Quando analisados a fundo, movimentos anticientíficos não têm conteúdo, têm estratégia. Como suas afirmações são vazias – falaciosas, inconsistentes e contrárias à evidência –, o que há de realmente substantivo neles não reside nas alegações que fazem, e sim na forma como essas alegações, em si insustentáveis, são embaladas e apresentadas ao público.
E como o conteúdo é irrelevante, as estratégias são facilmente intercambiáveis. Já tratamos das manobras retóricas – modos de discurso que tentam fazer o incoerente soar razoável – antes (por exemplo, aqui e aqui), mas também há modos de ação política que podem ser facilmente compartilhados. A “estratégia da cunha”, por exemplo, gestada em think tanks criacionistas, agora é abraçada pelo movimento antivacinas, graças à onda de desinformação que acompanhou o vírus SARS-CoV-2 pelo mundo.
A “estratégia da cunha” surgiu nos Estados Unidos, nos anos 1990, com o objetivo inicial de minar o apoio ao ensino da evolução nas escolas públicas, promovendo a pseudociência do “design inteligente” (DI) para construir, na opinião pública, a falsa percepção de que haveria uma “controvérsia” científica legítima em torno dos princípios fundamentais da biologia evolutiva.
A ideia, no entanto, era usar o DI como uma cunha para “rachar” o tronco da cultura ocidental que, segundo os proponentes da estratégia, teria sido infectada por um “materialismo” nocivo e precisaria de uma correção de rumo, de volta a princípios teológicos cristãos. A história do movimento como um todo é descrita em detalhes no livro “Creationism’s Triojan Horse”, de Barbara Forrest e Paul R. Gross. O documento original da estratégia diz:
“Estamos convencidos de que, para derrotar o materialismo, precisamos podá-lo na fonte. E essa fonte é o materialismo científico. Esta é exatamente a nossa estratégia. Se enxergamos a ciência materialista predominante como uma árvore gigante, nossa estratégia pretende operar como uma cunha que, embora relativamente pequena, pode rachar o tronco quando aplicada a seus pontos fracos”.
Essa ideia geral – construir uma falsa controvérsia para explorar “pontos fracos” na compreensão pública da ciência e na própria opinião pública, e assim causar um “racha” cultural de grandes proporções – foi adotada, ipsis litteris, pelo movimento antivacinas, que viu na COVID-19 não uma tragédia, mas uma oportunidade.
A falsa controvérsia foi atiçada por meio de dúvidas infundadas sobre a segurança de vacinas devidamente testadas e aprovadas; os “pontos fracos”, a incompreensão dos processos de criação e aprovação dos imunizantes para COVID-19, e a desconfiança intrínseca do público frente a discursos de autoridade; a árvore cultural a ser rachada, por sua vez, era a aceitação social da vacinação, quaisquer que sejam as vacinas, antigas ou novas, como estratégia válida e necessária de saúde pública.
E a árvore está rachando.
No caso do DI, as “falhas” na biologia evolutiva eram apontadas nos detalhes menos populares da evolução darwiniana, aproveitando-se do fato de que a maior parte das pessoas conhece somente um dos processos envolvidos, a seleção natural, e acaba usando-o como sinônimo da teoria evolutiva. Uma das estratégias mais conhecidas do DI é a redução da teoria evolutiva a uma expectativa impossível de que cada mutação, cada característica nova, cada etapa evolutiva, teria que ter conferido uma vantagem ao indivíduo, caso contrário não teria sido selecionada.
Usando o exemplo preferido dos criacionistas – o do flagelo da bactéria: ali encontram-se tantas etapas, envolvidas num mecanismo tão complexo, que não seria possível imaginar que cada uma delas tenha sido selecionada por conferir alguma vantagem específica.
O DI descarta completamente o mecanismo de deriva genética (mutações ou modificações que se fixam ao acaso, não por serem vantajosas, mas porque não são prejudiciais), e também o fato de que, muitas vezes, a evolução dá novos usos a mecanismos pré-existentes, preservados pela seleção natural porque cumpriam outras funções. No caso do flagelo, uma das estruturas falaciosamente apontadas como “impossível” de ter sido selecionada “por si só” fazia parte de um sistema de secreção antes de ser cooptada para o novo papel.
