EMDR na psicologia clínica: quando a prática vem antes da prova

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22 out 2022
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Uma técnica relativamente recente está no centro de uma polêmica no mundo da psicologia clínica. Conhecida como EMDR - sigla em inglês para eye movement desensitization and reprocessing, ou dessensibilização e reprocessamento por meio de movimentos oculares, em tradução livre -, ela foi desenvolvida no fim dos anos 1980 como alternativa para o tratamento de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), incluído na terceira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), a “bíblia” da saúde mental, publicado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA), no início daquela década. Inclusão que alimentou um “boom” de pesquisas em torno do tema.

Desde então, a EMDR tem sido cada vez mais usada no tratamento do transtorno, e com o tempo passou a integrar diretrizes de atendimento de instituições como o Departamento de Assuntos de Veteranos dos EUA e a Organização Mundial da Saúde (OMS). Além disso, ultimamente ela vem sendo indicada como opção terapêutica para condições que vão de outros transtornos de ansiedade, como fobias, à depressão, disfunções sexuais, transtornos alimentares e até esquizofrenia, numa ampliação que seus críticos dizem ser indevida, dada a escassez de evidências.

Segundo os críticos, a técnica nem sequer demonstrou ser superior a alternativas mais bem estabelecidas e comprovadas para tratamento do TEPT, como as terapias de exposição prolongada e cognitivo-comportamental (TCC) – das quais a EMDR toma “emprestado” boa parte de seu protocolo -, bem como a falha em estabelecer a validade terapêutica de seu principal diferencial, a importância conferida aos “movimentos oculares” que lhe dão nome. Ou, como resumiu o psicólogo Richard McNally, professor de psicologia clínica da Universidade de Harvard e um dos principais questionadores de sua ampla adoção, “o que é eficaz na EMDR não é novidade, e o que é novidade não é eficaz”.

 

Sinais de alerta

Um dos grandes problemas da EMDR é que ela guarda muitas semelhanças com pseudociências, a começar com a história de sua criação pela americana Francine Shapiro (1948-2019). Mestra e professora de literatura inglesa, Shapiro buscava um doutorado na área quando foi diagnosticada com câncer em 1979. Recuperada da doença, ela mudou de campo e passou a estudar os efeitos do estresse no sistema imune, obtendo um diploma de psicologia pela hoje extinta Escola Profissional de Estudos Psicológicos de San Diego, instituição suspeita de ser uma “fábrica de diplomas” que, apesar de não credenciada pela Associação Americana de Psicologia, à época era reconhecida pelo estado da Califórnia para obtenção de uma licença para atuar como psicólogo.

De acordo com os relatos mais comuns, Shapiro “descobriu” a técnica por acaso, em 1987. Durante uma caminhada num parque, ela teria notado que pensamentos perturbadores que estava tendo pareciam diminuir de intensidade quando movimentava os olhos de um lado para o outro. Intrigada, Shapiro começou a aplicar a técnica em seus pacientes, segundo ela obtendo resultados positivos na redução de seus níveis de ansiedade com apenas uma sessão da nova terapia. Assim, em 1988 ela escreveu um artigo de estudo-piloto com 22 de seus pacientes, aceito para publicação pelo Journal of Traumatic Stress Studies em 1989 sob o título “Efficacy of the Eye Movement Desensitization Procedure in the Treatment of Traumatic Memories” (Eficácia do Procedimento de Movimentos Oculares de Dessensibilização no Tratamento de Memórias Traumáticas, em tradução livre).

Shapiro então continuou a desenvolver sua abordagem e especular sobre mecanismos de ação, que de início relacionou aos chamados movimentos rápidos dos olhos (REM, na sigla em inglês) característicos da fase do sono em que sonhamos. Contraditoriamente, porém, ela acabou por incluir estímulos bilaterais táteis e auditivos ao protocolo, aparentemente afastando-se desta ideia.

