Nenhuma vacina vai mexer com o seu DNA

Questão de Fato
25 nov 2020
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DNA helix

 

As vacinas para COVID-19 que vierem a ser aprovadas para uso no Brasil e no mundo não vão alterar o DNA nas pessoas vacinadas, causando defeitos genéticos, câncer, mutações que podem ser passadas para as próximas gerações, nem marcando suas células com o Número da Besta ou apagando os genes que supostamente fazem as pessoas acreditar em religião ou sentir atração pelo sexo oposto (sim, esses três últimos boatos andaram circulado em certas rodas).

Com a produção de vacinas sendo o holofote de todos os veículos de informação, as teorias conspiratórias a respeito também crescem a cada dia. Se fosse encarada como uma dúvida sincera em vez de uma insinuação maliciosa, o questionamento sobre o risco de alguma vacina modificar nosso DNA seria um ótimo pretexto para explicar o maravilhoso mundo da biologia molecular, engenharia genética e vacinas de terceira geração.

Para entender como funcionam as vacinas de material genético, precisamos primeiro lembrar como é a linha de produção de moléculas que existe dentro de cada célula.

Vamos começar lembrando de algumas estruturas das células de animais. Pensem em dois balões, um dentro do outro. O balão de fora está mais cheio e é maior. Já o segundo balão, o de dentro, é significativamente menor, mas também está cheio. A bexiga de fora representa a membrana plasmática que separa a célula do resto do mundo, e a bexiga de dentro, a carioteca, que nada mais é do que a membrana que envolve o núcleo das células animais. O DNA fica no núcleo.

Lá dentro está o material genético, que contém as informações para produzir as mais diversas proteínas. Essa informação tem que ser muito bem guardada. No núcleo tem início a cadeia de produção das proteínas.

As vacinas de primeira geração, de vírus inativado ou atenuado, nem chegam a entrar na célula (vírus inativado) e, se entram, nem passam perto do núcleo (vírus atenuado). As de segunda geração, que usam proteínas típicas do agente causador da doença para despertar o sistema imune, também nem passam pela membrana plasmática: fazem o trabalho do lado de fora.

 

Fábrica celular

Os boatos sobre “modificação genética” causada por vacinas envolvem as vacinas de tecnologia mais avançada, de terceira geração. Essas são as vacinas de RNA e DNA. Vamos ver a lógica por trás delas.

A informação contida no DNA guardado no núcleo está codificada e precisa, para ser usada pela célula, ver-se traduzida em outra “língua”: o RNA. Assim que a mensagem do DNA é copiada em RNA, ainda no núcleo, ela é então levada para o citoplasma, o líquido que preenche o espaço entre as duas bexigas. É no citoplasma que fica o resto da maquinaria celular. Essa maquinaria consegue ler a informação, agora em forma de RNA, e usá-la para produzir as proteínas que vão desempenhar as funções necessárias para manter o animal vivo e saudável.

Muito bem, agora podemos ver qual a estratégia das vacinas de RNA, como é o caso da vacina da Pfizer, por exemplo. O RNA já é a informação pronta para ser traduzida em proteínas. Como basta a presença do RNA mensageiro no citoplasma para que a proteína que ele codifica seja produzida, não há passagem pelo núcleo e nem contato com o DNA da pessoa vacinada. O DNA fica lá, trancado na carioteca, e a vacina passa longe.

O que precisamos fazer, no caso concreto da vacina para COVID-19, é bolar uma maneira de colocar, no citoplasma, a mensagem de RNA que manda produzir a famosa proteína spike do coronavírus. Assim que essa informação chega ao citoplasma das células, ela é prontamente traduzida para a proteína spike.

Quase tudo que é produzido dentro de uma célula humana passa por um processo de inspeção, então assim que a proteína spike é produzida, ela é apresentada para o sistema imune. Esse sistema percebe que a proteína não é natural do organismo e entra em alerta para quando encontrar algo semelhante no futuro.

 

No núcleo

Já as vacinas de DNA – e nenhuma das que anunciaram resultados positivos até agora é desse tipo –, precisam, sim, entrar no núcleo. Mas vamos ver isso com calma.

