electrical Engineering & Education, da editora SAGE, removeu mais de 120 estudos de seus anais, trabalhos que apresentavam vários indicativos de manipulação ou má qualidade da revisão por pares. Em agosto, o periódico PLOS ONE anunciou a retratação gradual de cerca de cem estudos em que os autores teriam tirado proveito da possibilidade de sugerir editores para seus artigos para indicar nomes sem revelar potenciais conflitos de interesse, como colaborações recentes ou afiliação às mesmas instituições.
E, no maior “escândalo” do tipo no ano, em setembro de 2022 a editora Hindawi, do grupo Wiley, anunciou a retratação de 511 artigos publicados em 16 de seus periódicos depois que uma investigação revelou uma verdadeira rede de revisores e editores que manipulava o processo de revisão por pares. A equipe de integridade científica da Hindawi encontrou casos de revisões duplicadas, isto é, com o mesmo parecer usado em artigos diferentes, um elevado número de revisões sendo realizadas por um único revisor, revisores que emitiam seus pareceres extremamente depressa e o mau uso das bases de dados das publicações para vetar revisores potencialmente mais rigorosos.
Apesar do aumento no número de retratações, a comunidade científica ainda tem muito trabalho pela frente para enfrentar a má conduta. Em texto publicado pelo próprio Oransky na prestigiosa revista Nature em agosto do ano passado, o cofundador do Retraction Watch estima que algo como um em cada 50 estudos publicados, ou seja, 2%, cairia em pelo menos um dos critérios para retratação delineados pela iniciativa COPE (sigla em inglês para Comitê de Ética em Publicação), entre eles “claras evidências de que os achados não são confiáveis”, seja por falsificação de dados, plágio, manipulação da revisão por pares ou outros erros não intencionais ou fraudulentos, como uso de linhagens celulares contaminadas nas pesquisas ou outras falhas no dia a dia dos laboratórios.
Assim, argumenta Oransky, embora o aumento do escrutínio público das publicações - inclusive com denúncias em redes sociais, em iniciativas coletivas como o PubPeer.com e até para a imprensa generalista - tenha levado alguns periódicos e editoras a contratar profissionais para cuidar especificamente da integridade científica e criar colaborações como o STM Integrity Hub, para compartilhar técnicas e ferramentas para detectar e combater a má conduta, os sistemas e processos de retratação em geral ainda são “comicamente desajeitados, lentos e opacos”, podendo demorar anos.
Pior, aponta Oransky, são os casos de artigos que, apesar de retratados, continuam a basear ou informar outras pesquisas e a serem citados, “contaminando” a literatura científica. Para além do caso emblemático do estudo fraudulento do ex-médico britânico Andrew Wakefield que relacionou a vacina tríplice viral com casos de autismo – só retratado pela revista Lancet em 2010, 12 anos depois de sua publicação em 1998, e que até hoje alimenta movimentos antivacina -, ele dá como exemplo levantamento publicado em setembro do ano passado com mais de 400 pesquisadores na área de anestesiologia no qual 89% admitiram não saber que ao menos um dos artigos citados em seus estudos recentes havia sido retratado, em geral por não terem prestado atenção aos avisos de remoção nos sites dos periódicos ou bases de dados (62%), ou por terem usado uma cópia armazenada de ditos artigos (11%).
“Limpar a literatura vai requerer mais que apenas alertas para autores que estão elaborando listas de citações. As editoras devem incorporar checagens confiáveis de retratações nos seus processos de submissão e revisão (de artigos)”, recomenda Oransky. “As retratações devem ser apoiadas como parte essencial de uma ciência saudável. Os investigadores devem ser remunerados e ter acesso a ferramentas que melhorem sua caçada por erros e fraudes – e não enfrentar a ridicularização, assédio e ameaças de ações judiciais. As editoras devem criar um fundo para pagá-los, algo similar aos ‘prêmios por bugs’ que recompensam hackers que detectam falhas em sistemas de segurança computacionais. Ao mesmo tempo, as instituições devem avaliar apropriadamente pesquisadores que querem honestamente corrigir a literatura. As retratações não devem ser destruidoras de carreiras, e aqueles que buscam corrigir erros honestos devem ser celebrados”.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência