A lenda dos tentilhões de Darwin

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6 dez 2022
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tentilhão

 

Todo mundo sabe que Charles Darwin participou de uma viagem ao redor do mundo a bordo do H. M. S. Beagle, e que, ao visitar o Arquipélago de Galápagos (entre setembro e outubro de 1835), coletou cuidadosamente espécimes de pássaros tentilhões, reparou que o bico variava consideravelmente entre tentilhões de ilhas diferentes, cada qual servindo às suas necessidades alimentares específicas. Então, percebeu que poderia explicar essa variação se as espécies de cada ilha fossem descendentes de uma forma ancestral que chegou ao arquipélago vindo do continente. E esse foi o ponto de virada pare que considerasse fortemente a evolução como possibilidade real. Daí em diante, passou a refletir sobre o assunto, culminando na publicação de sua obra “A Origem das Espécies”. É isso, não é? Não, não é bem assim!

A lenda dos “tentilhões de Darwin” é famosa entre os estudiosos da história da biologia evolutiva. Frank Sulloway (1982), no agora clássico artigo “Darwin e seus tentilhões: a evolução de uma lenda”, demonstrou que a lenda, sob esse formato, provavelmente se deve à popularização dos tentilhões após a publicação do livro “Tentilhões de Darwin”, de autoria do biólogo evolutivo David Lack (1947); a interpretação de Sulloway, por sinal, foi ainda mais fortalecida quando Marx & Bornmann (2014) demonstraram que o livro de Lack passou a ser extremamente citado.

Darwin tratou brevemente dos tentilhões em duas publicações: “Journal of Researches” (1845) e “A Origem das Espécies” (1859). Já que o segundo lida especificamente sobre evolução, ou descendência com modificação, como preferia Darwin, esperamos ver um tratamento detalhado sobre os tentilhões, seus bicos e a distribuição geográfica deles no arquipélago. É esse o caso? Não. Os tentilhões são mencionados por volta de três vezes no livro “A Origem das Espécies”, num contexto geral sobre aves, não especificamente sobre como moldaram sua visão, e sem trazer qualquer tratamento evolutivo muito específico a respeito deles.

Como sumarizado por Padian (2009) em seu artigo “Dez Mitos Sobre Charles Darwin”, Darwin até foi meio desleixado quanto aos tentilhões:

“Darwin não reconheceu [todos] os tentilhões como tentilhões; ele pensou que eram [outros] tipos [de aves]. Excepcionalmente, ele não manteve um registro cuidadoso das ilhas de onde vieram as várias aves; isso teve que ser reconstruído a partir dos registros de outros membros do navio, como o capitão [Robert FitzRoy] e Syms Covington (um grumete e, posteriormente, assistente de Darwin)”

Sulloway (1983) ainda chama atenção para outros pontos relevantes. Das pelo menos 13 espécies de tentilhões identificadas pelo ornitólogo John Gould, Darwin interpretou incorretamente a dieta de 11 delas — para ele, todas teriam a mesma dieta. Como ele poderia, então, criar um cenário de um tentilhão ancestral dando origem a espécies diferentes, cada uma adaptada para uma dieta específica, se acreditava que a maioria tinha a mesma dieta? Adicionalmente, Sulloway (1983) ressalta que, pessoalmente, Darwin não estava convencido de que todos os tentilhões de Galápagos descendiam de um único ancestral colonizador, embora, sim, ele tivesse sugerido em seu “Journal of Researches” (1845), de forma tímida e hesitante, que esse poderia ser o caso. Darwin foi feliz em sua cautela, pois após “A Origem das Espécies” o mais comum era pensar que os tentilhões descendiam de dois ou três ancestrais colonizadores diferentes.

Sobretudo por esses motivos é que Darwin não fez dos tentilhões um exemplo cabal de suas ideias em “A Origem”. Na verdade, se é para algum tipo de ave receber essa fama, deveriam ser os mockingbirds de Galápagos (aves da família Mimidae; manteremos o termo “mockingbirds” na ausência de uma tradução melhor: no Brasil, pertencem à família diversas espécies de sabiá); por sinal, eles têm lugar até no índice remissivo de “A Origem”, algo que os tentilhões não têm, pelo menos não na primeira edição.

A primeira nota ornitológica que Darwin fez enquanto no arquipélago de Galápagos foi sobre um mockingbird que ele achou muito similar a uma forma do continente sul-americano, fazendo a relação, portanto, entre a fauna da ilha e a do continente (Chancellor & Keynes, 2006).  A forma mais atenciosa com que Darwin tratou essas aves está, inclusive, registrada em seu “Journal of Researches” (1845), num trecho que reflete notas (ver Barlow, 1963) que ele tomou quando ainda viajava com o Beagle:

“Minha atenção foi primeiro totalmente despertada, comparando os numerosos espécimes de mocking-trushes [um tipo de mockingbird], abatidos por mim e várias outras pessoas a bordo, quando, para meu espanto, descobri que todos os da Ilha Charles pertenciam a uma espécie (Mimus trifasciatus); todos de Albemarle Island a M. parvulus; e todas das ilhas James e Chatham (entre as quais duas outras ilhas estão situadas, como elos de conexão) pertenciam a M. melanotis.”

Por sinal, nessas mesmas notas, agora escrevendo após sua estadia em Galápagos, Darwin compara a situação dos mockingbirds e das tartarugas de Galápagos e escreve estas tão famosas linhas da história da biologia evolutiva:

“Quando me lembro do fato de que [pela] forma do corpo, forma das escamas e tamanho geral, os espanhóis podem pronunciar imediatamente de qual ilha qualquer tartaruga pode ter sido trazida; quando vejo essas ilhas à vista umas das outras e possuindo apenas um estoque escasso de animais, habitadas por esses pássaros, mas ligeiramente diferentes em estrutura e preenchendo o mesmo lugar na natureza; Devo suspeitar que são apenas variedades. O único fato semelhante de que estou ciente é a constante diferença afirmada entre a raposa parecida com um lobo das Ilhas Falkland do Leste e do Oeste. Se houver o menor fundamento para essas observações, valerá a pena examinar a zoologia dos arquipélagos; pois tais fatos minariam a estabilidade das espécies”.

No verão de 1837, já de volta à sua terra natal, Darwin abriu o primeiro de seus cadernos sobre “transmutação das espécies”. Num deles, formalmente conhecido como Caderno B (Darwin, 1837—1838), escreveu livremente, fazendo questão de mencionar os mockingbirds, mas não os tentilhões:

“Deixemos um par ser introduzido [a uma área] e aumentar lentamente, de muitos inimigos, de modo que muitas vezes se acasalem; quem ousará dizer o resultado? De acordo com essa visão, os animais em ilhas separadas deveriam se tornar diferentes se mantidos separados por tempo suficiente, com circunstâncias ligeiramente diferentes. Agora, tartarugas de Galápagos, mockingbirds, raposa das Falkland, raposa de Chiloé, lebre inglesa e irlandesa”

Confirmando as suspeitas de Darwin, John Gould identificou três espécies de mockingbirds, que habitam quatro ilhas distintas. O caso complexo e mais incerto dos tentilhões Darwin deu mais detalhamento em seu “Grande Livro das Espécies”, em produção entre 1856 e 1858, que ele pretendia publicar sob o título “Seleção Natural”. Mas como é de comum conhecimento, Darwin recebeu a famosa carta de Alfred R. Wallace em 1858 e então teve de se apressar e escrever um resumo (do qual podou a discussão sobre os tentilhões), que conhecemos como “A Origem das Espécies”. O livro “Seleção Natural” só foi publicado em 1975 com base nos manuscritos deixados por Darwin (Stauffer, 1975). Ou seja, Darwin conscientemente deletou de sua grande obra partes relativas aos tentilhões. Segundo Sulloway (1983):  

“Ele evidentemente sentiu que quanto mais geral ele tornasse a discussão sobre Galápagos (especialmente em relação aos tentilhões), melhor para ele. No entanto, a lenda surgiu mais tarde, e continua viva, de que os tentilhões de Darwin não apenas converteram Darwin à teoria da evolução – como num eureca - mas também ‘merecidamente ocuparam um lugar de orgulho na Origem’”.

Infelizmente, a lenda ainda persiste. Mas agora você está melhor equipado com fatos para combatê-la!

 

João Lucas da Silva é mestrando em Paleontologia, Universidade Federal do Pampa

Referências

Darwin, C. R. 1845. Journal of researches into the natural history and geology of the countries visited during the voyage of H.M.S. Beagle round the world, under the Command of Capt. Fitz Roy, R.N. 2d ed. London: John Murray. http://darwin-online.org.uk/content/frameset?itemID=F14&pageseq=1&viewtype=text

Darwin, C. R. 1859. On the origin of species by means of natural selection, or the preservation of favoured races in the struggle for life. London: John Murray. [1st edition] http://darwin-online.org.uk/content/frameset?itemID=F373&viewtype=side&pageseq=1

Marx, Werner; Bornmann, Lutz. Tracing the origin of a scientific legend by reference publication year spectroscopy (RPYS): the legend of the Darwin finches. Scientometrics, v. 99, n. 3, p. 839-844, 2014. https://doi.org/10.1007/s11192-013-1200-8

Sulloway, Frank J. The legend of Darwin's finches. Nature, v. 303, n. 5916, p. 372-372, 1983. https://doi.org/10.1038/303372a0

Sulloway, Frank J. Darwin and his finches: The evolution of a legend. Journal of the History of Biology, v. 15, n. 1, p. 1-53, 1982. https://doi.org/10.1007/BF00132004

Padian, Kevin. Ten Myths about Charles Darwin. BioScience, v. 59, n. 9, p. 800-804, 2009. https://doi.org/10.1525/bio.2009.59.9.11

Stauffer, RC. Darwin's" Big Book": Charles Darwin's Natural Selection. Being the Second Part of His Big Species Book Written from 1856 to 1858. Ed. Cambridge University Press, New York, 1975. http://darwin-online.org.uk/content/frameset?keywords=selection%20natural%20stauffer&pageseq=3&itemID=F1583&viewtype=text

Barlow, Nora ed. 1963. Darwin's ornithological notes. Bulletin of the British Museum (Natural History). Historical Series Vol. 2, No. 7, pp. 201-278. With introduction, notes and appendix by the editor. http://darwin-online.org.uk/content/frameset?itemID=F1577&viewtype=text&pageseq=1

Chancellor, Gordon; Keynes, Randal. Darwin’s field notes on the Galapagos:‘A little world within itself’. Darwin Online, 2006. http://darwin-online.org.uk/EditorialIntroductions/Chancellor_Keynes_Galapagos.html

Darwin, C. R. 1837-1838. Notebook B: [Transmutation of species]. CUL-DAR121.- Edited by John van Wyhe (Darwin Online, http://darwin-online.org.uk/)

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