Diretriz de acesso aberto traz riscos para ciência nacional

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29 ago 2022
escriba

 

Na década de 2000, projetos de lei das prefeituras de Biritiba-Mirim e Aparecida, ambas no estado de São Paulo, proibiam, respectivamente, as pessoas de morrer e a chuva, de cair. Apesar das leis terem sido feitas como forma de protesto, para chamar a atenção para problemas que afetavam os municípios, elas ilustram uma tendência do ser humano de achar que pode moldar qualquer realidade através de decretos e leis.

No último 25 de agosto, o Escritório de Política Científica e Tecnologia do governo dos Estados Unidos divulgou um memorando, destinado às agências de pesquisa científica federais americanas, estabelecendo o prazo máximo de 31 de dezembro de 2025 para que todos os dados e pesquisas, já avaliados pelos pares e financiados com verba federal, tornem-se públicos imediatamente após a publicação.

A princípio, a iniciativa parece ser interessante e ir na direção da democratização da ciência através do avanço da política do acesso aberto, algo que vem sendo perseguido pelas universidades desde os anos 1970, com o projeto Gutenberg. Na prática, ela pode não ser muito útil – e até ruim para países com baixo investimento em ciência.

Não há dúvida de que o conhecimento produzido na Academia deve estar acessível ao maior número de pessoas. Porém, a política noticiada pelo governo americano não resolve em nada um dos maiores problemas relacionados ao acesso aberto, que é o alto preço cobrado pelas editoras de revistas científicas para publicar conteúdos que ficarão fora do “paywall” (isto é, que poderão ser acessados gratuitamente por não-assinantes). Alguns periódicos chegam a cobrar R$ 60 mil dos autores para manter um único artigo fora de “paywall”.

Do ponto de vista de países como o Brasil, que investem aquém do necessário na ciência, a possibilidade de revistas imporem o acesso aberto como única forma de publicação, cobrando valores exorbitantes, vai criar mais um empecilho para a divulgação de pesquisas nos periódicos que a comunidade científica mais leva em conta na hora de decidir a promoção e a contratação de pesquisadores.

Ainda que a mudança das editoras seja gradual, a opção de publicar o artigo gratuitamente, mas com acesso somente para assinantes, em revistas de menor impacto pode desestimular o cientista brasileiro. Critérios de avaliação de pesquisadores em agências de fomento nacionais continuam considerando revistas baseadas em índices quantitativos, como o fator de impacto. Em curto prazo, faltará dinheiro para publicar em revistas de alto fator de impacto, e o que for publicado em periódicos que chamam menos atenção será considerado, na prática, irrelevante.

Em vez de estabelecer políticas ancoradas em produtos externos, e, pior, alimentando voluntariamente um mercado controlado por poucas empresas, é melhor discutir um modelo autocontido para a ciência nacional com vistas à construção de práticas que privilegiem a qualidade da pesquisa científica. Parar de associar critérios numéricos (fator de impacto e índice h, por exemplo) à qualidade já seria um grande avanço.

Outro passo importante na direção de uma política de acesso aberto para a ciência brasileira seria valorizar um pouco mais os produtos nacionais ou, pelo menos, não assumir, já de cara, que são ruins. Na área de física, por exemplo, para efeito de promoção no CNPq não importa quantos artigos sejam publicados no Brazilian Journal of Physics, revista publicada pela Sociedade Brasileira de Física desde 1971. O comitê de avaliação considera apenas um.

Apesar da sensação de “agora vai!”, a política a ser implementada em 2025 pelos Estados Unidos não muda muita coisa e pode inclusive ser ruim para países como o Brasil, ao trazer o risco de transformar o acesso aberto – caro, com conta paga pelos pesquisadores ou suas instituições – como única forma de publicação em revistas de maior visibilidade. Do ponto de vista das grandes editoras científicas, pouco muda: terão apenas de mudar o foco do marketing da empresa. Em vez de vender assinaturas para bibliotecas, venderão cotas de publicação para universidades, agências de fomento ou outras entidades, como ministérios de Ciência, por exemplo.

Se a decisão política nacional, diante do possível cenário descrito acima, for incluir o preço da publicação na verba de financiamento de cada projeto de pesquisa, ou adquirir cotas de publicação por meio de governos ou universidades, o que teremos será uma transferência maciça de recursos públicos para grandes conglomerados editoriais internacionais. Melhor mesmo seria mudar uma cultura institucional e passar a valorizar a qualidade da pesquisa per se sem se pautar exageradamente por critérios que estão além da realidade brasileira.

Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência

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