Em sua formulação atual, os proponentes da EMDR argumentam que os estímulos bilaterais usados pela técnica – como seguir o dedo do terapeuta de um lado para o outro, forçando uma espécie de movimento sacádico (rápido) dos olhos enquanto o paciente mantém em mente a memória de uma situação traumática – suscitam uma “atenção dual” simultânea, interna e externa, promovendo primeiro uma dessensibilização ao trauma e depois permitindo que ele o reprocesse.

Tais efeitos têm como base um arcabouço teórico também desenvolvido por Shapiro que relaciona fortemente processos fisiológicos com neurológicos, num modelo que chamou inicialmente de Processamento Acelerado de Informação e depois rebatizou de Processamento Adaptativo de Informação (em ambos os casos, AIP, na sigla em inglês). Sob esta égide, os estímulos bilaterais e outros componentes do protocolo da EMDR ajudariam a “destravar” condições patológicas provocadas por “informações armazenadas de maneira disfuncional, para que possam ser apropriadamente assimiladas por meio de um sistema de processamento dinamicamente ativado”, conforme a própria Shapiro escreveu em seu primeiro manual sobre a técnica e sua aplicação, publicado em 1995.

Enquanto trabalhava no desenvolvimento da técnica, Shapiro também se esforçou intensamente na divulgação e disseminação de sua “descoberta”. Ainda no fim dos anos 1980, ela viajou a Israel para instruir psicólogos do país que estavam lidando com os efeitos de guerras em seus pacientes. Desde a fundação em 1990, por sua vez, seu Instituto EMDR já formou dezenas de milhares de terapeutas usando um sistema de certificação proprietário da técnica, ensinada em workshops que originalmente duravam apenas dois dias, e hoje podem ser completados em dois finais de semana.

 

 

Escrutínio e controvérsias

A rápida disseminação e adoção da EMDR, no entanto, também logo atraiu a atenção, e o escrutínio, da comunidade científica. Ensaios clínicos buscavam avaliar a real eficácia da técnica e compará-la a outras terapias disponíveis para o estresse pós-traumático, enquanto estudos de “desconstrução” (component-control experiments, ou experimentos de controle de componentes) procuravam determinar a importância e impacto de seus principais diferenciais – em especial os procedimentos de atenção dual, na forma dos estímulos bilaterais, e as conjecturas de Shapiro em torno de seu modelo AIP.

Ainda em 2000, um grupo de psicólogos liderado por James D. Herbert, conhecido por seu trabalho sobre pseudociências na saúde mental, publicou artigo no periódico Clinical Psychology Review que destacava que, embora a técnica já começasse a aparecer em listas de “tratamentos apoiados por evidências”, como a produzida pela Associação Americana de Psicologia, seus supostos mecanismos de ação eram (e ainda são) controversos, e sua promoção era “caracterizada por alegações exageradas de eficácia bem além dos dados” disponíveis, fazendo dela “um excelente veículo para ilustrar as diferenças entre técnicas terapêuticas científicas e pseudocientíficas”.

Já na segunda edição do livro Science and Pseudoscience in Clinical Psychology (Ciência e Pseudociência em Psicologia Clínica), publicada em 2015, Jeffrey M. Lohr, Richard Gist, Brett Deacon, Grant J. Devilly e Tracey Varker assinam capítulo em que analisam algumas das principais terapias propostas para transtornos de estresse relacionado a traumas, entre elas a EMDR. Ali, identificam dois ensaios clínicos bem conduzidos – um de 2003 e outro de 2005 - que compararam a técnica a um tratamento de exposição prolongada, uma terapia cognitivo-comportamental para TEPT. Em ambos casos, a EMDR se mostrou equivalente ou ligeiramente inferior à alternativa, mais bem estabelecida e pesquisada.

O grupo também levantou mais uma dupla de ensaios clínicos comparativos da EMDR com outras TCCs para traumas, incluindo exposição somada a reestruturação cognitiva e treinamento de inoculação ao estresse mais exposição prolongada, que consideraram bem realizados, observando novamente que os benefícios para os pacientes foram equivalentes. Segundo eles, porém, embora estes resultados indiquem que a EMDR é eficaz no tratamento do estresse pós-traumático, as evidências destes e outros estudos com metodologias menos rigorosas “são insuficientes para demonstrar a validade do racional teórico do tratamento”.