Assim também com as vacinas: o movimento antivax distorce detalhes técnicos de maneiras que soam plausíveis para os não especialistas. Um exemplo é a tentativa de gerar desconfiança em relação às vacinas de mRNA, com a falsa alegação de que podem interferir no genoma humano: embora desprovida de base factual, a afirmação pode ressoar entre as pessoas que ouviram falar de RNA pela última vez no ensino médio, e se lembram vagamente dele como uma molécula ligada ao trabalho do DNA.
A frase “eu não sou criacionista, mas...”, pode facilmente ser substituída por “eu não sou antivacinas, mas...”, onde após o “mas” pode-se acrescentar desde “como você explica o flagelo da bactéria” a até “como você explica a vacina de COVID-19 ter sido feita tão rápido”? Ambas as questões têm resposta. O flagelo explica-se usando a teoria correta de evolução darwiniana, e não apenas uma parte dela, e a rapidez nas vacinas explica-se examinando a eficácia e segurança dos testes clínicos, e o tamanho do investimento e colaboração internacional que permitiu que as primeiras vacinas fossem desenvolvidas em tempo recorde.
Além das “falhas” técnicas, a estratégia da cunha no movimento antivacinas tenta explorar supostas falhas sociais e políticas. E aí o discurso muda para “eu não sou antivacinas, mas acho que devem ser opcionais”. Novamente, usa-se parte do conhecimento e excluem-se detalhes importantes.
Parte-se do pressuposto – errado – de que a função única das vacinas é proteger o indivíduo, como se fosse o tratamento de uma doença grave, onde o paciente tem o direito de escolher se quer ou não se tratar, direito que deve ser respeitado, uma vez que a pessoa tenha acesso esclarecido a todas as opções e consequências. No caso das vacinas, trata-se de estratégia de saúde pública. A vacinação não protege apenas o indivíduo, mas o coletivo, e sua capacidade de proteger o indivíduo varia de acordo com a eficácia da vacinação coletiva. Quanto mais gente estiver vacinada, menos o microrganismo causador da doença circula. Portanto, a proteção torna-se mais efetiva.
Assim, é perfeitamente justificável associar vacinas a incentivos ou sanções da vida civil, assim como é perfeitamente justificável não vender antibióticos sem prescrição, para permitir um maior controle da proliferação de bactérias multirresistentes. Mas não vemos protestos e movimentos organizados para que a venda seja irrestrita, pois determinado grupo da sociedade quer ter o “direito” de tomar antibiótico quando e como quiser. Também não vemos movimentos organizados de pessoas que se recusam a usar o cinto de segurança, ou que exigem a prerrogativa de dirigir alcoolizadas.
Também busca-se ofuscar a opinião pública com expectativas impossíveis: a exigência de que vacinas sejam 100% eficazes com 0% de efeitos colaterais. Não existe intervenção ou comportamento humano com essas características, tudo o que fazemos, comemos, ou utilizamos apresenta uma relação de custo-benefício, que geralmente também depende da dose, e de uma relação de probabilidade.
As tentativas de demonizar as vacinas para COVID-19 representam, enfim, a “cunha” que busca quebrar a própria ideia de vacinação como política de saúde pública, e talvez até a legitimidade do conceito de “saúde pública” em si.
Coberturas para vacinas infantis estão em queda, e o mundo observa perplexo a volta de doenças como sarampo e poliomielite. Em partes dos Estados Unidos, a desconfiança insuflada contra as vacinas para COVID-19 começa a se refletir nas demais imunizações. No Brasil, o governador bolsonarista eleito de São Paulo, Tarcísio de Freitas, surfando na onda de sentimento antivax criada por seu padrinho político durante a pandemia, já fala em relaxar as normas de vacinação do estado.
No caso do DI, desde sua primeira aparição como “teoria”, em 1997, com a publicação do livro “A Caixa-Preta de Darwin”, até sua exclusão definitiva do sistema de educação pública americano, por uma decisão judicial em 2005, transcorreu quase uma década. A diferença é que criacionismo não tem efeitos tão drásticos e imediatos quanto deixar de vacinar.
Natalia Pasternak é microbiologista, presidente do Instituto Questão de Ciência, professora adjunta em Columbia University, professora convidada da FGV-SP. É membro do Committee for Skeptical Inquiry (CSI), colunista do jornal O Globo e coautora de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e “Contra a Realidade” (Papirus 7 Mares).
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)