Toda a ideia por trás das vacinas de DNA é parecida com as vacinas de RNA. Queremos que nossas células produzam algumas proteínas do vírus. No caso do coronavírus, a proteína spike. O que torna a vacina de DNA diferente é que a informação para produzir a proteína não vem pronta como nas vacinas de RNA, está codificada em forma de DNA. Mas a informação em forma de DNA precisa primeiro ser transcrita para RNA, e no caso da espécie humana, esse processo é feito exclusivamente no núcleo.

E por esse motivo, as vacinas de DNA precisam ter acesso ao núcleo. Porém, como foi dito, não é tão simples entrar no núcleo das células. Ainda bem! Senão seria relativamente fácil bagunçar nosso genoma. Para ultrapassar a barreira que separa o núcleo do citoplasma, colocamos a informação para produzir a proteína spike do vírus em plasmídeos, que nada mais são do que moléculas de DNA circulares de fita dupla. Imagine uma escada com dois corrimãos em forma de caracol. Imagine também essa escada cheia de voltas e que o fim dela liga-se ao começo. Isto é um plasmídeo.

Além do DNA que codifica para o RNA do vírus SARS-CoV-2, o plasmídeo é montado com uma sequência extra que funciona como uma chave para acessar o núcleo da célula, que, por razões óbvias, tem acesso restrito. Não queremos qualquer um entrando lá.

Uma vez no núcleo, o DNA do plasmídeo é traduzido em RNA mensageiro, que é devolvido ao citoplasma, onde vai comandar a produção de proteína spike. A partir daí, tudo funciona como no caso da vacina “simples” de RNA.

 

Testes e mais testes

E o plasmídeo que ficou boiando dentro do núcleo, o que acontece com ele? Ele pode, sim, em teoria, integrar-se ao genoma. Mas a tecnologia – que, vale a pena lembrar, não faz parte de nenhuma das vacinas para COVID-19 que se encontram na reta final para aprovação – está sendo refinada para evitar isso.

Uma condição primordial para que vacinas de DNA fiquem prontas e sejam liberadas é garantir que o plasmídeo não irá se aconchegar no genoma da célula hospedeira. Estes plasmídeos não começaram a ser testados ontem. Já percorremos um longo caminho de pesquisa básica com eles.

A Food and Drug Administration (FDA), órgão do governo dos Estados Unidos que regulamenta o mercado de medicamentos e tratamentos de saúde, exige que estudos com vacinas de DNA realizem testes rigorosos sobre a localização, persistência e possível integração dos plasmídeos. Estes testes servem para examinar se existe o risco de a proteína-alvo codificada no plasmídeo aparecer em locais indesejados, seja no ponto da injeção ou em células de outros órgãos.

Um estudo típico de distribuição e persistência avalia a presença de plasmídeo em um conjunto de tecidos coletados em diversos momentos, indo de alguns dias a vários meses após a administração da vacina em teste pré-clínicos, feitos em mamíferos não humanos. O painel de tecidos inclui tipicamente sangue, coração, cérebro, fígado, rim, medula óssea, ovários/testículos, pulmão, linfonodos de drenagem, baço, músculo no local de administração e subcutâneo no local da injeção.

A FDA recomenda que a sensibilidade do teste seja suficiente para detectar menos de cem cópias de plasmídeo por micrograma de DNA. Isso é muito DNA e pouco plasmídeo. Uma alegação de “não persistência” requer que a quantidade de plasmídeo em cada local fique abaixo deste limite. Estudos que examinam a distribuição/persistência de plasmídeo indicam que as vacinas de DNA, preparadas a partir de um plasmídeo comum, mas que codificam diferentes proteínas, comportam-se de maneira semelhante.

Esses estudos já foram feitos com diversos modelos de plasmídeo e, com base nessas descobertas, os estudos de distribuição podem ser dispensados para vacinas de DNA produzidas pela inserção de um novo gene em um vetor plasmídeo previamente documentado como seguro. Isso é uma grande vantagem, uma vez que para as próximas pandemias podemos apenas trocar essa sequência para, em vez produzir a spike, ter uma outra proteína de interesse.

 

Luiz Gustavo de Almeida é doutor em microbiologia e pesquisador do Laboratório de Genética Bacteriana do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, e atual coordenador nacional do Pint of Science no Brasil

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