Assim, os autores partiram para a análise dos experimentos de “desconstrução” da EMDR, cujos resultados aprofundaram seu ceticismo quanto à validade da técnica. Após revisarem uma série de estudos em grande parte focados nos possíveis efeitos dos movimentos oculares e estímulos bilaterais característicos da EMDR, eles concluem que “existe um claro consenso científico de que os procedimentos de estimulação bilateral não contribuem para a eficácia da EMDR”. Tanto que as diretrizes da Associação Americana de Psiquiatria quanto ao seu uso afirmam que tais experimentos “mostram que não há nenhum efeito incremental do uso de movimentos dos olhos ou outros procedimentos do tipo nas sessões de tratamento”, e que “estes estudos colocam em questão o racional teórico da EMDR”.

“Apesar do apelo superficial desta especulação neurofisiológica, o modelo AIP tem pouca base científica e se apoia fortemente numa linguagem obscurantista para criar a aparência de legitimidade científica. Especificamente, o modelo AIP e as técnicas de estimulação bilateral estão largamente divorciados dos modelos existentes de psicopatologia e psicoterapia, e são grandemente inconsistentes com todo corpo de conhecimento científico colhido da psicopatologia experimental sobre a natureza, aquisição e modificação do medo e da ansiedade”, resumem.

Com o tempo, o acúmulo de estudos sobre a técnica permitiu a realização de meta-análises sobre seus achados, com resultados também no mínimo controversos, aponta o grupo. Não é incomum que meta-análises acabem por distorcer ou amplificar os efeitos observados nos estudos originais, principalmente quando incorrem em falhas como critérios de inclusão frouxos, pondo na conta estudos mal feitos, e misturar estudos desenhado para avaliar diferentes desfechos e com diferentes métodos para aferi-los.

“Em razão destas discrepâncias das meta-análises, encontrar mesmo um pequeno efeito para os movimentos oculares é questionável”, destacam. “Além destas preocupações metodológicas, decisões clínicas sobre tratamentos feitas com base em achados meta-analíticos podem ser enormemente discrepantes dos achados de ensaios clínicos randomizados bem controlados e adequadamente robustos”, acrescentam.

Assim, ao fim de sua avaliação sobre a EMDR, eles argumentam que embora a literatura científica permita concluir que a técnica é eficaz no tratamento da TEPT de forma comparável a outras abordagens cognitivo-comportamentais focadas em traumas, os fatos de os movimentos oculares e outros estímulos bilaterais aparentemente serem desnecessários e sem qualquer influência nos desfechos clínicos de sua aplicação, e de que muitos dos outros procedimentos de seu protocolo coincidem com os de outros tratamentos baseados em exposição, fazem com que ela “ofereça poucas, se alguma, vantagens demonstráveis sobre tratamentos psicológicos competidores baseados em evidências” e, mais ainda, que “seu modelo teórico e suposto ingrediente ativo terapêutico primário não são apoiados cientificamente”.

Conclusões que não se afastam muito das ressalvas à EMDR constantes das próprias diretrizes de tratamentos da TEPT pelas associações americanas de Psicologia e de Psiquiatria. No caso da primeira, a técnica recebe uma “recomendação condicionada”, enquanto a segunda frisa que “embora pareça que sua eficácia seja relacionada a componentes da técnica comuns a outras terapias cognitivas baseadas em exposição, como as terapias cognitivo-comportamentais descritas anteriormente, mais estudos são necessários para identificar claramente a eficácia dos subcomponentes das técnicas combinadas, e estudos de acompanhamento também são necessários para determinar se as melhorias observadas se mantêm com o tempo”.

E o mesmo vale para a avaliação da EMDR na Cochrane Reviews, uma das principais referências mundiais em medicina baseada em evidências. Em análise de terapias para TEPT em adultos, os revisores ressaltam que embora resultados indiquem que a técnica seja eficaz e, obviamente, melhor que o não tratamento ou ficar em uma lista de espera, a qualidade das evidências é baixa devido à fragilidade metodológica e amostral dos estudos, sendo necessárias mais pesquisas. Cenário que é ainda pior para a técnica quando as vítimas são crianças ou adolescentes.

 

 

Reação suspeita

A reação dos proponentes da EMDR a estas críticas também guarda muitas semelhanças com o comportamento de comunidades investidas na promoção de pseudociências, a começar pela da própria Shapiro. Confrontada com os achados de que a movimentação dos olhos ou outros estímulos bilaterais são irrelevantes para a eficácia da técnica, por exemplo, em 2002 ela argumentou que “como com qualquer tratamento complexo, a eliminação de um único componente provavelmente terá pouco efeito”, ignorando ser este justamente seu principal diferencial frente a outras terapias de exposição.

Também são muito comuns argumentos do tipo ad hoc e falácias de alvos móveis, como quando estudos comparativos começaram a mostrar que a EMDR não é melhor e algumas vezes é inferior a outras terapias para TEPT. De início, os defensores da técnica argumentaram que isso era porque os pesquisadores não eram devidamente certificados em EMDR pelo instituto de Shapiro. Mas quando alguns deles obtiveram estes certificados e fizeram seus estudos, passaram a exigir que também fizessem cursos avançados da técnica para reconhecer seus resultados, apesar da falta de evidências de qualquer benefício destes treinamentos para a atuação dos profissionais.

Treinamentos estes que também são outra fonte de suspeitas. A centralização e o controle rigoroso na certificação dos profissionais pelo Instituto EMDR pode parecer algo bom, mas também fazem deste sistema um grande negócio. Não é por menos que participantes dos seminários são instados a não gravar as aulas, compartilhar materiais e treinar ou disseminar o conhecimento adquirido para colegas sem aprovação formal da instituição.

Os proponentes da EMDR também se caracterizam por uma defesa apaixonada de sua eficácia e alegações de superioridade com relação a outras terapias sem, no entanto, apresentar dados robustos que sustentem suas afirmações, ou apresentando apenas informações favoráveis tiradas de contexto, numa falácia argumentativa conhecida como cherry picking. A própria página do Instituto EMDR fundado por Shapiro na internet é um exemplo disso. Na seção dedicada à eficácia, por exemplo, as menções à incorporação da técnica em diretrizes de tratamento da TEPT não inclui as muitas ressalvas presentes nestas mesmas diretrizes, além de trazer uma longa lista de estudos ignorando as limitações de muitos deles, como amostras pequenas e metodologias falhas, noutra falácia argumentativa comum, de citações em massa, o que dificulta sua refutação.

“Quando olho para a EMDR, vejo muitos sinais de fumaça, mas ainda não achei o foco de incêndio”, diz Daniel Martins de Barros, psiquiatra do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP) e do Hospital da Clínicas de São Paulo. “Muito da forma como a EMDR está sendo recebida e divulgada lembra padrões de outras técnicas e terapias não validadas e pseudocientíficas, como a ozonioterapia”.

Barros conta que sua desconfiança começa na plausibilidade biológica dos mecanismos de ação propostos pela EMDR, que segundo ele é “baixíssima”; passa pela baixa qualidade dos estudos que supostamente a comprovam, sem grupos de controle bem definidos e que “parecem buscar apenas a confirmação da hipótese, algo típico de pesquisas de validação de pseudociências”; a formação e certificação “patenteada” numa marca registrada – “como se fosse possível registrar terapia cognitivo-comportamental” -; e chega à rapidez como ela esta se disseminando, com “as diretrizes de tratamento se adiantando à validação”.

“Sim, a EMDR pode ser melhor que não fazer nada. Mas é melhor que só sentar e conversar com a pessoa? Que qualquer outro serviço de aconselhamento ou tratamento já validado? Mais cara com certeza é”, afirma. “Não estou dizendo que a EMDR não funciona. Talvez ela funcione, mas merece uma investigação mais aprofundada, até para tirar dúvidas e acabar com toda essa controvérsia”.

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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